O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Saudade(s)

Confesso: há venenos que nos deixam ocos, vazios. Venenos brancos, de espuma abstracta, que nos sugam a Vida, a Verdade e o Sonho que nos sai do corpo (mas primeiro do olhar).
A divisória encontrava-se envolta em fumo denso e, como habitualmente, a noite demorava a nascer. O olhar dos transeuntes, inundado desse vapor branco, cegara, não pela noite que tardava, mas pelas profusas horas que teimavam em existir.
A claridade assumia um peso excessivo que, lentamente, trabalhava as pálpebras da cidade. Os ruídos, poucos, avocavam um som metálico e áspero. Os ouvidos da turbamulta contraíam a gravidade da procura do sentido. De fora, cada esquina adquiria um outro perfil, sempre sem sombra. As casas, ígneas línguas que lambiam a alabastrina cidade, tornavam-se pequenos refúgios ao longo das simétricas alamedas desarvoradas. Indistintamente, no cimo de uma outra alfama por definir, uma janela interrompia o horizonte lácteo. Dessa janela para dentro, esse mundo submergia.
Sal descia, voluptuosa, os degraus salomónicos de uma divisória enfumada que servia de antecâmara a essa janela, cujo condão (embora ninguém o soubesse) era perspectivar o inesgotado do Sonho. Descia-os como se, num só passo, transpusesse essa alba crepitação que a todos, sub-repticiamente, tumulava. [Sal] voltara a existir, mas sem nome. Essa luz clarão, do-no-mundo-e-fora-do-mundo, que esculpia o precipício da meia-noite, trouxera-lhe o ansiado indício.
Sempre amara o lado abstruso da realidade, enquanto cada partícula de luz a atravessava como uma convulsão. Prezara os cheiros subterrâneos, no labor minucioso de reconhecer todas as estações. Porém, jamais reclamara o Sol interino que faltava àquela cidade. Agora, incitara a sua súbita transformação: clandestina, em horas de alucinação, moveu-se para fora das vidraças, para fora de si própria. Nesse limiar mágico do voo, e de corpo todo rasgado, redesenhou as mitologias, sem a ilusão de as ter criado. Jorrou, oscilante, das estrelas outros compassos e diversas geometrias. No asfalto da sua pele, cintilaram amanheceres ferozes que rompiam o céu ácido da memória. A cidade ecoava noite.
Hoje pouco resta desse percurso, desse mar, desse Sal.
Ela passaria à frente de si própria. Silêncio.
Era noite, jubilosamente noite.
Em todos os outros, essa amnésia que não cuida saber dos auspícios da existência, alagava os fogos por atear, as cerimónias sacrais que não podiam ser verdadeiras, anestesiava os peitos nus dos poemas, não obstante a procura contínua de uma qualquer convicção que remanescia nos caudais da memória. Submetiam-se a essa nova vida, obedecendo às normas, aceitando todos os nomes, vozes e deuses. Todos se encontravam nesse estado encoberto e miasmático. Rumo ao centro da cidade, já não sabiam se perseguiam ou fugiam de algo. Aproximaram-se. Adentraram um espaço ou vórtice espesso e leitoso onde o Tempo, jazendo, respirava. Foram engolidos, sem interrupção. Perderam-se irremediavelmente nas armadilhas da nostalgia. Foram corrompidos pela medúsicas teias da melancolia.
Era noite, pesarosamente noite.
Apenas Sal se salvou. Apenas ela encontrou o fio de Ariadne nesse labirinto incompreensível chamado Saudade.
Confesso: há contravenenos que nos deixam absolutos, plenos. Antídotos brancos, de brilho insondável, que nos alumiam o Caminho, inflamam o espírito e erigem o Ver.

Os deuses

Os deuses são felizes.
Vivem a vida calma das raízes.
Seus desejos o Fado não oprime,
Ou, oprimindo, redime
Com a vida imortal.
Não há
Sombras ou outros que os contristem.
E, além disto, não existem...

Fernando Pessoa, 1920

ensaio à memória de Edgar

Tinha guardado o número de telemóvel do funcionário da ainda EDP numa Agenda abandonada de 2001.
Porque recorria com muita frequência à sua prontidão gentil sempre que tinha avarias elétricas no Monte:
-diga, senhor engenheiro, o que é que deseja agora do Guilherme...

Sabia que tinha morrido eletrocutado num acidente estúpido quando montava uma linha de alta-tensão no Ribatejo.
Apesar disso, não risquei o número da Agenda, e agora, quando voltei a ter problemas em casa,
liguei para o seu número, na estulta hipótese de que o seu telemóvel tivesse transitado, na empresa, para quem lhe sucedia nas funções.

Liguei, tocou, demorou algum tempo a atender:
-sou, sim, Guilherme, queira o senhor engenheiro dizer o que pretende
-mas, Guilherme? será que tem o mesmo nome do colega....
-nada, sou eu mesmo, o que morreu de acidente em Santarém, quando montava uma linha de alta-tensão já nas proximidades de Almeirim....
- não brinque, por favor, morreu e fala comigo ao telefone?
-desligue e ponha o telemóvel em local visível, não o guarde no bolso e veja o que vai acontecer.
É que eu continuo a arder.....

Procedi em conformidade, meio crédulo meio em pânico. Fechei o telemóvel e coloquei-o, desconfiado, sobre o balcão de mármore da Cozinha.

Explodiu de imediato, provcando uma chama enorme, exalando um cheiro intenso a enxofre e a ozono

Trans-Pátria - Para uma sabedoria da metamorfose

"Os povos, culturas, civilizações, tal qual os homens, não conseguem começar a realizar-se senão limitando-se. Este é, ao mesmo tempo, o modo como surgem para a vida e caminharão para a morte. Tendendo a fechar-se numa exígua e aniquiladora maneira de ser ou conceber, esquecem que aquela limitação pela qual se tornaram possíveis e atingiram a grandeza é a mesma pela qual morrem, quando deixam de a tomar como processo e a tomam como fim. Isto caracteriza, no entanto, os povos, culturas, civilizações, como os homens singulares: obstinam-se em manter-se por aquilo mesmo que os tornou possíveis, esquecendo ou ignorando que para nós, homens, no seio da arquipotente Natureza e perante a subtil solicitação do incriado, só persiste o que incessantemente se renova. "Não iremos além", clamam os pusilânimes no doloroso seio das metamorfoses. Isto significa que o sentido autêntico de verdade os desertou e, com ele, a potência de ser e subsistir"

- José Marinho, Aforismos sobre o que mais importa, Obras, I, edição de Jorge Croce Rivera, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1994, pp.298-299.

Eis um trecho de um verdadeiro filósofo, expoente maior do pensamento português, lusófono e universal e, por isso, escassamente lido e parcamente compreendido, por aqueles mesmos que o lêem.

Que este trecho possa despertar todos os que tomam por definitiva e eterna, e como um fim em si, a forma transitória e contingente de um ser, uma pátria, uma cultura ou uma civilização. Ai de quem não for Proteu, o deus da metamorfose, figura paradigmática do ser universal, como o grande Antero de Quental anunciou!...

The Kiss

http://www.youtube.com/watch?v=QgrjDed2OHc

I made a 'hot' collage kiss using pieces of famous masterpieces of art history (Botticelli, Da Vinci, Duccio, Giotto, ecc.). I used collage and morphing.
-Giuseppe Ragazzini

quarta-feira, 29 de abril de 2009

11º Encontro Inter-Religioso de Meditação - Hoje - 29 de Abril - 19 h

A União Budista Portuguesa convoca toda a comunidade budista e não budista a associar-se a este 11º encontro de praticantes de diferentes tradições e religiões para vivermos, em silêncio meditativo, a experiência da presença em comum perante o que para cada um for mais sagrado.
Lembramos que este encontro - cuja feliz iniciativa partiu da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã e que foi por todas as principais comunidades religiosas portuguesas entusiasticamente recebida - corresponde plenamente ao compromisso que a União Budista Portuguesa recentemente assumiu com Sua Santidade o Dalai Lama de tudo fazer para promover a harmonia inter-religiosa em Portugal, um dos próprios empenhos fundamentais de Sua Santidade.

Começaremos com breves leituras de textos representativos da espiritualidade de cada tradição, intervalados por três minutos de meditação sobre cada um, seguindo-se 25 minutos de meditação em silêncio. No final haverá a possibilidade dos participantes partilharem a sua experiência.

Contamos com a vossa presença e divulgação desta experiência pioneira em Portugal.
Para que o diálogo inter-religioso se enraíze no silêncio inter-religioso e na experiência da Paz profunda.

Pela Direcção da UBP
União Budista Portuguesa
Calçada da Ajuda 246, 1º Dtº, 1300-012 Lisboa
Tl: 213 634 363

sede@uniaobudista.pt
www.uniaobudista.pt
(Autocarros Carris 732, 729, Eléctrico 18 - sair em frente ao Jardim Botânico da Ajuda.)

Despertar

Se levarmos a sério o desejo de despertar, precisamos de força para renunciar às coisas que têm um grande significado para nós e precisamos de uma grande dose de coragem para nos pormos sozinhos ao caminho. Aqueles que não andam atrás de elogio e ganho, aqueles que não fogem da crítica e da perda, podem ser estigmatizados como anormais ou mesmo loucos. Quando observados a partir de um ponto de vista comum, os seres despertos podem parecer loucos porque não negoceiam, não podem ser seduzidos ou agitados pelo ganho material, não se aborrecem, não procuram emoções fortes, não têm reputação a perder, não se conformam com regras de etiqueta, nunca usam a hipocrisia para proveito pessoal, nunca fazem coisas para impressionar as pessoas e não exibem os seus talentos e poderes como um fim. Porém, se isso constituir um benefício para os outros, estes santos farão tudo o que for necessário, desde ter um comportamento perfeito à mesa até dirigir uma das maiores empresas do mundo.

