quinta-feira, 11 de junho de 2009
«Sim, não pode ser. Calma, vamos a ver isto de começo.» E começou a recapitular. «Ora, vamos lá a ver como isto principiou. Bati com as costas na tranqueta e, não obstante, segui como dantes, naquele dia e no seguinte; sentia uma dor que foi em aumento; vieram os médicos, depois o desânimo, a angústia e outra vez os médicos; e eu a resvalar cada vez mais para o abismo. Perdia forças. Fui resvalando, resvalando. E agora, cá estou no fundo; vai-se-me a luz dos olhos. É a morte e eu a pensar no intestino. Penso no modo de consertar o intestino e a morte
a bater ao ferrolho. Mas será de facto a morte?» De novo o terror se apoderou dele; a tremer inclinou-se a procurar os fósforos e empurrou a mesinha-de-cabeceira com o cotovelo. O diabo da mesa só estorvava. Furioso empurrou-a com mais força e pregou com ela no chão.
Desesperado, resfolegando a custo, deixou-se cair de costas à espera da morte que dir-se-ia andar por ali.
Leão Tolstoi, in A morte de Ivan Ilich, p.46
a bater ao ferrolho. Mas será de facto a morte?» De novo o terror se apoderou dele; a tremer inclinou-se a procurar os fósforos e empurrou a mesinha-de-cabeceira com o cotovelo. O diabo da mesa só estorvava. Furioso empurrou-a com mais força e pregou com ela no chão.
Desesperado, resfolegando a custo, deixou-se cair de costas à espera da morte que dir-se-ia andar por ali.
Leão Tolstoi, in A morte de Ivan Ilich, p.46
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3 comentários:
O "problema" da morte é de sempre, "desde que há" homem.
A primeira questão é, pois: desde "quando" há homem?
A partir "de quê" passou a haver homem, e não apenas algum seu presumível antecessor evolutivo?
É isso situável "no" tempo?
Ou é algo que - seja por ter "sido" vertiginicamente instantâneo (convoquemos aqui Raul Leal, um tanto às avessas...) seja por em demasia gradual - não logre ser apreendido destarte?
Ocorre-me aqui António Maria Lisboa, alguém que importa muito trazer sempre no bolso do nosso pensar mais lúcido e desassossegante, quando ele escreve:
"O homem é Corpo! Restituído ao Universo de que faz parte destruídas as barreiras que a matéria e imatéria lhe impunham. Não é mais a matéria que toma consciência de si, nem consciência que se reveste de matéria. Nada nos será dado para começarmos se à insistente catalogação do homem como ser orgânico, não passarmos a afirmá-lo, a afirmar-se como um Ser Inorgânico - Corpo que não mantém separadamente ou de forma interpenetrativa uma vida biológica, outra sociológica, outra psicológica, mas uma Existência Cósmica que não é uma síntese bio-psico-sociológica, mas Inorgânica Superior!
Tudo no Universo se faz por crescimento (itálico) seja: por envelhecimento (itálico) para que se entenda: por enriquecimento (itálico) de todas as suas partes e de si no seu todo.”
(in "Poesia de Ant. Maria Lisboa", Assírio & Alvim, Lisboa, 1977, pág. 175 e seg.)
Crescimento, envelhecimento e enriquecimento são processos holonicamente simultâneos no universo. A morte não é algo de “sequenciado”: é, porventura, a suspensão paradoxal de todos os processos, num vislumbre mais ou menos completo, intenso e profundo, em função da diversidade humana, mas sempre “perfeito”, na medida em que a morte, qualquer morte, é sempre "per-feita": consumação dum sentido, o sentido duma existência.
Há mesmo certas tradições espirituais, como a cristã ortodoxa, que vêem a morte humana como um “pequeno juízo final”, visto que a morte é precisamente essa lâmina cortante que separa distinta e cruamente, sem possibilidade de subterfúgio algum para o seu sujeito, o exacto “peso” de cada coisa que fez ou não fez, sentiu ou não sentiu, pensou ou não pensou, activa ou omissivamente consideradas.
«Sim, não pode ser. Calma, vamos a ver isto de começo» - diz o personagem de Tolstoi. E depois, procura “racionalizar” o que "está para" acontecer-lhe.
Ora, recorrendo de novo a António Maria Lisboa:
“Conhecer é a um tempo receber e dar, é não só saber que algo se processa de certa maneira, de certa forma, mas provocar alteração no processo e no que se processa, de que também faz parte. Conhecer é receber a realidade tal qual vem e no mesmo tempo torná-la outra realidade, de forma que a realidade não venha sem ser ‘indo’ (itálico).”
A morte é, pois, precisamente isso que mais radicalmente "vem indo", anunciando-se, mas se mostra e consuma no mesmo não-“instante” em que "acontece".
“Aí”, não há mais uma vida com sentido, mas tão-só o sentido duma vida, duma determinada vida.
Tal coisa não pode, porém, ser um ficar “à espera da morte que [dir-se-á] andar por ali”, como sentiu Ivan Ilich... A morte mesma não o consente.
(Muito grato; Liliana, por este post algo "inesperado", mas muito desafiante)
coisa linda
tão natural como a morte
- cá por mim, estou lhe agradecendo, Liliana
Agradecida eu, Lapdrey, pela sua partilha.
Ainda não me cruzei com leituras de António Maria Lisboa, mas parece-me que, tenho que tratar disso. Gostei das passagens citadas, foram esclarecedoras, nalgumas coisas.
Bom fim-de-semana.
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