domingo, 31 de maio de 2009
És Música e a Música Ouves Triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
É canção sem palavras, vária e em
uníssono: "só não serás ninguém".
William Shakespeare, in "Sonetos (8)"
Virgílio Ferreira, in Aparição
Acendo um cigarro, fico-me a olhar o incêndio.
Lembra-me imagens da guerra, de cidades bombardeadas. Alguém deve ir pegando o fogo por sectores, estabelecendo linhas de chamas que o vento vai impelindo. O campo arde vastamente, como uma destruição universal. Quase ouço o crepitar das chamas como o fervor final de uma inundação. Sinto-me só e nu, escapando ao desastre. Mas esta nudez que eu algum dia julguei possivelmente coberta pela compreensão dos outros, esta redução extrema às minhas raízes, esta solidão inicial de quem não pode esquecer a sua pobre condição é o sinal humilde e amigo de que à vida que me deram a não repudiei, de que cuidei dela, a não perdi, a levo comigo nesta viagem breve, a aceito ao meu olhar de fraternidade e perdão... A noite avança, a minha cidade arde sempre. Vou fundar outra noutro lado. Mas não sabia eu que ela devia arder? Acaso será possivel construir uma cidade como a imagino, a cidade do Homem? Acaso não dura ela em mim, no meu sonho, apenas porque a penso sem consequências, a imagino, a não vivo, lhe não exijo responsabilidades? Não o sei, não o sei...
Mas o que sei é que o homem deve construir o seu reino, achar o seu lugar na verdade da vida, da terra, dos astros, o que sei é que a morte não deve ter razão contra a vida nem os deuses voltar a tê-la contra os homens, o que sei é que esta evidência inicial nos espera no fim de todas as conquistas para que o ciclo se feche - o ciclo, a viagem mais perfeita.
o irreparável
agamben, a comunidade que vem
saudações
Uma proposta de exercício prático
[...]
Além dos exercícios anteriores, que desenvolvem na mente a sua qualidade inata de atenção, tornando-a estável, calma e clara, para que possa permanecer no reconhecimento-fruição da sua natureza primordial, outros há que despertam e desenvolvem, como indispensável complemento dos primeiros, a qualidade inata de sensibilidade, amor e compaixão que há nessa mesma natureza primordial da mente. Um dos mais potentes e eficazes é o que passamos a descrever e que se pode chamar troca.
Verifica primeiro os sete pontos da postura física, assegurando teres a coluna bem direita. As mãos podem ficar agora sobre os joelhos, com as palmas viradas para baixo. Começa por deixar a mente livre de qualquer referência e focalização, numa abertura da consciência tão vasta como o espaço, sem outro suporte da atenção senão a própria experiência de estar consciente. Deixa-te residir na experiência primordial, sem pensares nisso. Centra agora a consciência no coração e evoca aquele ser (ou seres) que neste preciso momento mais amas e/ou pelo qual mais te compadeces. O ser cuja felicidade mais desejas e/ou cujo sofrimento mais te é insuportável. Isto de modo mais autêntico, incondicional e pleno, com menos expectativas de reconhecimento, retribuição ou recompensa, ou seja, com menos apego. Esteja vivo neste mundo ou dele haja já partido, não importa. Se sentires que és tu próprio, não há qualquer problema. É por aí que deves começar.
Pensa nesse ser e sente-o, vê-o, visualiza-o bem presente diante de ti. Ele aqui está, porque a mente, o amor e a compaixão não conhecem tempo nem espaço… Para eles nunca há limites, separação ou distância…Ele aqui está… Podes agora fechar os olhos, se preferires, para melhor o ver e sentir, bem vivo e presente diante de ti… Bem vivo e sensível. Considera e sente todo o seu sofrimento, toda a sua dor e suas causas, todas as suas ilusões, obscurecimentos e negatividade…Todos os seus tormentos e dificuldades materiais, físicos, emocionais e mentais…Os que conheces e os que desconheces, os reais, os potenciais e os possíveis, as sementes de negatividade, implantadas pelas suas acções passadas, mentais, verbais e físicas, que já, sem que ele o saiba, no seu íntimo germinam em tendências que, perante as adequadas circunstâncias externas, no futuro desabrocharão em todo o tipo de problemas… Contempla tudo o que o fez, faz e fará sofrer… Que mais não seja a ignorância do seu bem profundo, o tormento da perda do que agora o faz feliz e a dor da morte inevitável. Considera, vê e sente tudo isso e aspira do fundo do coração a libertá-lo completamente de tal !
Se começas por ti próprio, desdobra-te e contempla-te diante de ti carregado de tudo isso. Do lado de cá está a tua natureza primordial, a dimensão saudável e incorruptível de ti mesmo, livre de todos esses problemas e aflições e por isso apta a fazer alguma coisa. Ama-te verdadeiramente. Cultiva realmente o amor-próprio. Não te limites à busca do prazer medíocre e fugaz. Reconhece tudo o que te atormenta e te pode vir a atormentar e deseja, do fundo do coração, veres-te livre, de uma vez por todas, de tudo isso ! Deseja a felicidade infinita !
