O rebelde recusa a ordem do mundo no seio do qual foi jogado. Recusa-a em nome de uma legitimidade que excede toda a legalidade. Recusa-a porque é em si mesmo que encontra a legitimidade e a norma – não que ele as decalque simplesmente sobre aquilo que ele é, mas porque sabe que ele próprio é também o resultado de uma norma que o ultrapassa. E a sua recusa é total. O rebelde é aquele que não cede, desdenhando daquilo com que o procuram deslumbrar: honrarias, interesses, privilégios, reconhecimentos. À mesa de jogo, ele é o que não joga: o espírito do tempo embate nele como a água na pedra. Espírito livre, homem livre, ele não coloca nada acima da liberdade do espírito e da pessoa. Ele é a própria liberdade. «É rebelde quem quer que seja colocado pela lei da sua natureza em ligação com a liberdade» (Ernst Jünger).
Mas ele não é somente um insubmisso. Certamente, como o resistente ou o dissidente, o rebelde é a prova viva de que uma alternativa é sempre possível. Mas a sua rebelião não está somente ligada às circunstâncias. Ela é de ordem existencial. O rebelde sente fisicamente a impostura, sente-a instintivamente. Tornamo-nos dissidentes, mas nascemos rebeldes. O rebelde é rebelde porque qualquer outro modo de existência lhe é impossível. O resistente deixa de o ser quando deixa de ter meios de resistir. O rebelde, mesmo aprisionado, continua a ser um rebelde. É por isso que, ainda que possa perder, nunca está vencido. Os rebeldes nem sempre podem mudar o mundo. O mundo, esse, nunca os conseguiu mudar.
Face a um mundo pelo qual não sente mais que desprezo ou desgosto, o rebelde não pode satisfazer-se com a indiferença, porque essa está ainda demasiado próxima da neutralidade. O rebelde é feito para a luta, mesmo que ela não ofereça esperança. Ele não é, então, um renunciante. O rebelde sente-se estrangeiro ao mundo em que vive, mas sem nunca deixar de querer nele viver: ele sabe que só se pode nadar contra a corrente na condição de não se abandonar o leito do rio. Pertencendo a essa minoria que desde sempre preferiu o perigo à servidão, ele sabe que o respeito de si deve sempre ser conquistado. O seu afastamento puramente interior não impede o contacto, porque esse contacto é necessário à luta. E se ele «recorre à floresta» não é para aí se refugiar – ainda que seja frequentemente um proscrito –, mas para aí reaver forças vivas. «A floresta está presente por todo o lado, prossegue Jünger. Existem florestas no deserto, como nas cidades, onde o rebelde vive escondido sob a máscara de qualquer profissão. Existem florestas na sua pátria como sobre qualquer outro solo onde se possa desenvolver a sua resistência. Mas existem sobretudo florestas na própria retaguarda do inimigo.»
O revolucionário persegue um objectivo, o que não é necessariamente o caso do rebelde. O rebelde pode perfeitamente lutar por afirmar um estilo. Ele luta porque não pode fazer outra coisa que lutar. O revolucionário pretende chegar a um fim onde o rebelde encarna antes de tudo um estado de espírito. Semelhantemente, o rebelde despreza a escalada extremista e a manipulação supostamente eficaz dos slogans. Ele não é dos que se limitam a anunciar o Apocalipse em ter o mínimo meio de o remediar. Antígona é estranha ao narcisismo da radicalidade.
Por relação ao «curso da História», o rebelde sabe, por outro lado, identificar o momento e agarrar esse momento. Para romper o cerco, para tentar introduzir um grão de areia na máquina, ele raciocina sobre situações concretas. Determina a sua estratégia de acordo com o que vê surgir sob os seus olhos, não de acordo com modelos ultrapassados. O rebelde é, antes de tudo, dinâmico. Ele dinamiza o pensamento e torna esse pensamento dinâmico. Não é soldado, mas guerrilheiro. Ele não leva a cabo operações regulares mas lança ataques inesperados. Não está atrás de uma linha da frente, mas atravessa todas as frentes.
O rebelde pode ser activo ou meditativo, homem de conhecimento ou de acção. Sobre o plano estratégico, pode ser carvalho ou junco, raposa ou leão. Há rebeldes de todos os tipos. Na ordem do pensamento, Hugues Rebell, o bem falado Georges Darien, Péguy, Bernanos, Orwell, foram ao seu tempo rebeldes, tal como, mais recentemente, Jack Kerouac, Dominique de Roux, Burroughs, Pasolini, Xavier Grall, Mishima ou Jean Cau. Guy Debord foi também ele um rebelde, mesmo se a sua obra é hoje objecto de uma recuperação póstuma, sinal de que estamos já no para além do Espectáculo. Na ordem da acção, depois de tantos outros «mobilizadores do povo», poderíamos citar o subcomandante Marcos que, sem ter nunca cometido um só atentado, defende de maneira exemplar as liberdades dos índios de Chiapas. De Robin dos Bosques aos «zapatistas»: uma mesma linha!