O Que Não Faz De Ti Um Budista, Dzongsar Jamyang Khyentse, Ed. Lua de Papel

Sobressaltos - "Quem quer que assim conheça que é Brahman, torna-se este inteiro [universo]"

"Quem quer que assim conheça que é Brahman, torna-se este inteiro [universo]. Mesmo os deuses não têm o poder de fazer com que não seja, pois ele torna-se o seu próprio si.
Por isso, todo aquele que reverencie qualquer outra divindade, pensando "Ele é um e eu sou outro", não compreende [correctamente]. É como um animal [sacrificial] para os deuses; e tal como muitos animais são úteis para o homem, assim é cada indivíduo humano útil para os deuses. Ser-nos roubado um único animal é desagradável. Quanto muito mais o é serem-nos roubados muitos! E assim aos [deuses] não agrada de modo algum que os homens saibam isto"

- Brihadaranyaka Upanishad, I, IV, 10.

terça-feira, 28 de abril de 2009

As Palavras e os Poetas - Olav H. Hauge



“Nous ne sommes rien, ce que nous cherchons est tout.”





Olav H. Hauge



Quem assim falava era poeta e hortelão, "jardineiro" do seu jardim e a sua voz erguia-se das terras do Norte, para si mesmo e para o outro homem que o ouvia: o leitor. O polo da tua busca era a interioridade, as tuas palavras eram magnéticas como dizias que a palavra deveria ser. Não mágicas, magnéticas. A tua bússola apontava à profundidade e interioridade da tua voz e da tua alma de louco, de poeta. Diziam: o sábio de Ulvik está à sombra da árvore a ver a luz arrefecer na outra face da folha. E havia sempre dois que te acompanhavam enquanto escrevias na silente voz da cascata ao norte, o fruto uno que prendias na boca. E tu, à sombra da velha árvore, passavas por várias águas a palavra até cair dentro do teu coração o fruto nítido e limpo de um som real, talvez o som de um pássaro a cantar sobre os canteiros das rosas. E esse território era um livro desenhado na pele e nas pétalas. Um poema como uma casa. Dizias: je veux qu'un poème soit tel que tu puisses habiter dedans. Esse era o veículo que usavas para transitar entre o que é e cabe no teu corpo e na tua alma e o que te sonhavas palavra e leitura. Habitaste as noites de Holderlin e gastaste os olhos a ler os poetas que haviam de povoar-te o jardim. Toda a vida a viagem se fez por dentro das palavras. A viagem em que a palavra viajava com o seu duplo, e cada coisa era outra e a mesma de outro modo de ser ela mais nítida e real. Um deus de pedra sagrou-te em poema que era para ti rosas selvagens “on a chanté les roses./ Je veux chanter les épines/ et la racine qui s'accroche/ au rocher dur,/ dur comme la main maigre d'une jeune fille.”Os melhores dos teus poemas, dizias, tinham sido escritos à sombra das árvores olhando a natureza e os ramos como mãos claras na mão com que seguravas o que nela cabia de nada-poema. Gotas no vento, a fina, pacífica e clara voz de uma simplicidade e densa precisão. Transformavas, irmão poeta, a maldição do poeta e do poema em clara sílaba, luz contida na palavra que alumia o bosque. Disseste: “Écrire de la poésie est nécessaire, vivre ne l'est pas” e eu acreditei. Quantas vezes terei dito que mais do que a poesia é o mistério que a vela que pode fazer aparecer quem, por nada ser, pode ser tudo. A tua palavra era aberta para o mundo, o poeta que me visita por vezes fecha-se sobre si mesmo, mas abre em desejo caminhos de claridade para os teus poemas , para o norte profundo e para as folhas do bosque. Oiço o poeta e o meu coração também aponta ao norte magnético das palavras:



“Quand je me réveille, un noir


corbeau frappe à mon coeur.


Ne vais-je plus jamais m'éveiller


à la mer et aux étoiles,


aux bois et à la nuit,


au matin,


avec des chants d'oiseaux!


(O texto foi escrito sobre a leitura do livro de poemas “Nord profond” de Olav H. Hauge, traduzido e ilustrado por François Monnet, ed. Bleu autour, 2008 - Aproveito para agradecer a Arnie a oferta deste livro.)

Sobressaltos - O que é um poeta?

"O que é um poeta? Um homem infeliz que oculta uma profunda angústia no coração, mas cujos lábios estão de tal modo formados que, quando um suspiro ou grito passa através deles, soa como música encantadora. O seu destino é como o daqueles infelizes que eram lentamente torturados por um fogo brando no touro de Falaris; os seus gritos não podiam chegar aos ouvidos do tirano para o consternar; para ele soavam como doce música. E as pessoas reúnem-se em torno do poeta e dizem "Canta de novo em breve" - o que significa: "Possam novos sofrimentos atormentar a tua alma...""

- Sören Kierkegaard, Ou... Ou... [Either Or: A Fragment of Life, London/New York, 1992, p.43].

Intervenções

I
Na verdade nenhum mestre quer o discípulo que deseja, pois este seria o seu declínio. Mas nos somos somente verdadeiros discípulos enquanto temos a coragem de enfrentar o nosso declínio.

II
Todos os mestres anunciam o oriente, mas o que deveríamos querer é o ocidente – o declínio da nossa manhã.

III
Adoro o meu eu, dando diamantes e néctar de ambrósia para cuidá-lo bem. Mas quando escuto os ecos entre as árvores, que rodeiam esta aberta, ouço tantas vozes cantar: eu sou eu sou eu sou eu - até o infinito.

IV
Você vê este e outros andar à toa pela rua no pleno dia quando Deus te chama para trabalhar. E você pensa ou fala: este não é um homem de Deus pois não cumpre os seus deveres. Mas como? Não pode ser mais difícil atravessar quarenta dias o deserto do que fazer o serviço quotidiano no templo de Jerusalém? Quem és tu para julgar tais coisas?

V
Ando descalço com minha alma no asfalto derretido da cidade.

VI
Não me chama, pois não tenho nome. Mas quando grito, ouça. Pode ser um gemido da tua própria alma.

VII
Enfim não digo e faço nada, somente escrevo para magoar ninguém. E você tem certeza de querer ser assim também?

VIII
Porra! Tira o dedo!

somos como estes macacos

«Era uma vez quinhentos macacos e um deles pensava que era muito esperto. Uma noite, esse macaco viu o reflexo da lua no lago e, todo orgulhoso, informou os outros macacos: "Se formos ao lago buscar a lua, seremos os heróis que a salvaram." Inicialmente, os outros macacos não acreditaram nele. Mas, quando viram com os seus próprios olhos que a lua havia caído no lago, decidiram tentar salvá-la. Subiram a uma árvore e seguraram-se uns aos outros pela cauda, a fim de poderem alcançar a reluzente lua. No preciso momento em que o último macaco estava prestes a agarrar a lua, o ramo partiu-se e eles caíram todos no lago. Não sabiam nadar e todos se debateram na água, enquanto a imagem da lua se desfazia na ondulação. Movidos pela sede de fama e originalidade, somos como estes macacos, pensando ser tão espertos em descobrir coisas e procurando convencer os nossos companheiros humanos a ver o que vemos, a pensar o que pensamos, impelidos pela ambição de sermos o salvador, o esperto, o que tudo vê!... Temos todos os tipos de pequenas ambições, como impressionar uma rapariga, ou de grandes ambições, como aterrar em Marte. E acabamos continuamente na água, sem nada a que nos agarrar e sem saber nadar.»
in O Que Não Faz de Ti Um Budista, de Dzongsar Jamyang Khyentse, Ed. Lua de Papel

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ninguém se te lembrou

O velho homem vagabundeia as ruínas do tempo, recostado no firme muro de amados nadas gotejantes, esvoaçando os enferrujados despedaços de imutável mudança, tão impávido quanto perplexo ante as absortas visões do seu esquecimento - não, ninguém se te lembrou: ó velho (e terno) homem! Não, ninguém se te lembrou.

tomás jorge

Morreu, no dia 24 de Abril, Tomás Jorge (Vieira da Cruz) - no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, vítima de um cancro mais teimoso que ele. Filho do ‘príncipe dos poetas coloniais’, por quem sempre nutriu uma profunda admiração e um verdadeiro reconhecimento, foi um dos grandes vultos do nacionalismo literário angolano dos anos 50 e 60, para além de declamador possante, com acurado sentido do ritmo – que provavelmente herdou de seu pai.

Cresceu como escritor no meio daquela poesia-comunicado, poesia de apelo muito crú à luta, em que se vigiava a correção ideológica e não se ligava nada à estética desde que ela funcionasse, servisse. Mas os versos dele destacavam-se por um ritmo próprio, que não era o da oratória política (como em Agostinho Neto e, em parte, em Viriato da Cruz); também se destacavam porque ali pulsava uma tímida mas recorrente inquietação filosófica, sobre o cosmos, a essência do homem e do destino, a certeza da morte e o sabor da vida. Infelizmente não levou mais longe essa inquietação – premências da luta, solvências do exílio.