Não consideres natural e fatal o sofrimento, nem o teu, nem o de ninguém. Revolta-te serenamente contra a indiferença, preguiça e distracção em que tens andado. Decide-te a fazer alguma coisa, a instaurar desde este preciso instante uma profunda diferença na tua vida e, assim, no universo !
Inspirando profundamente, bem concentrado no que estás a fazer, absorve então tudo isso, sob a forma de fumo negro que vem das entranhas desse ser, no mais fundo do teu coração subtil, no centro do teu peito. Aí toca e dissolve a sua carapaça e o seu cerne mais fechado e insensível, o núcleo cego e duro de ignorância, medo e auto-protecção de onde provém todo o nosso egocentrismo, todo o nosso apego à ideia de uma felicidade egoísta e a nossa rejeição do sofrimento para os outros, bem como a nossa indiferença… No caso de estares a praticar por ti, considera igualmente que esse fumo negro, ao tocar o teu coração, dissolve a sua armadura de ignorância e indiferença ao teu bem e felicidade profundos, que tantas vezes trocas pelo apego a prazeres efémeros e egoístas que só te deixam frustração, sede e dor. Toma em ti toda a ilusão e sofrimento do ser à tua frente e todo este fumo negro, toda esta negatividade, pelo amor e compaixão da tua motivação, ao tocar e dissolver esse núcleo cego e duro, converte-o e converte-se imediatamente numa luz, branca ou dourada, que ao expirar irradias agora abundantemente, banhando-o e impregnando-o de uma paz, uma saúde, um bem-estar e uma felicidade onde se dissipam todas as suas dificuldades e sofrimentos materiais, físicos, emocionais e mentais... À medida que praticas, profundamente concentrado e confiante nas tuas capacidades, contempla a transformação que ante ti e em ti se opera…Este ser que tanto amas torna-se saudável, radiante, feliz, bem-aventurado… E tu experimentas essa mesma plenitude e alegria, deixando que ela irradie num sorriso nos teus lábios.
Pratica assim durante algum tempo, embrenhando-te cada vez mais na experiência como uma oportunidade extremamente preciosa e gratificante. Não a vejas nem vivas como um sacrifício ou uma obrigação, de carácter moral ou religioso. Sente-a antes como a plena realização das tuas melhores aspirações a desenvolveres e manifestares o melhor que há em ti, como o cumprimento da mais funda saudade de plenitude que desde sempre em ti e tudo habita.
Se começaste por ti, passa então, durante uns momentos, a outro ser que ames de modo mais incondicional, considerando-o inseparável de ti. Depois, abre mais o coração, pensando em alguém conhecido, em relação ao qual tens uma atitude neutra e indiferente, não lhe querendo bem nem mal… Contemplando-o como um ser sensível que, tal como o primeiro, não deseja senão ser feliz e não sofrer, coloca-o a seu lado, considerando-os inseparáveis. Podes mesmo contemplar que no mais fundo do coração deste ser estás tu ou aquele(s) que mais amas. Pratica exactamente do mesmo modo por ambos sem perda de motivação, concentração e intensidade…Tenta mesmo aumentá-las, que mais não seja considerando que o benefício do primeiro ser e o teu próprio benefício será tanto maior quanto mais a partir dele abrires o coração a outros seres. Vive a crescente alegria, entusiasmo e calor de um coração que se abre, de uma respiração que se converte em bálsamo da dor, de uma mente que se torna mais vasta e consciente.
Após algum tempo, evoca então aquele ser ou seres que mais aversão te causam, o ser ou seres que os empedernidos conceitos e juízos que estruturam a tua actual percepção classificam como teus piores inimigos ou rivais. Se isso te não for imediatamente possível, por te perturbar em excesso, pensa em alguém que te suscite a máxima aversão que fores capaz de suportar, sem prejuízo da calma e concentração necessárias à prática deste exercício. Começa por aí e um dia chegarás aos outros. Tem essa coragem e vive a profunda alegria de te libertares do ódio, da raiva e do ressentimento, de transcenderes os teus limites e de os converteres em limiares, em portais de acesso a uma dimensão maior e melhor de ti mesmo. Pensa nesse ser ou seres como inseparáveis dos anteriores. Considera mesmo que no fundo do seu coração estás tu e/ou os seres que te são mais queridos. E sente a profunda gratidão por serem eles que te permitem tomares consciência dos teus limites e superá-los, por serem eles que através deste exercício te permitem evoluir mais e mais rapidamente, libertando-te de toda a ilusão, negatividade, rancor e ressentimento que te levam a percepcionar inimigos e a sofrer terrivelmente com isso. Bem presentes diante de ti, praticas pelos três tipos de seres, sem qualquer parcialidade nem hesitação e ainda com mais empenho e entusiasmo, desenvolvendo um sentimento de profunda alegria e imparcialidade no amor e na compaixão. É por todos que igualmente inspiras negras nuvens de ilusão, negatividade e dor, expirando luz dourada, sábia e benfazeja, convertendo o teu coração no mais precioso e poderoso forno alquímico, onde pela combustão da saudade emerge a tua e universal saúde e natureza primordial.