Sempre houve rebeldes. Mas o mundo actual reserva-lhes um lugar muito particular. Na época da modernidade, o rebelde surgia muito aquém do revolucionário: era reputado por lhe faltar clara consciência ideológica e preferir, às estratégias longamente pensadas, o jogo desordenado das reacções instintivas. Hoje que a modernidade finda, ele reencontra o seu lugar. A mundialização faz da Terra um mundo sem exterior, um mundo sem outro, que já não pode ser atacado a partir de um ponto para além de si. Um tal mundo não está tanto votado à explosão como à depressão implosiva. O rebelde está apto para este mundo precisamente porque fomenta redes e propaga as suas ideias de forma viral. Neste sentido, ele é também uma figura pós-moderna, mas uma figura de oposição. Num mundo cada vez mais homogéneo, ele é a própria singularidade. Ele é um ponto opaco num mundo votado à transparência totalitária, um sujeito que permanece real num mundo de objectos virtuais, um insurrecto por excelência num mundo policiado e tornado policiador. Um estrangeiro que podíamos excluir, de pleno direito, em nome da luta contra a exclusão, se ele não se tivesse previamente excluído a si mesmo. É por isso que, de um certo modo, o futuro pertence ao pensamento rebelde, a esse pensamento que desenha clivagens inéditas, esboça uma topografia nova, prefigura um outro mundo. Porque a história permanece sempre aberta.
Jünger diz ainda que chama rebelde «àquele que, isolado e privado da sua pátria pela marcha do universo, se vê deixado ao nada». Escreve também: «Quando todo um povo prepara o seu recurso às florestas, torna-se uma potência temível.»
Robert de Herte, Eléments nº 101 (Via Velle Est Posse)
11 comentários:
Madalena, ainda não li este seu post nem sei se terei tempo de o ler, pois tenho mesmo de ir dormir umas horas antes de viajar, mas quero-lhe agradecer por trazer aqui um grande autor: Ernst Jünger! Polémico, como tudo o que é grande.
Muito grato.
Boa viagem, Paulo.
"O rebelde pode perfeitamente lutar por afirmar um estilo. Ele luta porque não pode fazer outra coisa que lutar."
O Bairro Alto está cheio de “pintas” destes, que ofendem o santo nome da Rebeldia reduzindo-a a um “estilo”… São a incarnação perfeita do narcisismo, estes “rebeldes sem causa”, que pouco mais fazem que “posar”, entrar em certos bares fumegantes sem pagar, e olhar com escárnio quem não partilha da mesma dose de cinismo e vaidade.
Já agora, o Robert de Herte é um pseudónimo de Alain de Benoist, pensador Francês da “Nova Direita Europeia”, que tentou colocar-nos anilhas nas patas, qual biólogo dos mais cartesianos, para poder escrever o seu tratado sobre um suposto “espírito Europeu pagão”, como se tal coisa se pudesse conceber.
Como se a Europa pudesse ser reduzida a uma formula qualquer.
Como se nós fôssemos aves domáveis.
Pensamos nós de que …
Quando referi a polémica, referi-me à fonte. Sei bem quem é Robert de Herte e não partilho das ideias dele. Importa não confundir, no entanto, a fonte, com o Waldgaenger de Ernst Juenger, que é o que neste tratado é analisado.
“O lugar da liberdade é completamente diferente da mera oposição, diferente também daquele que a fuga lhe pode oferecer. Chamamos-lhe floresta. Nesse lugar há recursos diferentes do traçar um Não, que se coloca no círculo para isso previsto.”
“Rebelde, por sua vez, chamamos àquele que, isolado pelo processo histórico, convertido num apátrida, se vê finalmente entregue ao extermínio. Esse poderia ser o destino de muitos, mesmo de todos – é preciso, por isso, acrescentar ainda uma outra determinação. Esta consiste em o Rebelde estar decidido à resistência e tencionar levar a cabo um combate talvez desesperado. Rebelde é, então, aquele que possui uma relação originária com a liberdade, que se exterioriza, de um ponto de vista epocal, na resistência que opõe ao automatismo e de que não tenciona tirar a sua consequência ética, o fatalismo.”
