O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 30 de abril de 2009

Saudade(s)

Confesso: há venenos que nos deixam ocos, vazios. Venenos brancos, de espuma abstracta, que nos sugam a Vida, a Verdade e o Sonho que nos sai do corpo (mas primeiro do olhar).
A divisória encontrava-se envolta em fumo denso e, como habitualmente, a noite demorava a nascer. O olhar dos transeuntes, inundado desse vapor branco, cegara, não pela noite que tardava, mas pelas profusas horas que teimavam em existir.
A claridade assumia um peso excessivo que, lentamente, trabalhava as pálpebras da cidade. Os ruídos, poucos, avocavam um som metálico e áspero. Os ouvidos da turbamulta contraíam a gravidade da procura do sentido. De fora, cada esquina adquiria um outro perfil, sempre sem sombra. As casas, ígneas línguas que lambiam a alabastrina cidade, tornavam-se pequenos refúgios ao longo das simétricas alamedas desarvoradas. Indistintamente, no cimo de uma outra alfama por definir, uma janela interrompia o horizonte lácteo. Dessa janela para dentro, esse mundo submergia.
Sal descia, voluptuosa, os degraus salomónicos de uma divisória enfumada que servia de antecâmara a essa janela, cujo condão (embora ninguém o soubesse) era perspectivar o inesgotado do Sonho. Descia-os como se, num só passo, transpusesse essa alba crepitação que a todos, sub-repticiamente, tumulava. [Sal] voltara a existir, mas sem nome. Essa luz clarão, do-no-mundo-e-fora-do-mundo, que esculpia o precipício da meia-noite, trouxera-lhe o ansiado indício.
Sempre amara o lado abstruso da realidade, enquanto cada partícula de luz a atravessava como uma convulsão. Prezara os cheiros subterrâneos, no labor minucioso de reconhecer todas as estações. Porém, jamais reclamara o Sol interino que faltava àquela cidade. Agora, incitara a sua súbita transformação: clandestina, em horas de alucinação, moveu-se para fora das vidraças, para fora de si própria. Nesse limiar mágico do voo, e de corpo todo rasgado, redesenhou as mitologias, sem a ilusão de as ter criado. Jorrou, oscilante, das estrelas outros compassos e diversas geometrias. No asfalto da sua pele, cintilaram amanheceres ferozes que rompiam o céu ácido da memória. A cidade ecoava noite.
Hoje pouco resta desse percurso, desse mar, desse Sal.
Ela passaria à frente de si própria. Silêncio.
Era noite, jubilosamente noite.
Em todos os outros, essa amnésia que não cuida saber dos auspícios da existência, alagava os fogos por atear, as cerimónias sacrais que não podiam ser verdadeiras, anestesiava os peitos nus dos poemas, não obstante a procura contínua de uma qualquer convicção que remanescia nos caudais da memória. Submetiam-se a essa nova vida, obedecendo às normas, aceitando todos os nomes, vozes e deuses. Todos se encontravam nesse estado encoberto e miasmático. Rumo ao centro da cidade, já não sabiam se perseguiam ou fugiam de algo. Aproximaram-se. Adentraram um espaço ou vórtice espesso e leitoso onde o Tempo, jazendo, respirava. Foram engolidos, sem interrupção. Perderam-se irremediavelmente nas armadilhas da nostalgia. Foram corrompidos pela medúsicas teias da melancolia.
Era noite, pesarosamente noite.
Apenas Sal se salvou. Apenas ela encontrou o fio de Ariadne nesse labirinto incompreensível chamado Saudade.
Confesso: há contravenenos que nos deixam absolutos, plenos. Antídotos brancos, de brilho insondável, que nos alumiam o Caminho, inflamam o espírito e erigem o Ver.

4 comentários:

Paulo Borges disse...

Saúdo este texto salino. O único fio de Ariadne que conheço que liberta do labirinto da Saudade é o Instante... Terá sido ele que salvou Sal?

Anónimo disse...

Sal é a gnóstica louca?

Nunca Mais disse...

Fiem-se na Saudade e no Instante e não corram...

Anónimo disse...

Fiamo-nos e corremos.