Abre-te progressivamente mais, bem para além do que o teu acanhado ego alguma vez julgou ser possível. Descobre poderes ser ou seres desde já mais do que alguma vez imaginaste possível. Abre-te e pratica, em círculos concêntricos em constante expansão, por todos os seres vivos e sensíveis, humanos e não humanos, visíveis e invisíveis, que habitam o lugar onde estás… a casa… o bairro… a povoação ou cidade… o país… o planeta… a galáxia… e, enfim, o inteiro universo !... Abre o coração a tudo, absorve toda a dor, negatividade e treva de todos os mundos – todas as doenças, cancros e sidas, todos os medos, angústias e loucuras, todas as solidões, torturas e misérias, todas as ilusões, desgraças e mortes - , transmutando-as em luz, paz e bem-aventurança cada vez mais poderosas e irradiantes. Pratica, pelo bem relativo e absoluto de todos os seres, pela satisfação das suas necessidades básicas e imediatas e pela sua felicidade e libertação suprema, imparcialmente, sem qualquer excepção. Faz do teu coração uma festa e um festim cósmico, eterno e infinito, para o qual todos são convidados. Pratica assim e sente que por esta prática o mundo, a percepção de ti e do mundo, se revoluciona e transmuda. A mente e o coração convertem-se progressivamente na própria luz que irradiam e nada percepcionam senão luz…Uma luz infinita, subtil e viva, livre, consciente e sensível, na qual tu, todos os seres e fenómenos se dissolvem, sem qualquer conceito de eu, de outro e de prática, de sujeito, objecto e sua relação…Uma imensidão luminosa, sem centro nem periferia, sem interior nem exterior… Um infinito esplendor… Inominável.
Ao emergires desta funda absorção, faz imediatamente a dedicatória, tal como atrás descrito (II, 4), oferecendo todo o benefício do exercício, sem qualquer apego, para a paz, a felicidade e o bem, relativos e absolutos, de todos os seres. É importante fazê-lo enquanto sentes o efeito pleno da prática, antes que na mente regressem as suas habituais e sobreviventes tendências dualistas e egocêntricas, reprodutoras da percepção comum e dita normal do mundo. A melhor dedicatória, tal como a melhor prática, é acompanhada da ausência de crença na realidade efectiva do sujeito, do objecto e da própria acção, mas sem prejuízo do entusiasmo, do amor e da compaixão. Isso permite que, durante e após este exercício, não tenhamos uma visão dualista e substancialista do mundo e de nós mesmos, não caiamos na tentação de nos sentirmos especiais, não nos orgulhemos do que estamos a fazer, não tenhamos qualquer sentimento de superioridade “espiritual” ou pretensão a sermos ou tornarmo-nos justos, sábios, santos, iluminados ou mestres (o sinal mais óbvio de o não ser é ter essa pretensão). É decisivo que a prática dissolva qualquer forma de auto-conceito e auto-imagem, positivos ou negativos. Tudo é como um jogo, insubstancial e ilusório, por isso mesmo eficaz libertador de todas as ilusões. O que fica é a natureza-experiência primordial, a fundamental sanidade de todas as coisas, que não carece de se conceber como tal e não se atribui qualidade, valor ou importância alguma.
Erasmo de Rotterdam: Elogio da Loucura (excertos)
[…]
Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira dispenseira de bens, a que os italianos chamam Pazzia e os gregos Mória. E que necessidade havia de vo-lo dizer? O meu rosto já não o diz bastante? Se há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu me sirva das palavras que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração. Sou sempre igual a mim mesma, de tal forma que, se alguns dos meus sequazes resumem não passar por tais, disfarçando-se sob a máscara e o nome de sábios, não serão eles mais do que macacos vestidos de púrpura, do que burros vestidos com pele de leão. Qualquer, pois, que seja o raciocínio feito para se mostrarem diferentes do que são, dois compridos orelhões descobrirão sempre o seu Midas. Para dizer a verdade, não estou nada satisfeita com essa gente ingrata, com esses perversos velhacos, porque, embora pertençam mais do que os outros ao nosso império, não só publicamente se envergonham de usar o meu nome, como muitas vezes chegam a aplicá-lo aos outros como título oprobioso. Portanto, sendo eles loucos e arquiloucos, embora assumam a atitude de sábios e de Tales (14), não teremos razão de chamá-los loucamente de sábios?