Também não alinhou impensadamente ou automaticamente na ideologia dominante entre os nacionalistas da época (por isso não entrou no Partido Comunista Angolano, nem deu o seu acordo, ou nome, ou poema, à viragem do regime pós-independência para o bloco soviético). Mas fê-lo sem entrar em negociatas, fraquezas de espírito, nem se fechar em qualquer outra ideologia de reação. Continuou a ser poeta, essencialmente poeta, desprendido, não ligando ao desprezo, à indiferença, ao ghetto a que o votavam. Aparecia por si próprio e isso lhe (nos) bastava. Amava com autenticidade e sentido crítico a sua pátria e, em particular, a sua mátria: a velha e viva cidade de Luanda, a Loanda de outros tempos e de hoje, a cidade dentro das suas cidades como lembrou poeticamente Jorge Macedo. Quando a revisitou, nos últimos anos, andava de hiace, ou candongueiro, nesses pequenos táxis coletivos onde há lugar para pessoas a mais, cuidados a menos, calor sufocante, insegurança total, condução alucinante, tudo menos comodidade. Ia e vinha para o subúrbio onde generosamente a família da mulher o albergava. Durante o dia, passeava anónimo pela sua Luanda, vendo-se impotente perante a pobreza e feiura da nova cidade. Comia um bom funge no Kinaxixe, antes do edifício ir abaixo em nome de um centro comercial que não surge, claro. Com o Macedo, às vezes comigo, alguns outros da mesma ‘laia’, brincava, usando a voz altissonante, brincava com todos e chamava cada coisa pelo seu nome, ali, no meio do povo, anónimo e assumido. A pátria por que lutou ignorava-o. Ainda assim ia lá, não podia passar sem ela. E humildemente se apresentava só com a sua pessoa. ‘Esses cotas são loucos’, diziam os miúdos, candengues nossos aqui. Mas isso, naquele tempo e neste, entre cinzentos fraques a 33º à sombra, isso mesmo já não foi pouco.

domingo, 26 de abril de 2009

não assinalei aqui

o dia do Livro
o dia da Terra
o dia da Liberdade


estive por aí, a comemorá-los

assinalo aqui e agora

n

A caminho do 25 de Abril

Esta gente toda no metro vai para o 25 de Abril devidamente equipada com kispos e mochilas, casais e grupos.
Onde é que esta gente toda vai para o 25 de Abril?
Destino Amadora Este, uma no cravo, calças de aventura, de bolsos de lado e mapas na mão indicando a direcção para o 25 de Abril, é pela linha azul.
Onde é que esta gente toda vai para o 25 de Abril?
Haviam de ir para adonde? Para o 25 de Abril.
Eu cá estou no 24 ou 26 tal como vários metrutentes com caras de quem sabe seu destino certinho, vamos para o trabalho e nos feriados, que bom que é, ganha-se a dobrar, dobrar o cabo da boa esperança.
Próxima estação Jardim Zoológico. Depois, poucas estações depois, saem todos. Parecem ter descoberto o 25 de Abril, pois que aqui me encontro onde sai mais gente; equipados, fuçanhando, à conquista da terra, rápidos a subir a escadaria que de certeza, para subir tanta gente, vai dar ao 25 de Abril.
Afinal íamos todos para o 25 de Abril, chegados ao destino não queríamos mais nada.
No sítio onde trabalho vendeu-se milhares, o povo rebelou-se na bicha. Não há crise, ó chefe, não saímos daqui sem a encomenda.
Às horas do comer, na zona da restauração onde todos comem uns com os outros, comi peças a um euro cada e estava a dar a "Shinny Happy People" dos REM acompanhada de procissão interminável com fim à meia noite.
No fim da excursão veio a chuva dissolvente dos xutos e pontapés mas, como já ninguém estava a caminho do 25 de Abril, ninguém se molhou.
Durante a estadia no 25 de Abril rompi, ao baixar-me, as calças no meio das pernas. Isto deve querer dizer qualquer coisa a que não tenho acesso, talvez seja a confirmação de que estava de facto no 25 de Abril.

sábado, 25 de abril de 2009

O Cravo / Joaquim Pessoa


25 de Abril de 1974


O cravo trevo levado
lavado cheirando a água
cravo meu sangue pisado
peito nora a puxar mágoa.

Mágoa sirene do vento
que o vento grita ao correr
mágoa que acende no tempo
um cravo punho a doer.

Cravo que é a morte ou é a vida
da vida mais desgraçada
tantas vezes mal sofrida
sofrendo a vida parada.

Até que a morte parida
seja a vida libertada.

Joaquim Pessoa
in Amor Combate
Litexa, 1985, p.157

Lisa Gerrard: Now We Are Free

Infelizmente a incorporação do vídeo foi desactivada. Mas sigam o link e vejam em alta definição. É simplesmente lindo!

sexta-feira, 24 de abril de 2009

No sem tudo deuses tornados

Enterneces o silêncio na escuridão em que estrelas dormem quedando tuas a tua doce voz que, num sussurrando sedada, infunde no vazio ante rubro regresso das jubilosas terras do nunca... o liberto brilho a trémula humana visão, no sem tudo deuses tornados do mundo por ti renascido. Por ti, por ti ilimita-se o dia a desocultar a ardente esperança de um eterno anoitecer, na táctil plenitude dos astros lágrimas teus, pulsantes em imenso adormecimento puro.

Conhecimento Transcendente


"A forma é vazia; a vacuidade também é forma.
A vacuidade não é senão forma; a forma não é senão vacuidade."

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Mãos

Ânfora, vaso, cálice… O que quer que fosse, quebrou-se, em milhares de pequenos pedaços pontiagudos, como ínfimos diamantes distorcidos por forças inconcebíveis, mais o pó entre eles. Olho agora para as mãos vazias, espantada, sem saber como escorregou. Escorregou. Olho-os, como pequenas lágrimas desfeitas, e o pior nem é o pó entre eles, irrecuperável, é a água e a luz que continham. Perdidas. Ajoelho-me no chão e seguro pedaços do delicado invólucro na mão direita, enquanto com o dedo indicador da mão esquerda desenho pequenas serpentes no pó. Uma nuvem brilhante ergue-se do solo e desvanece-se no ar. A perda é tão imensa, tão infinitamente inalcançável pela mente, tão muda, que nada sinto. Ânfora, vaso ou cálice? Até a forma vai desaparecendo na memória e depois os cacos desfazem-se em pó, e mais pó e mais serpentes entre o pó e depois as serpentes tornam-se cada vez mais finas, como fios de seda e desaparecem, pois já nem o pó ali está. Ficam as mãos vazias. Olho-as de novo, tão pequenas, as minhas mãos, os dedos pontiagudos. Tão pequenas. O que posso segurar com elas? Olho em volta. Nada. Ergo-me e olho mais longe. Nada, nada, nada. Não há nada neste mundo que eu possa ou queira segurar. Só esta ideia, que não devia ter deixado cair… o quê? Olho agora para o mundo inteiro, vejo tudo, o infinitamente grande e o infinitamente pequeno, é enorme o mundo e tudo nele tão grande, para dentro e para fora, sem fim, fractal, fracturado. Não quero nada deste mundo.Só queria o que continha o... cálice? Escorregou. A perda é muda. Regresso então às minhas mãos, com uma agarro a outra e sorrio. Entre elas surge de novo água e luz. Mergulho inteira nas minhas mãos e crio um novo mundo. Fractal, intacto.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

mais um dia

Comemora-se hoje, 22 de abril, o dia mundial da TERRA. Proposta do senador norte-americano Gaylord Nelson, em 1970, visando sensibilzar os passageiros desta frágil Caravela para o risco eminente de naufrágio se...
Lembro quadra popular - julgo que de António Aleixo - que expressa bem a relação dialética entre cada um de nós e a bolinha azul e quebradiça com cerca de 500 milhões de quilómetros quadrados de superfície:

eu sou devedor à Terra
a Terra me está devendo
a Terra paga-me em vida
eu pago à Terra em morrendo

se não for bem assim, não se esqueça de me perdoar. Garantidamente assim é minha quadra sobre o tema:

porque o Mundo é uma bola
os homens ainda putos
bibe de chita e sacola
querem logo andar aos chutos

Imitemos, pelo menos, e se calhar só, nisso os Papas quando visitam um país pela primeira vez:
baixemo-nos e beijemos humildemente a TERRA.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Mankind Is No Island

Shiiiuuu!!!
Assistam em silêncio a esta curta metragem, por favor*








Agora que já assistiram, é fácil perceber porque é que esta curta metragem ganhou o TROPFEST, o maior festival de curtas metragens do mundo.

Começou há 17 anos em Sydney e no ano passado teve a sua primeira edição em Nova Iorque. O vencedor de 2008 foi este filme que foi totalmente filmado com um telemóvel e com um orçamento reduzidíssimo, no entanto realmente muito bom.

Recebi-a por e-mail e não resisti a partilhar este momento muito importante para mim*

Breve tratado de rebelião

Tendo em conta a fonte, este post pode-se tornar polémico. Mas é importante recordar que, independentemente da fonte, Ernst Jünger foi um combatente contra o nazismo. E recordei-me desta leitura por causa do post dos mandarins e da indisciplina, do Paulo Borges. 

