O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


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segunda-feira, 20 de abril de 2009

Breve tratado de rebelião

Tendo em conta a fonte, este post pode-se tornar polémico. Mas é importante recordar que, independentemente da fonte, Ernst Jünger foi um combatente contra o nazismo. E recordei-me desta leitura por causa do post dos mandarins e da indisciplina, do Paulo Borges. 

No seu Tratado do Rebelde, Ernst Jünger escrevia em 1951: «Duas qualidades são indispensáveis ao rebelde. Ele recusa aceitar por sua a lei dos poderes instituídos, quer eles usem a propaganda ou a violência. E ele está decidido a defender-se». Dominique Venner acrescenta, nas páginas deste número, que o que em todas as épocas os rebeldes tiveram em comum «foi terem descoberto, por vias diferentes, uma incompatibilidade absoluta entre o seu ser e o mundo no qual lhes seria necessário viver».

O rebelde recusa a ordem do mundo no seio do qual foi jogado. Recusa-a em nome de uma legitimidade que excede toda a legalidade. Recusa-a porque é em si mesmo que encontra a legitimidade e a norma – não que ele as decalque simplesmente sobre aquilo que ele é, mas porque sabe que ele próprio é também o resultado de uma norma que o ultrapassa. E a sua recusa é total. O rebelde é aquele que não cede, desdenhando daquilo com que o procuram deslumbrar: honrarias, interesses, privilégios, reconhecimentos. À mesa de jogo, ele é o que não joga: o espírito do tempo embate nele como a água na pedra. Espírito livre, homem livre, ele não coloca nada acima da liberdade do espírito e da pessoa. Ele é a própria liberdade. «É rebelde quem quer que seja colocado pela lei da sua natureza em ligação com a liberdade» (Ernst Jünger).

Mas ele não é somente um insubmisso. Certamente, como o resistente ou o dissidente, o rebelde é a prova viva de que uma alternativa é sempre possível. Mas a sua rebelião não está somente ligada às circunstâncias. Ela é de ordem existencial. O rebelde sente fisicamente a impostura, sente-a instintivamente. Tornamo-nos dissidentes, mas nascemos rebeldes. O rebelde é rebelde porque qualquer outro modo de existência lhe é impossível. O resistente deixa de o ser quando deixa de ter meios de resistir. O rebelde, mesmo aprisionado, continua a ser um rebelde. É por isso que, ainda que possa perder, nunca está vencido. Os rebeldes nem sempre podem mudar o mundo. O mundo, esse, nunca os conseguiu mudar.

Face a um mundo pelo qual não sente mais que desprezo ou desgosto, o rebelde não pode satisfazer-se com a indiferença, porque essa está ainda demasiado próxima da neutralidade. O rebelde é feito para a luta, mesmo que ela não ofereça esperança. Ele não é, então, um renunciante. O rebelde sente-se estrangeiro ao mundo em que vive, mas sem nunca deixar de querer nele viver: ele sabe que só se pode nadar contra a corrente na condição de não se abandonar o leito do rio. Pertencendo a essa minoria que desde sempre preferiu o perigo à servidão, ele sabe que o respeito de si deve sempre ser conquistado. O seu afastamento puramente interior não impede o contacto, porque esse contacto é necessário à luta. E se ele «recorre à floresta» não é para aí se refugiar – ainda que seja frequentemente um proscrito –, mas para aí reaver forças vivas. «A floresta está presente por todo o lado, prossegue Jünger. Existem florestas no deserto, como nas cidades, onde o rebelde vive escondido sob a máscara de qualquer profissão. Existem florestas na sua pátria como sobre qualquer outro solo onde se possa desenvolver a sua resistência. Mas existem sobretudo florestas na própria retaguarda do inimigo.»

O revolucionário persegue um objectivo, o que não é necessariamente o caso do rebelde. O rebelde pode perfeitamente lutar por afirmar um estilo. Ele luta porque não pode fazer outra coisa que lutar. O revolucionário pretende chegar a um fim onde o rebelde encarna antes de tudo um estado de espírito. Semelhantemente, o rebelde despreza a escalada extremista e a manipulação supostamente eficaz dos slogans. Ele não é dos que se limitam a anunciar o Apocalipse em ter o mínimo meio de o remediar. Antígona é estranha ao narcisismo da radicalidade.