[…]
Nascida no meio de tantas delícias, não saudei a luz com o pranto, como quase todos os homens: mal fui parida, comecei a rir gostosamente na cara de minha mãe. Não invejo, pois, ao supremo Júpiter, o ter sido amamentado pela cabra Amaltéia, pois que duas graciosíssimas ninfas me deram de mamar: Mete (22), filha de Baco, e Apedia (23), filha de Pã. Ainda podeis vê-las, aqui, no consórcio das outras minhas sequazes e companheiras. Se, por Júpiter, também quereis saber os seus nomes, eu vo-lo direi, mas somente em grego. Estais vendo esta, de olhar altivo? É Filavtia, isto é, o amor-próprio. E esta, de olhos risonhos, que aplaude batendo palmas? É Kolaxia, isto é, a adulação. E, a outra, de pálpebras cerradas parecendo dormir? É Lethes, isto é, o esquecimento. E aquela, que se acha apoiada nos cotovelos, com as mãos cruzadas? É Misoponia, isto é, o horror à fadiga. E esta, que tem a cabeça engrinaldada de rosas, exalando essências e perfumes? É Idonis, isto é, a volúpia. E a outra, que está revirando os olhos lúbricos e incertos e parece dominada por convulsões? É Ania, isto é, a irreflexão. Finalmente, aquela, de pele alabastrina, gorducha e bem nutrida, é Trofís, isto é, a delícia. Entre essas ninfas, podeis distinguir ainda dois deuses: um é Komo, isto é, o riso e o prazer da mesa; o outro é Nigreton hypnon, isto é, o sono profundo. Acompanhada, pois, e servida fielmente por esse séquito de criados, estendo o meu domínio sobre todas as coisas, e até os monarcas mais absolutos estão submetidos ao meu império.
[…]
Tudo o que fazem os homens está cheio de loucura. São loucos tratando com loucos. Por conseguinte, se houver uma única cabeça que pretenda opor obstáculo à torrente da multidão, só lhe posso dar um conselho: que, a exemplo de Timão (42), se retire para um deserto, a fim de aí gozar à vontade dos frutos de sua sabedoria.
sábado, 30 de maio de 2009
Diálogos do Jardim
Cioran: Música, êxtase e saudade
C.:É com efeito o absoluto captado no tempo, mas incapaz de aí permanecer, um contacto simultaneamente supremo e fugitivo. Para que permanecesse, seria necessária uma emoção musical ininterrupta. A fragilidade do êxtase místico é idêntica. Nos dois casos o mesmo sentimento de incompletude, acompanhado por uma mágoa dilacerante, por uma nostalgia sem limites.
S.J.: Esta nostalgia é precisamente o fundamento da vossa visão do mundo. Como a definiríeis?
C.: “Este sentimento liga-se em parte às minhas origens romenas. Ele impregna ali toda a poesia popular. É uma dilaceração indefinível que se diz em romeno dor, próxima da Sehnsucht dos Alemães, mas sobretudo da Saudade dos Portugueses”
- Cioran, Entretien avec Sylvie Jaudeau, Entretiens, Paris, Gallimard, 1999, p.230.
Almada Negreiros: Reconhecimento à Loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-Ihe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?
Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar
José de Almada Negreiros
Poemas
Assírio & Alvim
sexta-feira, 29 de maio de 2009
"Nenhuma palavra pode esperar outra coisa senão a sua própria derrota"
E os silêncios...
desde a que chovia
deixo que acarinhe
a pura luz do sol
a pele
e os cantinhos de terra
que ainda ficam
no sentido prendidos
as pálpebras da mãe
que tinha medo
e a gentes tão diversas
que passam sob o sol,
que nunca voltam
a pairar no meu olhar
com as harmonias diluídas
nos passos liberados,
no trânsito das luzes
a sonhar.
Transcender Deus
Poder-se-ia dizer que a verdade última da religião, desvelada pela mística, é a morte de Deus, vivida não só como a extinção de todos os conceitos e representações teológicos, mas também como a ausência, a abs-entia, a não entidade, da suposta Presença absoluta. Neste sentido, e para dialogar apenas com uma das emergências do tema da “morte de Deus” no pensamento ocidental, cremos ser esta primordial morte de Deus, inerente à experiência última do que se designa como Deus, que permite compreender o efeito da morte de Deus proclamada pelo “insensato” nietzscheano: “Para onde vamos nós próprios? […] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Não será afinal, esta experiência de vazio, ausência de fundo e referências - consequência da humana abdicação da ideia de um absoluto princípio ordenador do mundo e da vida - , a própria experiência desse abismo, fundo sem fundo, deserto e morada onde ninguém mora que a tradição mística vive como a experiência última do transcender Deus? Não será o que Nietzsche proclama como “morte de Deus” a própria experiência do absoluto trans-divino e trans-teológico, porém por sujeitos que não parecem preparados para a suportar? Daí a confissão: “A grandeza deste acto é demasiado grande para nós”.
Há assim um ateísmo, primordial e inumano, que excede o humano e que, embora imprevistamente se lhe abra no seio da experiência de negação do divino, lhe é dificilmente suportável. Daí que o “insensato” nietzscheano acrescente à declaração anterior: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela?”. Passa-se assim da morte de Deus para a divinização do homem, o que é já uma demissão do abismo trans-divino, que procura introduzir no “deserto” primordial quem o habite, insulando entificações na sua vastidão hiante. Perante a efectiva transcensão mística de Deus, o projecto ateu da modernidade parece ser bem mais piedoso, trocando o abismo pelo ídolo deificado da própria humanidade. Como também viu Nietzsche, os ateus comuns são afinal bem “piedosas gentes”, que apenas se desprendem da metade divina do rosto do ídolo para mais se prenderem à sua gémea metade humana.
