domingo, 19 de abril de 2009
Esfera Armilar - Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!
“Balanço patriótico:
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta”
- Guerra Junqueiro, “Anotações”, Pátria [1896], Porto, Lello & Irmão, s. d., p.185.
“Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência.
[…]
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos dito, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral”
- Fernando Pessoa, “A Doença da Disciplina”, in Elogio da Indisciplina e Poemas Insubmissos, s.l., C.E.P, s. d., pp.5 e 7 [grafia actualizada].
O perturbante aumento da actualidade das palavras de Guerra Junqueiro, 112 anos depois, agudiza ainda mais a mesma actualidade das de Pessoa. Entram no lombo como bandarilhas. Os portugueses deixaram de fazer jus aos seus antepassados lusitanos, deixaram de ser o “estranho povo” “que não se governa, nem se deixa governar”, referido pelo ditador romano Gaius Julius Caesar. Perderam a insubmissão que primeiro lhes recortou fronteiras e depois lhes rasgou todas as fronteiras, tornando-os viajantes do mundo. Hoje, não só se governam, no desenrascanço da sobrevivência quotidiana, como sobretudo se deixam governar, por toda a espécie de lobbys político-económicos e culturais, nacionais e trans-nacionais. Governam-se deixando-se (mal) governar, espoliados de memória e aspiração, tempo e energia, inquietação e reflexão, espoliados social, política e economicamente. Escravos do trabalho que têm e não têm, não possuem tempo senão para trabalhar ou procurar trabalho, sempre ao serviço dos seus donos, as forças político-económicas trans-nacionais, os seus títeres nacionais e as obscuras forças mentais e pulsionais que avassalam o mundo por fora e por dentro de cada consciência.
Se este diagnóstico se quadra a Portugal, que dizer das demais nações lusófonas? Serão os seus estados e sociedades mais justos e as suas populações mais conscientes, em termos individuais e colectivos? Serão as suas vidas mais isentas de servilismo perante as grandes potências político-económicas e mentais da globalização triunfante e os seus agentes nacionais?
Neste quadro, recordo o melhor que ouvi na primeira conferência pública organizada pelo MIL, em 24 de Janeiro, sobre o futuro da CPLP. Foi Miguel Real, ao afirmar que a Lusofonia só faria sentido se dela resultasse um “choque cultural” à escala mundial, uma transformação profunda do modo de conceber e realizar o sentido da existência humana no mundo. Na verdade estas palavras encarnam a essência daquilo a que Camões, António Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva chamaram Portugal e comunidade lusófona: o contributo para uma profunda transformação mental e cultural do próprio homem, com a consequente expressão numa nova civilização a nível planetário, universal e trans-lusófona. Estas palavras encarnam a essência da proposta consagrada na Declaração de Princípios e Objectivos do MIL.
Todavia, perante a situação mental, cultural e sócio-político-económica das nações lusófonas, cabe perguntar: como? Será que a sua mera aproximação, nos quadros da CPLP ou noutros, contribuirá realmente para isso? Ou, pelo contrário, essa aproximação, mantendo-se tudo como está, não virá apenas alimentar e reforçar a opressão a que os povos lusófonos estão neste momento sujeitos pelos agentes nacionais, culturais, políticos e económicos, do sistema mundial dominante? Será possível esse “choque cultural” no quadro das actuais ideias e práticas, sem uma profunda transformação de cada nação lusófona e de cada lusófono? Não duvido, tenho a certeza de que não. Como tenho a certeza de que, pensando o contrário, não estaremos senão a forjar uma ficção ideal com a dupla função de nos consolar da realidade adversa e de sancionar a recusa da sua transformação. Com isso nos arriscamos a que os esforços feitos no sentido da aproximação lusófona sirvam antes os actuais senhores do mundo, que actualmente tão bem movem as peças lusófonas no xadrez mundial.