No seu Tratado do Rebelde, Ernst Jünger escrevia em 1951: «Duas qualidades são indispensáveis ao rebelde. Ele recusa aceitar por sua a lei dos poderes instituídos, quer eles usem a propaganda ou a violência. E ele está decidido a defender-se». Dominique Venner acrescenta, nas páginas deste número, que o que em todas as épocas os rebeldes tiveram em comum «foi terem descoberto, por vias diferentes, uma incompatibilidade absoluta entre o seu ser e o mundo no qual lhes seria necessário viver».

O rebelde recusa a ordem do mundo no seio do qual foi jogado. Recusa-a em nome de uma legitimidade que excede toda a legalidade. Recusa-a porque é em si mesmo que encontra a legitimidade e a norma – não que ele as decalque simplesmente sobre aquilo que ele é, mas porque sabe que ele próprio é também o resultado de uma norma que o ultrapassa. E a sua recusa é total. O rebelde é aquele que não cede, desdenhando daquilo com que o procuram deslumbrar: honrarias, interesses, privilégios, reconhecimentos. À mesa de jogo, ele é o que não joga: o espírito do tempo embate nele como a água na pedra. Espírito livre, homem livre, ele não coloca nada acima da liberdade do espírito e da pessoa. Ele é a própria liberdade. «É rebelde quem quer que seja colocado pela lei da sua natureza em ligação com a liberdade» (Ernst Jünger).

Mas ele não é somente um insubmisso. Certamente, como o resistente ou o dissidente, o rebelde é a prova viva de que uma alternativa é sempre possível. Mas a sua rebelião não está somente ligada às circunstâncias. Ela é de ordem existencial. O rebelde sente fisicamente a impostura, sente-a instintivamente. Tornamo-nos dissidentes, mas nascemos rebeldes. O rebelde é rebelde porque qualquer outro modo de existência lhe é impossível. O resistente deixa de o ser quando deixa de ter meios de resistir. O rebelde, mesmo aprisionado, continua a ser um rebelde. É por isso que, ainda que possa perder, nunca está vencido. Os rebeldes nem sempre podem mudar o mundo. O mundo, esse, nunca os conseguiu mudar.

Face a um mundo pelo qual não sente mais que desprezo ou desgosto, o rebelde não pode satisfazer-se com a indiferença, porque essa está ainda demasiado próxima da neutralidade. O rebelde é feito para a luta, mesmo que ela não ofereça esperança. Ele não é, então, um renunciante. O rebelde sente-se estrangeiro ao mundo em que vive, mas sem nunca deixar de querer nele viver: ele sabe que só se pode nadar contra a corrente na condição de não se abandonar o leito do rio. Pertencendo a essa minoria que desde sempre preferiu o perigo à servidão, ele sabe que o respeito de si deve sempre ser conquistado. O seu afastamento puramente interior não impede o contacto, porque esse contacto é necessário à luta. E se ele «recorre à floresta» não é para aí se refugiar – ainda que seja frequentemente um proscrito –, mas para aí reaver forças vivas. «A floresta está presente por todo o lado, prossegue Jünger. Existem florestas no deserto, como nas cidades, onde o rebelde vive escondido sob a máscara de qualquer profissão. Existem florestas na sua pátria como sobre qualquer outro solo onde se possa desenvolver a sua resistência. Mas existem sobretudo florestas na própria retaguarda do inimigo.»

O revolucionário persegue um objectivo, o que não é necessariamente o caso do rebelde. O rebelde pode perfeitamente lutar por afirmar um estilo. Ele luta porque não pode fazer outra coisa que lutar. O revolucionário pretende chegar a um fim onde o rebelde encarna antes de tudo um estado de espírito. Semelhantemente, o rebelde despreza a escalada extremista e a manipulação supostamente eficaz dos slogans. Ele não é dos que se limitam a anunciar o Apocalipse em ter o mínimo meio de o remediar. Antígona é estranha ao narcisismo da radicalidade.

Por relação ao «curso da História», o rebelde sabe, por outro lado, identificar o momento e agarrar esse momento. Para romper o cerco, para tentar introduzir um grão de areia na máquina, ele raciocina sobre situações concretas. Determina a sua estratégia de acordo com o que vê surgir sob os seus olhos, não de acordo com modelos ultrapassados. O rebelde é, antes de tudo, dinâmico. Ele dinamiza o pensamento e torna esse pensamento dinâmico. Não é soldado, mas guerrilheiro. Ele não leva a cabo operações regulares mas lança ataques inesperados. Não está atrás de uma linha da frente, mas atravessa todas as frentes.
O rebelde pode ser activo ou meditativo, homem de conhecimento ou de acção. Sobre o plano estratégico, pode ser carvalho ou junco, raposa ou leão. Há rebeldes de todos os tipos. Na ordem do pensamento, Hugues Rebell, o bem falado Georges Darien, Péguy, Bernanos, Orwell, foram ao seu tempo rebeldes, tal como, mais recentemente, Jack Kerouac, Dominique de Roux, Burroughs, Pasolini, Xavier Grall, Mishima ou Jean Cau. Guy Debord foi também ele um rebelde, mesmo se a sua obra é hoje objecto de uma recuperação póstuma, sinal de que estamos já no para além do Espectáculo. Na ordem da acção, depois de tantos outros «mobilizadores do povo», poderíamos citar o subcomandante Marcos que, sem ter nunca cometido um só atentado, defende de maneira exemplar as liberdades dos índios de Chiapas. De Robin dos Bosques aos «zapatistas»: uma mesma linha!

Sempre houve rebeldes. Mas o mundo actual reserva-lhes um lugar muito particular. Na época da modernidade, o rebelde surgia muito aquém do revolucionário: era reputado por lhe faltar clara consciência ideológica e preferir, às estratégias longamente pensadas, o jogo desordenado das reacções instintivas. Hoje que a modernidade finda, ele reencontra o seu lugar. A mundialização faz da Terra um mundo sem exterior, um mundo sem outro, que já não pode ser atacado a partir de um ponto para além de si. Um tal mundo não está tanto votado à explosão como à depressão implosiva. O rebelde está apto para este mundo precisamente porque fomenta redes e propaga as suas ideias de forma viral. Neste sentido, ele é também uma figura pós-moderna, mas uma figura de oposição. Num mundo cada vez mais homogéneo, ele é a própria singularidade. Ele é um ponto opaco num mundo votado à transparência totalitária, um sujeito que permanece real num mundo de objectos virtuais, um insurrecto por excelência num mundo policiado e tornado policiador. Um estrangeiro que podíamos excluir, de pleno direito, em nome da luta contra a exclusão, se ele não se tivesse previamente excluído a si mesmo. É por isso que, de um certo modo, o futuro pertence ao pensamento rebelde, a esse pensamento que desenha clivagens inéditas, esboça uma topografia nova, prefigura um outro mundo. Porque a história permanece sempre aberta.
Jünger diz ainda que chama rebelde «àquele que, isolado e privado da sua pátria pela marcha do universo, se vê deixado ao nada». Escreve também: «Quando todo um povo prepara o seu recurso às florestas, torna-se uma potência temível.»

Robert de Herte, Eléments nº 101 (Via Velle Est Posse)

Vazio existencial/1

Vazio existencial
Vento eterno e constante
Ecos do nunca
Obscurecem o brilho

Trouxe um rio


E sempre a minha voz vai com a corrente: rio abaixo, rio acima, deslizando sobre as águas onde a luz é um tecido de prata a levar e a trazer os sonhos de que nos lembramos, quando a noite é uma almofada de estrelas atada à cintura das casas. Dolente, a ponte, abre-se para as margens de uma canção tão triste que o Tejo chora dentro dela; e a chuva é um rito no coração aberto da cidade. Sei do fado de um rio na voz doce de Camané. E as calçadas são a luz a subir a íngreme escada das colinas onde a Saudade de perde e os poetas se perdem e se encontram no escuro redemoinho do vento e entram, de súbito, numa tasca africana, onde o som da morna requebra a voz da morena de olhos cor de canela bravia, terrugem vermelha de distância entre uma luz azul que grita o Tejo e o vago verde do mar das ilhas da Guiné e Cabo-Verde. Ilhas do meu país de olhos de água, onde as ilhas são corpos deitados no mar, em posição de fetos, filhos do encontro; filhos desta miscigenização de almas mais do que de corpos. E é o rosto sempre a fitar a distância de uma escada e no cimo um jardim. E ao longe, em perfil de serpente engolindo a água e o sonho circula o Tejo por dentro da voz: “Sei de um rio”... E deus que assiste a tudo isto dentro do nosso olhar, volta o seu rosto à interior distância, ao sem tempo e sem espaço onde se nasce muito antes de haver mundo e de nos lembramos de sempre ter havido, para o nosso canto, uma voz anterior às estrelas, como diz o poeta: um rio que nasceu antes de haver Natureza e do mesmo tempo de haver e não haver. Tempo anterior a tudo, antes mesmo de Deus. Tempo da Saudade, fado tão nosso!


Que buscas neste blogue?

Que buscas neste blogue, que procuras trazer a ou colher neste écrã, que puro, perfeito e livre em ti, todos e tudo não haja?