Carta para um mundo a Haver
Carta
Dear Mister John Malkovich,
We don’t know if you really exist, but if, we would like to meet you, or one of you, too talk about a real Portuguese and worldwide matter, which we like to share with you. It’s about the great Portuguese philosopher Agostinho da Silva and about his utopic, and we think realistic, thinking: to do it in praxis. It’s about the world and how it could be better for everybody and everything. Don’t hesitate, just try. We would like to meet you some day in this summer of 2009 in the well known Café Martinho da Arcada. You know, it was the place of Fernando Pessoa. We think you now this place already.
Kind regards
Associação Agostinho da Silva
Prof. Paulo Borges
Outro Dia no Martinho da Arcada
Paulo Borges: Hello Mister Malkovich, how do you doo?
Mister Malkovich: I’ am fine, thank you.
Paulo Borges: Sorry, but do you speak Portuguese?
Mister Malkovich: Yes indeed.
Paulo Borges: Então, Senhor Malkovich, escrevemos uma carta para Você participar no nosso projecto.
Mister Malkovich: Sim, entendi, mas não sei muito sobre a cultura portuguesa e menos ainda sobre o Senhor Agostinho da Silva, mas eu gostei o que Vocês falaram sobre o mundo a Haver e também sei que posso ajudar Vocês. Quanto dinheiro precisa Você por ano para realizar este projecto óptimo, utópico mas realístico?
Paulo Borges: 150’000.- Euro por ano, para começar. Para fazer 5 viagens com científicos magníficos pelo mundo por ano, para fazer 3 congressos no mundo lusófono ou mundial por ano e para publicar um livro por ano em qualquer língua, sempre sobre o mundo a Haver.
Mister Malkovich: Ok. I see. It’s a lot of money, but I have a lot of friends.
Paulo Borges: Óptimo. Vamos brindar. O que e que você prefere: Water or Wine.
Mister Malkovich: Wine of course!
Paulo Borges: Olá Martinho, muito vinho para nos brindar!
Ainda não o Fim.
vida nua/belavista II
o poder soberano faz a ligação entre norma e realidade, institui a norma e cria a excepção para melhor dominar.não se limita ao antigo poder do patriarca que é uma relação fundacional e de violência à qual se pode resistir.ele decide sobre a condição de vida ao transformar um individuo em vida nua.
ps.estes pequenos apontamentos são baseados num estudo próprio sobre giorgio agamben
quinta-feira, 28 de maio de 2009
O assassínio de Portugal-Inês
Armando Nascimento Rosa, As máscaras nigromantes. Uma leitura do teatro escrito de António Patrício, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp.217-218.
XIX FESTA DO ESPÍRITO SANTO
DOMINGO DE PENTECOSTES
31 DE MAIO DE 2009
ARRÁBIDA
10.30 h - Encontro junto ao Convento da Arrábida – Fundação Oriente.
Visita ao Convento Velho:
Ermidas do Senhor dos Aflitos e de Frei Agostinho da Cruz.
11.30 h - Capela da Memória de Nossa Senhora da Arrábida
Celebração
Saudação
Leitura de textos: de Agostinho da Silva sobre o Culto do Espírito Santo
e de António Quadros, Dalila Pereira da Costa , Padre António Vieira
Coroação das Crianças
Evocação / Música - Cânticos
Trovas para o Menino Imperador, de António Quadros
Divino Espírito Santo, quadras de Agostinho da Silva
Bodo
13.30 h - Junto ao caminho de Alportuche. Será oferecido o bodo.
Durante a tarde - Confraternização
Convite à livre participação das pessoas presentes.
Colaboração de: Nova Águia / CC.M.I.L - Movimento Internacional Lusófono
Núcleos M.I.L de: Setúbal, Alhos Vedros, Lisboa e Sintra
Escola Aberta Agostinho da Silva - Casa Amarela /
CACAV- Cooperativa de Animação Cultural de Alhos Vedros
Livraria Uni Verso
BioSani
Art’ H. Palaestra
Ordem de Cavalaria do Sagrado Portugal
União Budista Portuguesa
“O melhor de si mesmos porá os homens no plano do divino e o plano
divino resplandecerá na crença de que é inteligível a estrutura do mundo”
- Agostinho da Silva, "Condições e Missão da Comunidade Luso - Brasileira",
in Nova Águia, Nº3, 2009.
C O N V E N T O S O N H O / A S S O C I A Ç Ã O A G O S T I N H O D A S I L V A
Apoio: Convento da Arrábida - Fundação Oriente
~~~ WORLD WATSU WEEK ~~~
(Peço permissão para divulgar uma actividade...
