O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 17 de abril de 2009

Cantos do Despertar - "Não há nada a negar, nada a afirmar ou a apreender"

16. As verdades feitas de palavras são ilusórias.
O espírito que se tornou o não-espírito é a única realidade.
Isto é a realização; isto é o bem supremo.
Amigos, deste bem supremo surge o despertar.

17. O espírito absorvido pelo indizível é puro e perfeito.
Ele é inafectado pelo bem e pelo mal deste mundo,
como o lótus permanece intacto, impoluto pela lama onde lança raiz.

18. É certo que todas as coisas devem ser vistas como um encantamento, uma magia.
Se não fazeis nenhuma distinção entre samsara e nirvana,
se não desejais ou rejeitais nem um nem o outro,
o vosso espírito permanecerá firme, inabalável,
livre do véu da obscuridade.
Além do pensamento, conhecereis a vossa essência incriada.

19. Este mundo ilusório jamais existiu desde o início.
Desprovido de finalidades, ele é sem desígnio.
É assim que aparece àqueles que velam numa contínua meditação.
Indizível, indestrutível e sem ego.

20. A consciência, o mental e todo o conteúdo do espírito são “Isso”.
Do mesmo modo, o universo e tudo o que parece ser dele distinto são “Isso”.
Todas as coisas que podem ser percepcionadas e aquele que percepciona,
mesmo a obscuridade, o ódio, o desejo e a inteligência são “Isso”.

21. Como uma lamparina que brilha na noite da ignorância espiritual,
“Isso” elimina as obscuridades do espírito.
Com um mental disperso,
quem pode imaginar a pura consciência do sem desejo ?

22. Não há nada a negar, nada a afirmar ou a apreender,
pois “Isso” não pode ser compreendido.
Por causa do poder de divisão do mental, sobrevém a ilusão.
A realidade última permanece indivisa e pura.

23. Se permaneceis na oposição do uno e do múltiplo,
a unicidade não se revelará, pois ela é dada aos seres livres da dualidade.
A jóia está latente no coração do espírito.
Ela é revelada pela meditação.
A consciência indestrutível é a vossa verdadeira essência.

24. Uma vez instalado no reino da beatitude,
o espírito torna-se livre.
Desta forma todas as coisas lhe são proveitosas;
mesmo quando parece correr atrás dos objectos dos sentidos, não é alienado por eles.

25. Em primeiro lugar, vêm os rebentos da alegria e da felicidade,
depois as folhas de uma glória inefável.
Se nada dispersa a perfeita interioridade,
a indizível beatitude surgirá.

26. Finalmente, o caminho espiritual percorrido não é nada:
que o ser esteja repleto de paixão ou não, a realidade é vacuidade.

27. Mesmo se aparentemente sou como um porco cobiçando o lamaçal do mundo, que faltas permanecem num espírito desprovido de máculas ?
Aquele que não é afectado pelo mundo, como poderia ele ser obstruído ?

- Saraha, Canto Real, in L’Essence Lumineuse de l’Esprit, tradução francesa e apresentação por Erik Sablé, Paris, Éditions Dervy, 2005, pp.39-54.

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Paulo,

que bom é ler estes versos sobre o Despertar.
Grato pelo post. Se o permitir, gostaria de os colocar no meu blogue para partilhá-los com mais pessoas.
Saúde:)

Paulo Borges disse...

Caro Kunzang, esteja à vontade. Nada disto me pertence. É de todos.