METEOROLOGIA PESSOAL

O Instituto Sismológico Nacional
admite se repita o sismo
de magnitude 5.8 na escala de Richter
com epicentro 160kms a sudoeste
do Cabo S. Vicente

a Meteorologia prevê
para amanhã, quinta-feira,
céu geralmente nublado,vento forte
com aguaceiros frequentes

Tudo certo
-tudo certo
e ao mesmo tempo errado

Até porque tu vens,
vai haver sol em vez de nuvens,
a Terra estará firme
que nem velha fonte de mármore de Aldeia

de chuva nem um pingo
porque amanhã tu vens,
só por isso
a quinta-feira de amanhã
será Domingo
Ryno

«O vento e a chuva cessaram, o zénite está sereno, as nuvens dissipam-se, o Sol, retirando-se, ilumina a colina com os seus derradeiros raios, o rio corre avermelhado da montanha ao vale. Doce é o teu murmurar, ó rio!, mas mais doce é a voz de Alpin, quando ele entoa o canto fúnebre. A sua cabeça pende com a idade e os meus olhos cavos estão rubros de chorar. Alpin, excelente cantador, porque é que na colina silenciosa, tu gemes como uma rajada de vento na floresta, como uma vaga numa praia remota?»

Goethe in Werther, Editorial Verbo, p.166.

domingo, 19 de abril de 2009

Colecção de Deuses

No princípio Elohim criou o céu e a terra. E a terra era deserta e vazia, e o espírito de Elohim esvoaçava sobre as águas. Nesse tempo, Deus repousava a sós consigo próprio. Deus tinha, na altura, um estranho nome: Abismo. Este nome não significa que ele fosse uma cavidade abrupta, ou a vasta extensão dos oceanos primordiais. Significa que era superior a todas as qualidades humanas. Abismo ignorava, igualmente, as qualidades que é costume atribuir a Deus: ciência, sabedoria e verdade. Não era o Todo, não era o Uno, não era o Bem, nem o Pai, nem o Senhor. Quem era, então, esse Deus indizível e incompreensível, acerca do qual não se podia afirmar nem negar nada? Talvez seja possível arriscar que Abismo era o imenso Nada, o ilimitado Não-Ser que contém em si a possibilidade de todos os nomes que existem. É-nos dito no mito que junto a Abismo repousava uma entidade feminina: Silêncio. Silêncio foi concebida na negação de todo o espaço e na negação de toda a linguagem. Abismo e Silêncio fundiam-se e anulavam-se numa perfeita unidade andrógina. No fim, a pureza absoluta deste par foi violada. Abismo depôs uma semente em Silêncio, surgindo, deste modo, um acto de criação no coração do Não-Ser. Silêncio ficou grávida e gerou Intelecto, em tudo semelhante a Abismo e Silêncio. No entanto, enquanto Abismo e Silêncio se mantiveram na obscuridade e na incompreensibilidade, Intelecto habitou a luz clara do ser, do conhecimento e da palavra.

Esfera Armilar - Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!

“Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta”

- Guerra Junqueiro, “Anotações”, Pátria [1896], Porto, Lello & Irmão, s. d., p.185.

“Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência.
[…]
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos dito, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral”

- Fernando Pessoa, “A Doença da Disciplina”, in Elogio da Indisciplina e Poemas Insubmissos, s.l., C.E.P, s. d., pp.5 e 7 [grafia actualizada].

O perturbante aumento da actualidade das palavras de Guerra Junqueiro, 112 anos depois, agudiza ainda mais a mesma actualidade das de Pessoa. Entram no lombo como bandarilhas. Os portugueses deixaram de fazer jus aos seus antepassados lusitanos, deixaram de ser o “estranho povo” “que não se governa, nem se deixa governar”, referido pelo ditador romano Gaius Julius Caesar. Perderam a insubmissão que primeiro lhes recortou fronteiras e depois lhes rasgou todas as fronteiras, tornando-os viajantes do mundo. Hoje, não só se governam, no desenrascanço da sobrevivência quotidiana, como sobretudo se deixam governar, por toda a espécie de lobbys político-económicos e culturais, nacionais e trans-nacionais. Governam-se deixando-se (mal) governar, espoliados de memória e aspiração, tempo e energia, inquietação e reflexão, espoliados social, política e economicamente. Escravos do trabalho que têm e não têm, não possuem tempo senão para trabalhar ou procurar trabalho, sempre ao serviço dos seus donos, as forças político-económicas trans-nacionais, os seus títeres nacionais e as obscuras forças mentais e pulsionais que avassalam o mundo por fora e por dentro de cada consciência.

Se este diagnóstico se quadra a Portugal, que dizer das demais nações lusófonas? Serão os seus estados e sociedades mais justos e as suas populações mais conscientes, em termos individuais e colectivos? Serão as suas vidas mais isentas de servilismo perante as grandes potências político-económicas e mentais da globalização triunfante e os seus agentes nacionais?

Neste quadro, recordo o melhor que ouvi na primeira conferência pública organizada pelo MIL, em 24 de Janeiro, sobre o futuro da CPLP. Foi Miguel Real, ao afirmar que a Lusofonia só faria sentido se dela resultasse um “choque cultural” à escala mundial, uma transformação profunda do modo de conceber e realizar o sentido da existência humana no mundo. Na verdade estas palavras encarnam a essência daquilo a que Camões, António Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva chamaram Portugal e comunidade lusófona: o contributo para uma profunda transformação mental e cultural do próprio homem, com a consequente expressão numa nova civilização a nível planetário, universal e trans-lusófona. Estas palavras encarnam a essência da proposta consagrada na Declaração de Princípios e Objectivos do MIL.

Todavia, perante a situação mental, cultural e sócio-político-económica das nações lusófonas, cabe perguntar: como? Será que a sua mera aproximação, nos quadros da CPLP ou noutros, contribuirá realmente para isso? Ou, pelo contrário, essa aproximação, mantendo-se tudo como está, não virá apenas alimentar e reforçar a opressão a que os povos lusófonos estão neste momento sujeitos pelos agentes nacionais, culturais, políticos e económicos, do sistema mundial dominante? Será possível esse “choque cultural” no quadro das actuais ideias e práticas, sem uma profunda transformação de cada nação lusófona e de cada lusófono? Não duvido, tenho a certeza de que não. Como tenho a certeza de que, pensando o contrário, não estaremos senão a forjar uma ficção ideal com a dupla função de nos consolar da realidade adversa e de sancionar a recusa da sua transformação. Com isso nos arriscamos a que os esforços feitos no sentido da aproximação lusófona sirvam antes os actuais senhores do mundo, que actualmente tão bem movem as peças lusófonas no xadrez mundial.

Com efeito, de que “choque cultural” planetário, de que “Quinto Império” seremos o embrião se continuamos tão disciplinadamente submissos, como os burros de carga de que fala Junqueiro, carregando nos esfalfados lombos todos os donos do mundo e, pior, a nossa esperança reduzida ao quotidiano fardo de palha e a nossa ideia de que de outro modo não pode ser? Que objectivos do MIL se cumprirão sem um profundo questionamento da nossa passividade individual e colectiva, sem uma profunda transformação das nossas ideias e práticas, sem uma radical exigência de maior justiça social e económica, de maior responsabilidade cívica e política, de maior despertar mental e cultural nas nações de língua portuguesa? Onde estão as propostas nesse sentido, semelhantes às da secção portuguesa do MIL? Onde estão, nos crescentes aderentes ao MIL, as iniciativas de debate da Declaração de Princípios e Objectivos, solicitadas há mais de ano e meio? Onde estão outras iniciativas, além dos lançamentos da “Nova Águia”? Onde está a criatividade? Para que se adere ao MIL? Apenas para dizer que se pertence a qualquer coisa, assinar petições e postar num blogue?... E ficar à espera?

Sim, Pessoa, tens razão: “Portugal precisa dum indisciplinador”. Não, Pessoa, não tens razão: Portugal precisa que os portugueses deixem de, como também escreveste nesse mesmo texto, estar “sempre à espera dos outros para tudo”. Portugal precisa que cada um de nós se indiscipline, se não submeta, se insurreccione. Primeiro contra si mesmo e depois contra tudo o que oprima. Portugal precisa que cada um de nós se empine e lance ao chão a mente estúpida, conformista e balofa que nos governa, logo seguida de todos os que nos montam. Portugal precisa que cada um de nós se inquiete e desperte, tornando essa inquietação e esse despertar contagiantes, desde a nossa vizinhança a todo o mundo.

Só então, homens de pé e não burros de carga, teremos autoridade para erguer a voz e bradar, apontando o caminho de saída:

Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!

A noite repousa sob teus braços

Escorrego na noite húmida e quente, e aguardo por ti, que foste buscar os sonhos de fogo que dançam na escuridão. A noite repousa sob teus braços.

Sobressaltos - "[...] senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida"

[fala do Diabo] "A verdade, porém, é que não existo - nem eu, nem outra coisa qualquer. Todo este universo, e todos os outros universos, com seus diversos criadores e seus diversos Satãs - mais ou menos perfeitos e adestrados - são vácuos dentro do vácuo, nadas que giram, satélites, na órbita inútil de coisa nenhuma.
[...]
Sou eu. Sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Talvez, no fundo imenso do abismo, Deus mesmo me busque, para que eu o complete, mas a maldição do Deus Mais Velho - o Saturno de Jeová - paira sobre ele e sobre mim, separa-nos, quando nos devera unir, para que a vida e o que desejamos dela fossem uma só coisa.
[...]
De tudo quanto não vale a pena ser faço eu meu domínio e meu império, senhor absoluto do interstício e do intermédio, do que na vida não é vida. Como a noite é o meu reino, o sonho é o meu domínio. O que não tem nem peso nem medida - isso é meu"

- Fernando Pessoa, A Hora do Diabo, edição de Teresa Rita Lopes, Lisboa, Assírio & Alvim, 1997, pp.29-30 e 31-32.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Há anjos assim...