Para ver melhor o conteúdo, clicar em cima da imagem)
todos sabem que é a minha paixão...
não é segredo para ninguém, por isso...
Queiram fazer o favor de passar a mensagem:
10 a 16 de Junho, nas Caldas de Sangemil, Viseu.
Sessões de Watsu GRÁTIS!!!
Marcações e pedidos de informação em: info.watsu@gmail.com
Apareçam! levem amigos ou familiares
experimentem uma viagem fantástica e relaxante para o corpo e alma*
Eu vou lá estar de certeza!!!
Soneto inútil
na beira-mar sinto o vento me levar
e esta substancia insubstancial é calma,
nesta vida estou morrendo de vagar.
E vago levo o corpo além de tudo
e quando ando, o universo fica mudo,
não somente as coisas também os seres,
amados, conhecidos e tudo que queres.
E todos, na verdade, esperam o declínio,
a minha morte medíocre e prematura
e eu ajudo bastante com o vinho,
que nasce da bondade na sagrada natura.
Ninguém beijo e ninguém pode me beijar,
sou o eterno estrangeiro na beira do mar.
Madragoa 26.05.09
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Nacionalismo e Espelho de Narciso
- Albert Caraco, Bréviaire du Chaos, Lausanne, L'Âge d'Homme, 1999, p.88.
terça-feira, 26 de maio de 2009
belavista
(In)Finito(s)
imagem google
gosto da possibilidade de recriar infinitos em mim,
como se me movimentasse em labirinto de espiral,
em busca de silêncio, quietude,
na minha eterna solidão...
"Só há procura por não se saber o que se procura" - Jigme Khyentse Rinpoche
segunda-feira, 25 de maio de 2009
"A minha palavra é como as estrelas, que não empalidecem"
Carta do Chefe Seattle (1855)
Em 1855, o Chefe Seattle, da tribo Suquamish, do Estado de Washington, enviou esta carta ao presidente dos Estados Unidos, Francis Pierce, depois de o Governo ter dado a entender que pretendia comprar o território ocupado por aquela nação índia.
Faz mais de um século e meio. Mas a força das palavras do ancião têm uma espantosa actualidade.
"O grande chefe de Washington mandou dizer que quer comprar a nossa terra. O grande chefe assegurou-nos também da sua amizade e benevolência. Isto é simpático da sua parte, pois sabemos que ele não necessita da nossa amizade. Iremos pensar na sua oferta, pois sabemos também que, se o não fizermos, o homem branco virá com armas e tomará a nossa terra. O grande chefe de Washington pode acreditar no que o chefe Seattle diz, com a mesma certeza com que os nossos irmãos brancos podem confiar na mudança das estações do ano. A minha palavra é como as estrelas, que não empalidecem.
Como pode-se comprar ou vender o céu, ou o calor da terra? Tal ideia é-nos estranha. Nós não somos donos da pureza do ar ou do brilho da água. Como poderá então compra-no-los? Nós decidimos apenas sobre as coisas do nosso tempo. Toda esta terra é sagrada para o meu povo. Cada folha reluzente, todas as praias de areia, cada véu de neblina nas florestas escuras, cada clareira e o zumbido dos insectos são sagrados na tradição e na crença do meu povo.
Sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de vida. Para ele, um pedaço de terra é igual a outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la, vai-se embora. Deixa para trás o túmulo de seu pai, sem remorsos. Rouba a terra dos seus filhos, e nada respeita. Esquece os antepassados e os direitos dos filhos. A sua ganância empobrece a terra e deixa atrás de si os desertos. As suas cidades são um tormento para os olhos do homem de pele vermelha, mas talvez seja assim por ser este um selvagem que nada compreende.
Não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar das folhas na Primavera ou o zunir das asas dos insectos. Talvez por ser um selvagem que nada entende, o barulho das cidades é terrível para os meus ouvidos. E que espécie de vida é essa em que o homem não pode ouvir a voz do corvo nocturno ou o falar dos sapos no brejo, à noite? Um índio prefere o suave sussurro do vento sobre o espelho de água e o próprio cheiro do vento, purificado pela chuva do meio-dia e o aroma dos pinheiros. O ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar, animais, árvores e homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira. Como um moribundo, ele é insensível ao mau cheiro.
Se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma. Vi milhares de bisontes apodrecendo nas pradarias, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais valioso que um bisonte, mais do que nós, peles vermelhas matamos apenas para sustentar a nossa própria vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, os homens morreriam de solidão espiritual, porque tudo quanto acontece aos animais pode também afectar os homens. Tudo quanto fere a terra, fere também os filhos da terra.
Os nossos filhos viram os pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio e envenenam o corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias. Eles não serão muitos. Mais algumas horas, ou até mesmo alguns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nestas terras ou que têm vagueado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre os túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança, como o nosso.