Com efeito, de que “choque cultural” planetário, de que “Quinto Império” seremos o embrião se continuamos tão disciplinadamente submissos, como os burros de carga de que fala Junqueiro, carregando nos esfalfados lombos todos os donos do mundo e, pior, a nossa esperança reduzida ao quotidiano fardo de palha e a nossa ideia de que de outro modo não pode ser? Que objectivos do MIL se cumprirão sem um profundo questionamento da nossa passividade individual e colectiva, sem uma profunda transformação das nossas ideias e práticas, sem uma radical exigência de maior justiça social e económica, de maior responsabilidade cívica e política, de maior despertar mental e cultural nas nações de língua portuguesa? Onde estão as propostas nesse sentido, semelhantes às da secção portuguesa do MIL? Onde estão, nos crescentes aderentes ao MIL, as iniciativas de debate da Declaração de Princípios e Objectivos, solicitadas há mais de ano e meio? Onde estão outras iniciativas, além dos lançamentos da “Nova Águia”? Onde está a criatividade? Para que se adere ao MIL? Apenas para dizer que se pertence a qualquer coisa, assinar petições e postar num blogue?... E ficar à espera?
Sim, Pessoa, tens razão: “Portugal precisa dum indisciplinador”. Não, Pessoa, não tens razão: Portugal precisa que os portugueses deixem de, como também escreveste nesse mesmo texto, estar “sempre à espera dos outros para tudo”. Portugal precisa que cada um de nós se indiscipline, se não submeta, se insurreccione. Primeiro contra si mesmo e depois contra tudo o que oprima. Portugal precisa que cada um de nós se empine e lance ao chão a mente estúpida, conformista e balofa que nos governa, logo seguida de todos os que nos montam. Portugal precisa que cada um de nós se inquiete e desperte, tornando essa inquietação e esse despertar contagiantes, desde a nossa vizinhança a todo o mundo.
Só então, homens de pé e não burros de carga, teremos autoridade para erguer a voz e bradar, apontando o caminho de saída:
Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta”
- Guerra Junqueiro, “Anotações”, Pátria [1896], Porto, Lello & Irmão, s. d., p.185.
“Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência.
[…]
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos dito, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral”
- Fernando Pessoa, “A Doença da Disciplina”, in Elogio da Indisciplina e Poemas Insubmissos, s.l., C.E.P, s. d., pp.5 e 7 [grafia actualizada].
O perturbante aumento da actualidade das palavras de Guerra Junqueiro, 112 anos depois, agudiza ainda mais a mesma actualidade das de Pessoa. Entram no lombo como bandarilhas. Os portugueses deixaram de fazer jus aos seus antepassados lusitanos, deixaram de ser o “estranho povo” “que não se governa, nem se deixa governar”, referido pelo ditador romano Gaius Julius Caesar. Perderam a insubmissão que primeiro lhes recortou fronteiras e depois lhes rasgou todas as fronteiras, tornando-os viajantes do mundo. Hoje, não só se governam, no desenrascanço da sobrevivência quotidiana, como sobretudo se deixam governar, por toda a espécie de lobbys político-económicos e culturais, nacionais e trans-nacionais. Governam-se deixando-se (mal) governar, espoliados de memória e aspiração, tempo e energia, inquietação e reflexão, espoliados social, política e economicamente. Escravos do trabalho que têm e não têm, não possuem tempo senão para trabalhar ou procurar trabalho, sempre ao serviço dos seus donos, as forças político-económicas trans-nacionais, os seus títeres nacionais e as obscuras forças mentais e pulsionais que avassalam o mundo por fora e por dentro de cada consciência.
Se este diagnóstico se quadra a Portugal, que dizer das demais nações lusófonas? Serão os seus estados e sociedades mais justos e as suas populações mais conscientes, em termos individuais e colectivos? Serão as suas vidas mais isentas de servilismo perante as grandes potências político-económicas e mentais da globalização triunfante e os seus agentes nacionais?
Neste quadro, recordo o melhor que ouvi na primeira conferência pública organizada pelo MIL, em 24 de Janeiro, sobre o futuro da CPLP. Foi Miguel Real, ao afirmar que a Lusofonia só faria sentido se dela resultasse um “choque cultural” à escala mundial, uma transformação profunda do modo de conceber e realizar o sentido da existência humana no mundo. Na verdade estas palavras encarnam a essência daquilo a que Camões, António Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva chamaram Portugal e comunidade lusófona: o contributo para uma profunda transformação mental e cultural do próprio homem, com a consequente expressão numa nova civilização a nível planetário, universal e trans-lusófona. Estas palavras encarnam a essência da proposta consagrada na Declaração de Princípios e Objectivos do MIL.