“O passo da floresta não deve ser compreendido como uma forma de anarquia dirigida contra o mundo das máquinas, embora a tentação seja por demais natural, sobretudo quando o esforço aponta ao mesmo tempo, para o restabelecimento da relação com o mito. O advento do mito não causa qualquer dúvida e está já iminente. Aliás, a ordem mítica sempre está presente e ascende à superfície, na hora favorável, como um tesouro. E, no entanto, enquanto princípio heterogéneo, ele surgirá precisamente do movimento supremo levado à sua maior intensificação. Movimento, neste sentido, é apenas o mecanismo, o grito do nascimento. Não regressamos ao mito, encontramo-lo de novo…”
“Eis o Jardim do Éden, eis as vinhas, os lírios, os grãos de trigo das parábolas cristãs. Eis o bosque das histórias de encantar com os seus lobos devoradores de homens, com as bruxas e os gigantes, mas também onde se encontra o bom caçador, os valados de rosas da Bela Adormecida, em cuja sombra o tempo pára. Eis as florestas germânicas e celtas, como o Bosque de Esmalte, no qual os heróis subjugam a morte, e, ainda o Jardim das Oliveiras.”
“No seu fundo primordial, a palavra já não é forma nem chave. Torna-se idêntica ao Ser. Torna-se poder da criação. E aí está a sua força imensa, que nunca se poderá converter em moeda. Aqui apenas têm lugar aproximações. A linguagem tece em favor do silêncio, como o oásis se consagra a uma fonte. E a poesia confirma que se conseguiu entrar nos jardins intemporais. Disso vive então o Tempo.”
“Quem escava mais fundo, alcança em qualquer deserto a camada que conduz às fontes. E com a água sobe à superfície uma nova fertilidade.”
Ernst Juenger, Der Waldgang
Esse texto foi traduzido e publicado por mim e no meu blog, pelo que agradecia a cortesia de ser estabelecido o link.
Ah, e mais, o rebelde do texto não é "sem causa", dizê-lo é não perceber patavina do que se leu.
Sem mais,
Rodrigo
Rodrigo, ninguém mais do que eu respeita os direitos de autor. Não foi no seu blog que li este texto (nem conhecia o seu blog). Foi aqui: http://pt.altermedia.info/histria/breve-tratado-de-rebeliao_775.html.
Referi a fonte que lá estava, como pode ver. Não estava especificado o responsável pela tradução.
Não nos referiamos ao Ernst Junger, caro rnpd. Leia o nosso comentário com mais atenção. Sabemos muito bem que ele tinha causas, e bem fortes.
Apenas retirámos essa frase do contexto para falar de umas certas figuras que se armam em rebeldes sem terem uma única gota de rebeldia a correr-lhes pelo sangue.
Eu sei de onde retirou o texto. Mas o sítio de onde o retirou tem link para o meu blog, como notará se carregar onde diz "Velle est Posse"(frase que aliás entitulou o cabeçalho do meu site por uns tempos). Já no seu caso não há link algum, pelo que lhe volto a pedir que tenha a amabilidade de tratar em conformidade, das duas uma, ou coloca link ou coloca o nome do blog para que, quem o queira, conheça a autoria da tradução e publicação. Velle est posse, por si só, não permite a ninguém identificar a origem do texto.
Caro "Corvos de Odin", eu sei que não se referia a Jünger, mas nenhuma das personagens mencionadas no texto foi um rebelde sem causa, podem ter tidos causas diferentes, mas tiveram-nas, e isto incluindo o autor do texto, porque o Alain de Benoist foi, durante décadas e com brilhantismo, um homem central na recuperação de uma causa que é também a minha: o do regresso da Europa a si mesma, ao seu espírito e ao seu sangue, livre das "conspurcações forâneas" que a têm vindo a destruir.
Digamo-lo assim:
[b]Meine Ehre heißt Treue![/b]
E quando ali se fala em "afirmar um estilo" não se está a falar do "poseur" que não compreende que a rebeldia é antes de tudo um acto interior, de inflexibilidade para com as pressões do mundo exterior, e não a roupa que se usa, o corte de cabelo, a música que se ouve, ou os chavões que se pronunciam (que, pelo contrário são precisamente o sucumbir ao que é imposto pelo exterior).
Acresce que é preciso igualmente ter referências políticas históricas para perceber por que razão uma determinada área política gostava de dizer que lutava por uma certa imagem do homem, um certo "estilo", vá.
Rodrigo
Se pudesse, apagava o post. Não vale a pena. Infelizmente, não tenho acesso a fazer tal coisa. A minha amabilidade, por vezes, transforma-se noutra coisa.
Se alguém aqui puder eliminar este post, por mim, pode fazê-lo.
Procurarei mais textos originais de Juenger.
rodrigo, és um fascista de m..., pôe-te a pau.
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