Uma coisa sabemos, que o homem branco talvez venha a descobrir um dia: o nosso Deus é o mesmo Deus. Talvez ele julgue que pode ser dono d’Ele, da mesma maneira como deseja possuir a nossa terra. Mas não pode. Ele é Deus de todos. E quer bem da mesma maneira ao homem vermelho como ao branco. A terra é amada por Ele. Causar dano à terra é demonstrar desprezo pelo Criador. O homem branco também vai desaparecer, talvez mais depressa do que as outras raças. Continua sujando a sua própria cama e há-de morrer, uma noite, sufocado nos seus próprios dejectos. Depois de abatido o último bisonte e domados todos os cavalos selvagens, quando as matas misteriosas federem a gente, quando as colinas escarpadas se encherem de fios que falam, onde ficarão então as florestas e as pradarias ? Terão acabado. E as águias? Ter-se-ão ido embora. Restará dizer adeus à andorinha da torre, e à caça; o fim da vida e o começo da luta pela sobrevivência.
Talvez compreendêssemos com que sonha o homem branco se soubéssemos quais as esperanças que transmite a seus filhos nas longas noites de inverno, que visões de futuro oferece para que possam ser formados os desejos do dia de amanhã. Mas nós somos selvagens. Os sonhos do homem branco são-nos desconhecidos. E por serem, desconhecidos temos que escolher o nosso próprio caminho. Se consentirmos na venda, será apenas para garantir as reservas que nos prometeste. Lá, talvez possamos viver os nossos últimos dias como desejamos. Depois que o último homem vermelho tiver partido e a sua lembrança não passar da sombra duma nuvem a pairar sobre as pradarias, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e margens, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amámos. Protege-a, como nós a protegíamos. Nunca esqueças como era a terra quando dela tomaste posse. E com toda a tua força, o teu poder e todo o teu coração, conserva-a para os teus filhos, e ama-a como Deus a todos nos ama. Uma coisa sabemos: o nosso Deus é o mesmo Deus. Esta terra é querida por Ele. Nem mesmo o homem branco pode evitar o nosso destino comum."
Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/seattle1.htm
(ortografia e sintaxe adaptadas)
Original inglês: http://www.context.org/ICLIB/IC03/Seattle.htm
proletários deste miserável país
unamo-nos
todos os que devemos
abaixo de mil euros
juntemo-nos
federemo-nos
fundemos nosso próprio Banco
tomemos
nossas dívidas por quotas
calotes por ações
devamos em conjunto
não mil
mas mil milhões
reclamemos
às portas de S. Bento
para o Hall de entrada
do Banco de Portugal:
Socorro
este é o nosso Banco
estamos com a corda na garganta
Na impossibilidade física
comercial
de distribuírem
um pequeno baraço
a cada devedor
não tarda nos abordarão
não só para nos cortar a homicida corda da garganta
como para ver se alguém
ficou com marcas
nas carótidas
praxis
o medo cerca-nos esse medo tem um nome, biopoder. o estado actualizou os tentáculos 'polvolares' que asfixiavam sartre.
.da necessidade
a revolta quotidiana é a unica solução. é emergente fazer da atitude diária uma práxis revolucionária
Celso Charuri: Existe um amor maior
Celso Charuri, excerto de palestra de 8 de Setembro de 1981
domingo, 24 de maio de 2009
Miguel Sousa Tavares: Não Te Deixarei Morrer, David Crockett
Antes da queda de Granada, antes das fogueiras da Inquisição, antes dos massacres da Argélia, o Mediterrâneo ergueu uma civilização fundada na celebração da vida, na beleza de todas as coisas e na tolerância dos que sabem que, seja qual for o Deus que reclame a nossa vida morta, o resto é nosso e pertence-nos – por uma única, breve e intensa passagem. É a isso que chamamos liberdade – a grande herança do mundo do Mediterrâneo.
(...) Sabes, quem não acredita em Deus, acredita nestas coisas, que tem como evidentes. Acredita na eternidade das pedras e não na dos sentimentos; acredita na integridade da água, do vento, das estrelas. Eu acredito na continuidade das coisas que amamos, acredito que para sempre ouviremos o som da água no rio onde tantas vezes mergulhámos a cara, para sempre passaremos pela sombra da árvore onde tantas vezes parámos, para sempre seremos a brisa que entra e passeia pela casa, para sempre deslizaremos através do silêncio das noites quietas em que tantas vezes olhámos o céu e interrogámos o seu sentido. Nisto eu acredito: na veemência destas coisas sem princípio nem fim, na verdade dos sentimentos nunca traídos.
Miguel Sousa Tavares, in 'Não Te Deixarei Morrer, David Crockett '
Sopra-me na brisa
contém um pedaço de mim num rasgo de ti
é assim que a luz penetra na penumbra
sexta-feira, 22 de maio de 2009
Corpo Casulo
Há esconderijos nas conchas do corpo.
Mão, cancela que abriga e obriga, concha dos olhos
Casa, casar, casulo, centro, local de onde se parte e aonde se chega
A casa sou eu
corpo casulo
Segredo coreográfico para dançar (aqui)
Cada lugar e cada casa têm o seu tempo próprio. Um tempo secreto.
Cada movimento também.