O ANJO MARINHO

O pensamento às vezes torna-se
material e tórrido. E às vezes
nas imagens da ausência nada
é frio. Ou outras associações
nascem. Estou sem Ti percorrida
por esse fogo. As faces cálidas
que ainda ecoam. As faúlhas
azuis e a baba do verdadeiro
fogo. Expectante e em cinza. Não
me reconheces já. Eu transfiro
o meu poder para a cinza. É
encantatória. Suave e com um
cinzento de rolas. Certos dias
a poeira brilha. Tu ainda
podes aturdir-me. Soprar
com lentidão para dentro do mar.
Até que eu me deixe afastar.


Fiama Hasse Pais Brandão
Obra Breve

***

Neptuno chamou a si todos os anjos do Mar e disse-lhes: "Há uma única coisa a fazer hoje e sempre." A voz grave e sábia, ao mesmo tempo doce de Mar salgado, os olhos brilhavam e os cavalos marinhos esperavam pela palavra certa, no momento certo em que desatassem a correr pelas ondas fora, levados pelas correntes mais quentes. Correntes sanguíneas de sangue azul, de um sangue real. Não era real de realeza, era real de realidade, porque era real. O Sangue do Mar corria quente nessa tarde. Porque o Rei Sol também tinha sido convidado e trouxe de presente, para todos os seres marinhos, os seus braços abertos infinitos de carinho e de Amor pelo Grande Azul.
"Que os anjos de todos os mares, voem bem fundo."A voar, submersos todos cumpriram desde o primeiro dia do Universo. Hoje, sempre que os sentimos a passar e a rebentar na espuma, achamos graça. Eles são graciosos no seu jeito de ser. São acolhedores na sua presença infinita e celestial. São celestes no Mar. Descem em cada gota de chuva, ainda sem asas preparadas para submergir. Não sentem o vento do mesmo modo, os seus olhos não se assustam com o tamanho das vagas que se formam em alto Mar, nem com os barcos, nem com os barqueiros que lhes aparecem pela frente. Os pescadores sabem sempre onde encontrá-los. Sabem como chamar por eles em tempestades da vida. E, quando ganham as asas de Mar, aprendem a voar no Mar, como peixes, como algas, como o próprio Mar sabe ser-se. São Mar com ele, são líquidos e têm aquela qualidade de se poderem deslocar com o sabor a sal que vai e vem, que embala, que rebenta e sempre regressa.

Há anjos assim líquidefeitos, flutuam e ondulam no Mar da vida. Nem o fogo que os ilumina, nem o vento que lhes sopra nas asas e lhes solta os cabelos, nem a areia lisa, quente, fina, nenhuma destas companhias se faz rogada, se fica por si, se queda numa esquina de uma rocha à espera de um novo dia, sem a bênção maior e mais linda de se ver em frente ao Mar. Os anjos marinhos soltam palavras de uma língua desconhecida para todo o sempre dos lábios branco-cal, da sua boca sai uma brisa azulada, que muda de tonalidade consoante as palavras e os sons vão mudando.
A brisa solta-se do azul-claro-água ao azul-escuro-noite. Mas há azuis de todas as cores nessa bênção. As Sereias* vergam-se aos seus pés, saúdam-nos de uma forma inigualável e inimaginável. E eu que sou Sereia* como qualquer outra, só canto nessa altura. Só canto, para os anjos marinhos. No meu feitiço, a fada do Mar disse-me que seria assim para todo o sempre. Só cantaria para os anjos do Mar ouvirem. E mesmo que eu tente cantar para outros seres marinhos, da minha boca não sai um único som que se ouça aquém ou além da praia da minha vida*

Cicatriz

Saudade.
De ti.

Lágrima.
Explosão.
Tempo.
Templo.

Doirada.
Alva.
Divina.
Terna.

Abraça-me.
Possui-me.
Evola-me.
Tem-me.

Quedo.
Nos teus braços.
No teu corpo.
Respira-me.
Sufoco.

Cicatriz.

Manhã emersa

Quando a névoa pousa sobre as estevas
e os lábios da terra humedece
se ergue e sobe as encostas
cortejando os montes, socalcos e fragas
com giestas floridas e rosmaninho
os céus abrem-se e sagram-se Manhã.

Saudade

Eis-me de volta: olá a todos. Agradeço desde já a Paulo Borges por me dar a (segunda) oportunidade para escrever neste espaço. Pensei, para este primeiro post, alterar uma letra dos Xutos & Pontapés, de "só sei que amar é querer-me a mim" para "só sei que amar é querer-te a ti". Feito. Agora, interrogo-me catarticamente sobre o que será a saudade, tão falada neste espaço. Pergunto, então: o que é a saudade? E será um sentimento exclusivamente português? Estamos já a avançar que é um sentimento e a resposta à segunda pergunta é: não, a saudade não é um sentimento exclusivamente português. Penso que sente saudade todo aquele que ama, no presente, e que se encontra apartado do "objecto" amado. Posso estar errado, mas julgo que é quase como o ciúme, sentimento possessivo, distinta da melancolia, sentimento difuso que nos aproxima da apatia. E como distingui-la da nostalgia? Não é a nostalgia o rememorar de momentos passados? E, quando nostálgicos, dizemos - ah... saudade! Li, algures, que a saudade é uma mistura de memória e desejo, o que é bastante óbvio - memória do "objecto" amado, desejo de o ter de novo. Penso, sobretudo, que sente saudade quem ama e que essa saudade é a vontade de ter presente o "objecto" ausente que tanto ama. Talvez fosse interessante distinguir entre estes três sentimentos: saudade, nostalgia e melancolia.

Cantos do Despertar - "Não há nada a negar, nada a afirmar ou a apreender"

16. As verdades feitas de palavras são ilusórias.
O espírito que se tornou o não-espírito é a única realidade.
Isto é a realização; isto é o bem supremo.
Amigos, deste bem supremo surge o despertar.

17. O espírito absorvido pelo indizível é puro e perfeito.
Ele é inafectado pelo bem e pelo mal deste mundo,
como o lótus permanece intacto, impoluto pela lama onde lança raiz.

18. É certo que todas as coisas devem ser vistas como um encantamento, uma magia.
Se não fazeis nenhuma distinção entre samsara e nirvana,
se não desejais ou rejeitais nem um nem o outro,
o vosso espírito permanecerá firme, inabalável,
livre do véu da obscuridade.
Além do pensamento, conhecereis a vossa essência incriada.

19. Este mundo ilusório jamais existiu desde o início.
Desprovido de finalidades, ele é sem desígnio.
É assim que aparece àqueles que velam numa contínua meditação.
Indizível, indestrutível e sem ego.

20. A consciência, o mental e todo o conteúdo do espírito são “Isso”.
Do mesmo modo, o universo e tudo o que parece ser dele distinto são “Isso”.
Todas as coisas que podem ser percepcionadas e aquele que percepciona,
mesmo a obscuridade, o ódio, o desejo e a inteligência são “Isso”.

21. Como uma lamparina que brilha na noite da ignorância espiritual,
“Isso” elimina as obscuridades do espírito.
Com um mental disperso,
quem pode imaginar a pura consciência do sem desejo ?

22. Não há nada a negar, nada a afirmar ou a apreender,
pois “Isso” não pode ser compreendido.
Por causa do poder de divisão do mental, sobrevém a ilusão.
A realidade última permanece indivisa e pura.

23. Se permaneceis na oposição do uno e do múltiplo,
a unicidade não se revelará, pois ela é dada aos seres livres da dualidade.
A jóia está latente no coração do espírito.
Ela é revelada pela meditação.
A consciência indestrutível é a vossa verdadeira essência.

24. Uma vez instalado no reino da beatitude,
o espírito torna-se livre.
Desta forma todas as coisas lhe são proveitosas;
mesmo quando parece correr atrás dos objectos dos sentidos, não é alienado por eles.

25. Em primeiro lugar, vêm os rebentos da alegria e da felicidade,
depois as folhas de uma glória inefável.
Se nada dispersa a perfeita interioridade,
a indizível beatitude surgirá.

26. Finalmente, o caminho espiritual percorrido não é nada:
que o ser esteja repleto de paixão ou não, a realidade é vacuidade.

27. Mesmo se aparentemente sou como um porco cobiçando o lamaçal do mundo, que faltas permanecem num espírito desprovido de máculas ?
Aquele que não é afectado pelo mundo, como poderia ele ser obstruído ?