Por relação ao «curso da História», o rebelde sabe, por outro lado, identificar o momento e agarrar esse momento. Para romper o cerco, para tentar introduzir um grão de areia na máquina, ele raciocina sobre situações concretas. Determina a sua estratégia de acordo com o que vê surgir sob os seus olhos, não de acordo com modelos ultrapassados. O rebelde é, antes de tudo, dinâmico. Ele dinamiza o pensamento e torna esse pensamento dinâmico. Não é soldado, mas guerrilheiro. Ele não leva a cabo operações regulares mas lança ataques inesperados. Não está atrás de uma linha da frente, mas atravessa todas as frentes.
O rebelde pode ser activo ou meditativo, homem de conhecimento ou de acção. Sobre o plano estratégico, pode ser carvalho ou junco, raposa ou leão. Há rebeldes de todos os tipos. Na ordem do pensamento, Hugues Rebell, o bem falado Georges Darien, Péguy, Bernanos, Orwell, foram ao seu tempo rebeldes, tal como, mais recentemente, Jack Kerouac, Dominique de Roux, Burroughs, Pasolini, Xavier Grall, Mishima ou Jean Cau. Guy Debord foi também ele um rebelde, mesmo se a sua obra é hoje objecto de uma recuperação póstuma, sinal de que estamos já no para além do Espectáculo. Na ordem da acção, depois de tantos outros «mobilizadores do povo», poderíamos citar o subcomandante Marcos que, sem ter nunca cometido um só atentado, defende de maneira exemplar as liberdades dos índios de Chiapas. De Robin dos Bosques aos «zapatistas»: uma mesma linha!

Sempre houve rebeldes. Mas o mundo actual reserva-lhes um lugar muito particular. Na época da modernidade, o rebelde surgia muito aquém do revolucionário: era reputado por lhe faltar clara consciência ideológica e preferir, às estratégias longamente pensadas, o jogo desordenado das reacções instintivas. Hoje que a modernidade finda, ele reencontra o seu lugar. A mundialização faz da Terra um mundo sem exterior, um mundo sem outro, que já não pode ser atacado a partir de um ponto para além de si. Um tal mundo não está tanto votado à explosão como à depressão implosiva. O rebelde está apto para este mundo precisamente porque fomenta redes e propaga as suas ideias de forma viral. Neste sentido, ele é também uma figura pós-moderna, mas uma figura de oposição. Num mundo cada vez mais homogéneo, ele é a própria singularidade. Ele é um ponto opaco num mundo votado à transparência totalitária, um sujeito que permanece real num mundo de objectos virtuais, um insurrecto por excelência num mundo policiado e tornado policiador. Um estrangeiro que podíamos excluir, de pleno direito, em nome da luta contra a exclusão, se ele não se tivesse previamente excluído a si mesmo. É por isso que, de um certo modo, o futuro pertence ao pensamento rebelde, a esse pensamento que desenha clivagens inéditas, esboça uma topografia nova, prefigura um outro mundo. Porque a história permanece sempre aberta.
Jünger diz ainda que chama rebelde «àquele que, isolado e privado da sua pátria pela marcha do universo, se vê deixado ao nada». Escreve também: «Quando todo um povo prepara o seu recurso às florestas, torna-se uma potência temível.»

Robert de Herte, Eléments nº 101 (Via Velle Est Posse)

domingo, 19 de abril de 2009

Esfera Armilar - Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!

“Balanço patriótico:

Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, - reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta”

- Guerra Junqueiro, “Anotações”, Pátria [1896], Porto, Lello & Irmão, s. d., p.185.

“Das feições de alma que caracterizam o povo português, a mais irritante é, sem dúvida, o seu excesso de disciplina. Somos o povo disciplinado por excelência.
[…]
Portugal precisa dum indisciplinador. Todos os indisciplinadores que temos dito, ou que temos querido ter, nos têm falhado. Como não acontecer assim, se é da nossa raça que eles saem? As poucas figuras que de vez em quando têm surgido na nossa vida política com aproveitáveis qualidades de perturbadores fracassam logo, traem logo a sua missão. Qual é a primeira coisa que fazem? Organizam um partido… Caem na disciplina por uma fatalidade ancestral”

- Fernando Pessoa, “A Doença da Disciplina”, in Elogio da Indisciplina e Poemas Insubmissos, s.l., C.E.P, s. d., pp.5 e 7 [grafia actualizada].

O perturbante aumento da actualidade das palavras de Guerra Junqueiro, 112 anos depois, agudiza ainda mais a mesma actualidade das de Pessoa. Entram no lombo como bandarilhas. Os portugueses deixaram de fazer jus aos seus antepassados lusitanos, deixaram de ser o “estranho povo” “que não se governa, nem se deixa governar”, referido pelo ditador romano Gaius Julius Caesar. Perderam a insubmissão que primeiro lhes recortou fronteiras e depois lhes rasgou todas as fronteiras, tornando-os viajantes do mundo. Hoje, não só se governam, no desenrascanço da sobrevivência quotidiana, como sobretudo se deixam governar, por toda a espécie de lobbys político-económicos e culturais, nacionais e trans-nacionais. Governam-se deixando-se (mal) governar, espoliados de memória e aspiração, tempo e energia, inquietação e reflexão, espoliados social, política e economicamente. Escravos do trabalho que têm e não têm, não possuem tempo senão para trabalhar ou procurar trabalho, sempre ao serviço dos seus donos, as forças político-económicas trans-nacionais, os seus títeres nacionais e as obscuras forças mentais e pulsionais que avassalam o mundo por fora e por dentro de cada consciência.