Todavia, perante a situação mental, cultural e sócio-político-económica das nações lusófonas, cabe perguntar: como? Será que a sua mera aproximação, nos quadros da CPLP ou noutros, contribuirá realmente para isso? Ou, pelo contrário, essa aproximação, mantendo-se tudo como está, não virá apenas alimentar e reforçar a opressão a que os povos lusófonos estão neste momento sujeitos pelos agentes nacionais, culturais, políticos e económicos, do sistema mundial dominante? Será possível esse “choque cultural” no quadro das actuais ideias e práticas, sem uma profunda transformação de cada nação lusófona e de cada lusófono? Não duvido, tenho a certeza de que não. Como tenho a certeza de que, pensando o contrário, não estaremos senão a forjar uma ficção ideal com a dupla função de nos consolar da realidade adversa e de sancionar a recusa da sua transformação. Com isso nos arriscamos a que os esforços feitos no sentido da aproximação lusófona sirvam antes os actuais senhores do mundo, que actualmente tão bem movem as peças lusófonas no xadrez mundial.
Com efeito, de que “choque cultural” planetário, de que “Quinto Império” seremos o embrião se continuamos tão disciplinadamente submissos, como os burros de carga de que fala Junqueiro, carregando nos esfalfados lombos todos os donos do mundo e, pior, a nossa esperança reduzida ao quotidiano fardo de palha e a nossa ideia de que de outro modo não pode ser? Que objectivos do MIL se cumprirão sem um profundo questionamento da nossa passividade individual e colectiva, sem uma profunda transformação das nossas ideias e práticas, sem uma radical exigência de maior justiça social e económica, de maior responsabilidade cívica e política, de maior despertar mental e cultural nas nações de língua portuguesa? Onde estão as propostas nesse sentido, semelhantes às da secção portuguesa do MIL? Onde estão, nos crescentes aderentes ao MIL, as iniciativas de debate da Declaração de Princípios e Objectivos, solicitadas há mais de ano e meio? Onde estão outras iniciativas, além dos lançamentos da “Nova Águia”? Onde está a criatividade? Para que se adere ao MIL? Apenas para dizer que se pertence a qualquer coisa, assinar petições e postar num blogue?... E ficar à espera?
Sim, Pessoa, tens razão: “Portugal precisa dum indisciplinador”. Não, Pessoa, não tens razão: Portugal precisa que os portugueses deixem de, como também escreveste nesse mesmo texto, estar “sempre à espera dos outros para tudo”. Portugal precisa que cada um de nós se indiscipline, se não submeta, se insurreccione. Primeiro contra si mesmo e depois contra tudo o que oprima. Portugal precisa que cada um de nós se empine e lance ao chão a mente estúpida, conformista e balofa que nos governa, logo seguida de todos os que nos montam. Portugal precisa que cada um de nós se inquiete e desperte, tornando essa inquietação e esse despertar contagiantes, desde a nossa vizinhança a todo o mundo.
Só então, homens de pé e não burros de carga, teremos autoridade para erguer a voz e bradar, apontando o caminho de saída:
Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!
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8 comentários:
"É fado nosso / é nacional / não há portugueses / há Portugal" (1931)
expulsa-te e terás expulsado tudo
os combatentes não esquecem o combate.regressaremos.
Programar um ano nacional/internacional (ou só com os países que falam português)-enfim nem sei se não existe já- com eventos diversos que evoquem a cultura etc. quer portuguesa quer desses outros países... não pertenço ao MIL, mas pode ser uma proposta...idiota talvez... mas não ofensiva acho ...
Fernanda
Comecem por matar o "mandarim" que existe dentro de cada um de vocês.
Façam como eu: Pendurem-se de cabeça para baixo na árvore que vos expõe aos elementos da Vida.
Verão quão grandes serão as mercês.
Assim o digo eu
que antes de ser Poeta
não passava de um deus fariseu.
Caros Vão e Odin, pois é disso mesmo que primeiro que tudo se trata, como está escrito. Mas expulsar-nos ou matá-lo é sobretudo ver que nunca na verdade existimos/existiu.
«Ser só, sem amigos, sem apertos de mão, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!
Do altruísmo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoísmo feroz, que é Satanás. Do pólo positivo saltou ao pólo negativo. Entre os dois pólos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vai oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilizando-se quase, pelo hausto indutivo das duas correntes antagónicas.
Guerra Junqueiro, carta-prefácio, in "Os Pobres" de Raul Brandão.
Gostei muito deste post.
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