- Saraha, Canto Real, in L’Essence Lumineuse de l’Esprit, tradução francesa e apresentação por Erik Sablé, Paris, Éditions Dervy, 2005, pp.39-54.

quinta-feira, 16 de abril de 2009

Fernando Pessoa em Nova Iorque: os heterónimos como Teatro da Vacuidade



No próximo dia 22 de Abril, às 18h, Paulo Borges realiza uma conferência na New School University/Departamento de Filosofia (6 East 16th Street, 10th Floor, aula 1009) intitulada: "Fernando Pessoa: The “Fictions of the Interlude” or the Theatre of Vacuity".

procrastinação

em tempo de crise -comprador procrastina
em tempo de crise - decisor procrastina
em tempo de crise - reformador proscratina

e você? já pensou
se proscratina ou não?

se ainda não pensou
saiba que está
procrastinando

quarta-feira, 15 de abril de 2009

A Saudade e a Natureza Primordial

«...a saudade enquanto esse inquietante vínculo desiderativo entre o que o sujeito é no plano da temporalidade e o "clima" ou "terra" onde "outrora" nasceu e sonhou.»
Esta pequena frase, citada do livro Jogos do Mundo escrito pelo Professor Paulo Borges, evoca o tema da saudade, tema muito reflectido pelo Professor em vários livros seus, dos quais destaco «Da Saudade Como Via de Libertação». Segundo o investigador, saudade tem origem na palavra latina solitate que significa solidão. Solidão de quê?
Já Cem Komurcu, no seu artigo "Melancolia em Istambul e Lisboa" publicado na revista Nova Águia Nº3, cita o seguinte pensamento de Schelling: «O mais escuro e por isso mais profundo da natureza humana é a Saudade, como que a gravitação interior do ânimo, por isso melancolia na sua aparição profunda.» Em linhas muito gerais, no artigo mencionado o pensador turco-germânico escreve sobre o estado de melancolia que reina tanto em Istambul como em Lisboa. Estando Istambul separada pelo Bósforo, os seus habitantes sentem-se fragmentados devido à cisão existente entre a mentalidade e cultura europeia e asiática. A melancolia de Lisboa é diferente, mais metafísica, pois estando esta cidade situada no finisterra, na ponta ocidental da Europa, encontra-se de costas voltadas para o oceano in-fundo e in-finito, fluindo o Tejo do finito para o in-finito, do mundo para o i-mundo, da terra para o céu. Assim, devido a um sentimento de separação e de solidão, Istambul e Lisboa são cidades melancólicas. Separação de quê?
Erich Fromm expõe a sua teoria do amor no livro "A Arte de Amar", afirmando que durante evolução, o homem emergiu do reino animal e transcendeu a natureza através do desenvolvimento da razão. Uma vez separado, não consegue voltar ao dito paraíso-um estado primordial de união com a natureza. Curiosamente, Fromm aborda o mito de Adão e Eva, afirmando que estes ao separarem-se da natureza sentiram-se envergonhados de estarem nus devido à consciencialização da sua diferença de sexos. De seguida Fromm afirma que «A consciência da separação humana, sem haver uma religação através do amor, é a origem da vergonha. É também a origem da culpa e da ansiedade.» Neste livro, o psicólogo defende o amor como a via de regresso a essa natureza primordial do qual o homem se sente separado.
Também o Professor Agostinho da Silva aborda o tema do amor. Em Sete Cartas a um Jovem Filósofo (1945) escreve: «quando se ama, em silêncio se ama: às vezes o sabe a mulher amada, mas creio até que num amor que fosse pleno, em que nada entrasse das preocupações da terra, nem ela o saberia.» Este amar em silêncio evoca o estado de união que existe entre sujeito e objecto após a diluição do ego e dos seus ego-interesses. É que o Professor, melhor que ninguém, sabia que o sentimento de si, com as suas tendências de fixação, de aversão ou de ignorância é o grande causador da cisão entre o homem e a natureza. Mas afinal que natureza é esta? Julgo que a natureza de que fala Fromm é a consciência primordial, a consciência que sempre esteve, está e estará com o homem (e sem o homem) e com a qual em silêncio se ama, em que nada entrasse das preocupações da terra, preocupações que têm como origem a mente egótica que ilusoriamente cremos que existe.
Em relação a este assunto, a via budista propõe formas interessantes de limpeza da mente. O Hinayana ou pequeno veículo, apresenta várias técnicas que destroem a ilusão da ex-istência do ego. Já o Mahayana ou grande veículo concentra-se mais no aperfeiçoamento do sentimento de amor pelo próximo. Se o primeiro veículo dá mais ênfase ao re-conhecimento da vacuidade do ser, o segundo veículo preenche essa vacuidade com amor e compaixão. Através do treino das Quatro Ilimitadas, o praticante budista enche o cálice da sua consciência livre de véus mentais conceptuais e emocionais com amor, compaixão, alegria e equanimidade, o qual lhe permitirá ao longo do tempo re-conhecer a sua consciência primordial.
Creio que agora já se pode responder às perguntas acima colocadas. Por algum motivo o ser humano separou-se da natureza. Segundo o Professor Agostinho da Silva, na Idade de Ouro o ser humano alimentava-se de frutos. Todavia os frutos começaram a escassear e ele teve que procurar outros alimentos. Começou a matar os seus irmãos animais e um sentimento de culpa invadiu a sua mente, separando-o daquilo a que anteriormente se sentia ligado e que o fazia sentir-se infinito, omnipresente, Deus. Se actualmente nos sentimos em solidão, em depressão, em crise (sentimento muito presente nas nossas mentes actualmente), é porque os véus mentais não possibilitam a contemplação da nossa natureza primordial. Se a Saudade e a melancolia impregnam de lava as nossas mentes, é porque no fundo do vulcão algo nos apela a regressar. Creio que através do amor, da arte de amar, da oração, da meditação, através de vias espirituais traçadas por mestres do amar como Cristo, Maomé ou Buda é possível re-gressar ao "clima" ou "terra" onde "outrora" nascemos e sonhámos para viver a vida plenamente.

Sobressaltos - “Que há dentro deste ser, que não tem limites? "

“Que há dentro deste ser, que não tem limites? Que há dentro deste ser de real e verdadeiro? Cada um assume proporções temerosas. Caem lá dentro palavras, sentimentos, sonho – é um poço sem fundo, que vai até à raiz da vida. À superfície todos nós nos conhecemos. Depois há outra camada, outra depois. Depois um bafo. Ninguém sabe do que é capaz, ninguém se conhece a si próprio quanto mais aos outros, e só à superfície ou lá para muito fundo é que nos tocamos todos como as árvores de uma floresta – no céu e no interior da terra. De mais baixo ainda vêm terrores, ânsias, desespero… A maior parte das criaturas não só se ignoram como não passam nunca da camada superficial.
É um erro supor que o homem ocupa um espaço limitado no universo: cada homem vai até ao interior da terra e até ao âmago do céu. A parte de cima foi cortada, mas o que resta da alma é um poço sem fundo. Uma obscuridade”

- Raul Brandão, Húmus, Lisboa, Vega, 1991, 3ª edição, pp.47-48.

KALUNGA - Um poema em 5 movimentos de Miguel Gullander

1.

Acendo a pequena vela para na treva perscrutar, rápido e sacudido, nos contornos enrugados sobre o tecido do próprio bafo da noite – o predador corpo da fera, o grande mamífero que me observa.
Dou-me conta que estou a ser testemunhado pelo enorme tigre preto.
Súbitos dois pontos de luz da cor-do-Destino movem-se na noite. Esperando momento exacto de atacar.
De me atacar.

2.

Faça o que fizer desta esteira de vida, este fio entrançado que me foi atribuído – faça o que fizer – é inexorável que aquilo aconteça.
A minha cabeça nua roda sobre o delicado eixo do pescoço, roda, roda, roda – nesta Roda das Existências e dos Seres.
Rodo o olhar como quem contempla em toda a volta, em todas as direcções – toda a extensão da abóbada celeste, nesta noite do hemisfério sul.
Noite africana.
Vejo o escorpião no coração do Cruzeiro do Sul – sinto, ao lado, Orion pulsante e – então! – sei que toda a minha cabeça está já na boca do tigre.
Já lá está – esperando pelo inevitável instante em que as mandíbulas, súbitas, se cerrem sobre o meu crânio.
Para com ele explodir em fagulhas de luz e perfume, bem na tua direcção.
Animal.

3.

O caçador ao falar disse estas exactas palavras:
“Existe uma relação directa entre o amor e a morte.”
Eros e Thanatos.
“Tens de amar para conseguir matar. O verdadeiro caçador sabe que a Palanca abatida não poderá morrer – pois não há morte no universo.”
Apenas Kalunga e as suas sombras, reflexos – como Mar Consciente e as suas ondas rebeldes.
Ondas que procuram o seu par por entre a espuma e os arremessos de paixão oceânica.
“Tens de amar a Palanca – verdadeiramente – para a conseguires caçar.
O predador tem de seduzir alguém a quem é impossível de mentir.”
Também não há mentira no universo – apenas loucos e crentes que acreditam em si mesmos.
A Palanca não vê ilusões, nem miragens, ou véus – mentiras. Isso ela não vê.
Ela vê-te a ti.
Tens de, na treva, perscrutar a tua presa. Ela procura esses teus olhos da cor-do-Destino – inexoráveis.
Tu moves-te rápido, musculado, sacudido – em total silêncio. Apenas os teus movimentos poderosos dedilham ondulações melódicas que enrugam o bafo da noite.

4.