Se este diagnóstico se quadra a Portugal, que dizer das demais nações lusófonas? Serão os seus estados e sociedades mais justos e as suas populações mais conscientes, em termos individuais e colectivos? Serão as suas vidas mais isentas de servilismo perante as grandes potências político-económicas e mentais da globalização triunfante e os seus agentes nacionais?

Neste quadro, recordo o melhor que ouvi na primeira conferência pública organizada pelo MIL, em 24 de Janeiro, sobre o futuro da CPLP. Foi Miguel Real, ao afirmar que a Lusofonia só faria sentido se dela resultasse um “choque cultural” à escala mundial, uma transformação profunda do modo de conceber e realizar o sentido da existência humana no mundo. Na verdade estas palavras encarnam a essência daquilo a que Camões, António Vieira, Pascoaes, Pessoa e Agostinho da Silva chamaram Portugal e comunidade lusófona: o contributo para uma profunda transformação mental e cultural do próprio homem, com a consequente expressão numa nova civilização a nível planetário, universal e trans-lusófona. Estas palavras encarnam a essência da proposta consagrada na Declaração de Princípios e Objectivos do MIL.

Todavia, perante a situação mental, cultural e sócio-político-económica das nações lusófonas, cabe perguntar: como? Será que a sua mera aproximação, nos quadros da CPLP ou noutros, contribuirá realmente para isso? Ou, pelo contrário, essa aproximação, mantendo-se tudo como está, não virá apenas alimentar e reforçar a opressão a que os povos lusófonos estão neste momento sujeitos pelos agentes nacionais, culturais, políticos e económicos, do sistema mundial dominante? Será possível esse “choque cultural” no quadro das actuais ideias e práticas, sem uma profunda transformação de cada nação lusófona e de cada lusófono? Não duvido, tenho a certeza de que não. Como tenho a certeza de que, pensando o contrário, não estaremos senão a forjar uma ficção ideal com a dupla função de nos consolar da realidade adversa e de sancionar a recusa da sua transformação. Com isso nos arriscamos a que os esforços feitos no sentido da aproximação lusófona sirvam antes os actuais senhores do mundo, que actualmente tão bem movem as peças lusófonas no xadrez mundial.

Com efeito, de que “choque cultural” planetário, de que “Quinto Império” seremos o embrião se continuamos tão disciplinadamente submissos, como os burros de carga de que fala Junqueiro, carregando nos esfalfados lombos todos os donos do mundo e, pior, a nossa esperança reduzida ao quotidiano fardo de palha e a nossa ideia de que de outro modo não pode ser? Que objectivos do MIL se cumprirão sem um profundo questionamento da nossa passividade individual e colectiva, sem uma profunda transformação das nossas ideias e práticas, sem uma radical exigência de maior justiça social e económica, de maior responsabilidade cívica e política, de maior despertar mental e cultural nas nações de língua portuguesa? Onde estão as propostas nesse sentido, semelhantes às da secção portuguesa do MIL? Onde estão, nos crescentes aderentes ao MIL, as iniciativas de debate da Declaração de Princípios e Objectivos, solicitadas há mais de ano e meio? Onde estão outras iniciativas, além dos lançamentos da “Nova Águia”? Onde está a criatividade? Para que se adere ao MIL? Apenas para dizer que se pertence a qualquer coisa, assinar petições e postar num blogue?... E ficar à espera?

Sim, Pessoa, tens razão: “Portugal precisa dum indisciplinador”. Não, Pessoa, não tens razão: Portugal precisa que os portugueses deixem de, como também escreveste nesse mesmo texto, estar “sempre à espera dos outros para tudo”. Portugal precisa que cada um de nós se indiscipline, se não submeta, se insurreccione. Primeiro contra si mesmo e depois contra tudo o que oprima. Portugal precisa que cada um de nós se empine e lance ao chão a mente estúpida, conformista e balofa que nos governa, logo seguida de todos os que nos montam. Portugal precisa que cada um de nós se inquiete e desperte, tornando essa inquietação e esse despertar contagiantes, desde a nossa vizinhança a todo o mundo.

Só então, homens de pé e não burros de carga, teremos autoridade para erguer a voz e bradar, apontando o caminho de saída:

Mandado de despejo aos mandarins do mundo. Fora!