Naquela Baia Azul, em Benguela, as águas do mar são estranhamente quietas e transparentes. Como vidro esmeralda.
Kalunga chama-a, puxa-a, seduze- a até si.
Ali, tocando a orla duma costa onde homens vendiam homens a outros homens.
Ali, ela costuma levantar-se muito cedo pela manhã.
Após acender uma vela perfumada, coloca-a à entrada da sua miserável casa, como prova da luz que a tudo observa e inunda. Como ondas.
As areias brancas sopram suavemente um fio de assobio enquanto ela caminha até às águas – enquanto se dirige a Kalunga os seus pés sussurram um sim, renovado, contínuo. Sim sim sim.
O convite. O ágape.
Os seus pés negros brilham porque a sua pele é santa e ungida pelo óleo trazido do outro lado do mar, do Mistério.
Ela sempre entra nas águas quando o sol começa a sua magnífica aurora. Nesses dias ela está feliz, canta sem palavras – e sabe pisar onde os outros não compreendem.
Ela também caminha sobre as águas quando o sol se põe. Mas, nesses crepúsculos o seu rosto fica riscado pelas lágrimas que através dos seus olhos encontram alívio e regresso – retorno à foz – à paz – a Kalunga.
Todas as dores desta terra, todas as injustiças, todos os pecados choram-se-lhe pelos seus olhos.
Ela esvaí da dor os corações de todos aqueles nela pensam. Ela devolve inocência a todos aqueles cujo seu corpo é tecido de dor e medo. Nesse tecido, ela, o fogo renova e purifica.
Ela é fogo sobre as águas.
E hoje as águas diamante da Baía Azul estão totalmente como tu as amas quando com elas sonhas. Tal como sonhas com o calor, e o sol, e o corpo nu que entra no mar quente e salgado.
Ela é linda e o seu corpo nu é manifestação, reflexo e sombra – síntese em gota de cacimbo – de toda a harmonia que o Amor, Deus, pode mostrar aos olhos de um homem que procura ver a Beleza. O Eterno.
Kalunga.
Estou com os meus pés roçando a orla-em-textura destas águas acariciantes. A ondulação sob as palmas dos meus pés – o mar todo em meu redor – também eu me sinto a viajar sobre ti até ao sem-fim.
Experimenta.
Vem até nós, aqui, nesta praia. Entra nu nas águas e vê atentamente a sua superfície. Vê como as suas ondulações são também tocadas pela sola dos teus pés.
As mínimas variações da ondulação em redor dos teus tornozelos espelham os toques da brisa da manhã no teu tronco despido.
Estás com o Mar todo em teu olhar.
Com sorte viverás o milagre. Com sorte andarás mesmo sobre as águas.

5.

A noite na Baía, sob as estrelas... é como amor, esta noite em África: uma presença envolvente e observante.
Diz-me a miúda negra de pés brilhantes:
Podes tentar abandonar-me. Podes viajar para longe. Podes partir sem querer voltar – e podes querer regressar – mas, lembra-te... sempre que me quiseres ver e ter, basta acenderes uma vela perfumada –
E eu levarei vinho doce como o amor quando sonhamos.
O amor das crianças sem passado e sem futuro. Agora.
Eu entrarei pela noite do teu quarto, e serei a presença que tudo o resto te fará esquecer. Serei fogo sobre as águas.
E nesse instante olhamo-nos no escuro, vendo tudo.
E quando acordares verás tudo pelos meus olhos. Verás este mundo como eu o vejo. E chorarás. Muito, muito.
África.

(Publicado na revista "Egoísta" e enviado para os leitores deste blogue)

terça-feira, 14 de abril de 2009

Epitáfio Desconhecido

Epitáfio Desconhecido

Quanta mais alma
Por mais que a alma ande no amplo informe,
A ti, seu lar anterior, do fundo
Da emoção regressou, ó Cristo, e dorme
Nos braços cujo amor é o fim do mundo.

Fernando Pessoa, 1929
Um epitáfio é uma frase escrita sobre um túmulo. Epitáfio Desconhecido sugere a inscrição de uma frase num túmulo de um desconhecido, de alguém anónimo e esquecido no tempo e no espaço. A noção de amplo informe evoca o mundo das formas, do mundo pensável e tangível, o mundo do demiurgo que por ser impermanente e em constante mudança, é informe e sem substância. Penso que este amplo informe se coaduna com um axioma da filosofia budista o qual afirma que todos os fenómenos compostos são impermanentes. O amplo corresponde aos mundo dos fenómenos compostos, do qual, por exemplo, o ser humano faz parte; o informe corresponde à impermanência, à desagregação, usando o mesmo exemplo, do corpo humano.
Segundo a filosofia budista, o ser humano é composto por cinco agregados: o corpo, a sensação, a percepção, as construções mentais e a consciência. É desde o momento da concepção que estes agregados se agregam para simultanea, não posteriormente, se desagregarem, tudo isto sendo um processo instantâneo, ou seja, "evoluindo" o ser humano desde a sua concepção a morte. Por isso, este epitáfio acompanha-o desde o início, desde a sua origem pois a origem não é mais do que o seu fim.
A expressão lar anterior, o sítio para onde o morto regressa é Cristo. Cristo é uma palavra proveniente do grego e que significa ungido. Na minha perspectiva, o Ungido é o ser que está imbuído de algo que o torna mais puro, mais perfeito, sendo esse algo, a meu ver, a consciência primordial, a Saúde primordial. O morto regressa ao seu lar anterior, a Cristo, ou seja, o morto desagrega-se e a sua consciência primordial resplandece, algo que no budismo pode ser designado como Estado de Buda. É curioso sublinhar como o defunto regressa ao seu lar: do fundo da emoção. Julgo que Pessoa aqui evoca a saudade, aquele estado de espírito que leva o Homem procurar o que de mais fundo há em si, a Saúde primordial.
O alma do defunto regressa então a Cristo e dorme nos braços cujo amor é o fim do mundo. O fim do mundo aqui é o limiar (não o limite) do mundo que se abre para o infinito. Cem Komurcu, num artigo publicado na revista Nova Águia (Melancolia em Istambul e Lisboa), afirma que Lisboa tem dois rostos, o rosto da finitude que é a Lisboa finisterra, a Lisboa que segura um ponto extremo do continente europeu (juntamente com Istambul), e o rosto da infinitude que se encontra para além das costas do finito, o oceano in-fundado. Ligando o Tejo o mundo ao i-mundo, penso que o limiar do mundo é o seu fim, lugar mágico a partir do qual os portugueses de quinhentos partiram à conquista do infinito: o nosso Tejo, o Tejo da humanidade.

Esfera Armilar - Natureza da mente, cultura, aristocracia igualitária

Se examinarmos com sinceridade o que é isso a que chamamos “mente”, “alma” ou “espírito”, e que nos habituámos a designar como “eu”, questionando e suspendendo a sua irreflectida e compulsiva identificação com os múltiplos fenómenos mentais e físicos - pensamentos, imagens, emoções, sensações - , poderemos chegar à conclusão de ser inapreensível como algo, no sentido de uma entidade, com características definidas, que a distingam de outras entidades. Nesse sentido escreveu Fernando Pessoa: “O abismo é o muro que tenho. / Ser eu não tem um tamanho”. Ou ainda: “Conhece alguém os limites à sua alma, para poder dizer: eu sou eu?”. A “mente” parece designar assim uma abertura sem contornos, forma ou figura, irredutível a todas as representações, ao mesmo tempo que lhe são inerentes duas qualidades: a consciência, pela qual percepciona claramente todos os fenómenos, externos e internos, e a sensibilidade, pela qual se revela capaz de uma plena empatia com o mundo e os seres, disponibilizando-se para agir em prol das suas necessidades e do seu bem.

Esta natureza profunda e primordial da mente é porventura a mesma em todos os homens e seres, para além das suas transitórias e cambiantes condições psicossomáticas. No que respeita aos homens, ela transcende todas as suas diferenças étnicas, culturais, linguísticas, nacionais e de condição social, dotando-os de um mesmo potencial de conhecimento sensível, amoroso e compassivo, de si e do mundo, que pode, e por isso deve, ser plenamente desenvolvido, coincidindo aliás esse pleno desenvolvimento com a aspiração comum ao que se chama “felicidade”.

A verdadeira cultura, inconfundível com erudição, é a do pleno conhecimento e desenvolvimento de todas as potencialidades da mente, ou seja, a plena realização de si, o que só pode ser realizado por indivíduos e nunca por grupos, colectividades ou nações. É para esse objectivo que se devem orientar a civilização e as nações e é para esse objectivo que se devem mobilizar todos os recursos científicos, tecnológicos, sociais, políticos e económicos. É para esse objectivo que se deve assegurar a satisfação das necessidades elementares de todos os homens, exortando-os a que ponham isso ao serviço do pleno conhecimento e desenvolvimento de si.

O estado actual do mundo expressa a profunda incultura geral dos homens, no sentido de cultura atrás definido, desde os que detêm o poder religioso, cultural, político e económico, até aos que aspiram a detê-lo e à massa global da humanidade. O estado actual do mundo é por isso o de uma crescente insatisfação e infelicidade. A busca de uma alternativa torna-se mais premente. Tornar-se desde já essa alternativa, mediante o conhecimento aprofundado de si e o pôr-se ao serviço da sua promoção em todos, é a tarefa dos homens mais conscientes e sensíveis em cada povo, nação e cultura. São eles que, mesmo sem se conhecerem e sem pensarem nisso, são o germe de um mundo outro. Por gosto do paradoxo, ou seja, por amor à verdade, chamo-lhes aristocracia igualitária, pois são os mais excelentes na mesma medida em que aspiram a que todos o sejam, sem jamais como tal se considerarem. A tudo nivelam, por cima, a tudo elevam, acima de si, sem jamais se acharem especiais.

Disseminados por todas as nações, culturas, religiões, irreligiões, organizações humanitárias, políticas e económicas, importa que se conheçam, unam e delineiem estratégias para que o destino do mundo mude. Eles são as armilas da grande Esfera.