Encontre as conchas do corpo com as mãos.
Viaje com as mãos entre as várias conchas do corpo.
Encontre um segredo numa das imagens.
Esconda esse segredo numa concha do corpo.
Traga agora o segredo à boca para o contar aos dedos.
Entrelace os dedos e deixe as mãos seguirem o caminho dos braços até o corpo se abraçar a si próprio.
Feche os olhos durante cinco segundos e sonhe com casulos.
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Herberto Helder: As Musas Cegas
Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
- E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.
Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
- Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto-
e doado às coisas mínimas.
Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
- Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.
Essa mulher cercou-me com as duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.
Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança. Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trêmulas
da carne,
tudo o que é úmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
- não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.
E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.
Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.
Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me; multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.
quarta-feira, 20 de maio de 2009
Sobressaltos - Três raças de homens
- Albert Caraco, Bréviaire du chaos, Lausanne, L'Âge d'Homme, 1999, p.8
Le dessous des choses - The hidden side of things
A rapariga que inclinava paredes.
Raiz, espalhar casas por todo o lado para fazer o nosso mundo, caminhar para dentro da terra usando as mãos como pás aéreas, pregar a cabeça à terra e existir ao contrário.
Diagonal, abismo, ter os pés colados à terra e desafiar o equilíbrio, inclinar-se sem cair, enterrar-se sem morrer e encontrar-se na inclinação para um beijo de testas.
.
Fábula coreográfica para dançar (agora)
Coelhos brancos nas pontas dos cabelos
Ar, caminhar sem chão, dormir no ar, escrever arcos com o corpo.
Expirar, transportar em espiral, dar marradinhas no espaço, levitar os braços.
Danças sem chão
Fábula coreográfica para dançar (agora)
Antigamente, todos tínhamos mais ar dentro de nós do que agora.
Esse ar dava origem a que no espaço interior dos corpos pudesse haver mais vida. E havia. Havia coelhos que nasciam, cresciam dentro do corpo e faziam todos os homens saltar mais. Saltos muitos e pequenos, saltos em arco, grandes saltos e reviravoltas que levavam os corpos dos homens a saltar. Porque os coelhos dentro de si não paravam de saltar, os homens mantinham-se no ar com muita facilidade. Um dia, os coelhos quiseram fugir e saíram pelas pontas dos cabelos dos homens.
A partir daí, tudo se tornou mais complicado. Os homens, para saltar, tiveram que inventar a dança, ou então sonhar bastante para poderem por vezes dormir no ar.
Experimente o coelho que poderá ter habitado dentro de si. Dê saltos, muitos e pequenos, saltos em arco, grandes saltos e reviravoltas, respire e volte ao princípio.
Palavras que justificam aprender a ler - As cinco aflições
Herberto Helder: Trabalha naquilo antigo
terça-feira, 19 de maio de 2009
Deixa que a vida se reduza a cinzas e sonha que não é a morte
"A minha vida torna-se amarga com o teu amor; os teus olhos
Cegam-me, as tuas tranças queimam-me, os teus suspiros profundos
Dividem a minha carne e o meu espírito com um débil som,
E o meu sangue fortalece-se, e as minhas veias transbordam.
Peço-te que não suspires, não fales, não respires;
Deixa que a vida se reduza a cinzas e sonha que não é a morte.
Queria que o mar nos tivesse escondido, o fogo
(Terás tu medo disso e não receias o meu desejo?)
Quebrou os ossos que branqueiam, a carne que se fende,
E deixa que as nossas cinzas joeiradas caiam como folhas.
Sinto o teu sangue contra o meu; a minha dor
Atormenta-te, e os lábios esmagam os lábios, a veia dilacera a veia.
Que o fruto seja esmagado sobre o fruto, e a flor sobre a flor,
Que o seio desperte o seio e ambos ardam uma hora.
Porque hás-de tu seguir um amor sem importância? É o teu
Demasiado fraco para sustentar estas minhas mãos e estes meus lábios?
[...]"
- A. C. Swinburne, Poemas, Lisboa, Relógio d'Água, 2006, p.37
A controvérsia brâmanes-budistas / Filosofia e Poesia da Saudade
Deixo também a notícia do meu próximo curso na Associação Agostinho da Silva (Rua do Jasmim, 11, 2º, ao Príncipe Real).
Curso de Introdução à Filosofia e Poesia da Saudade:
5, 12, 19 e 26 de Junho (sempre às sextas) das 18h às 19h30.
Custo: 40 euros
Inscrições até à primeira sessão: agostinhodasilva@mail.pt; 967044286
1. A Saudade e o Amor nos Cancioneiros medievais, em D. Duarte, Luís de Camões e D. Francisco Manuel de Melo.
2. A Saudade no mito de Pedro e Inês e no teatro de António Patrício.
3. Saudade e saudosismo em Teixeira de Pascoaes.
4. A Saudade e a “pátria anterior” em Fernando Pessoa.
Por uma Cultura orientada para o Despertar
segunda-feira, 18 de maio de 2009
Mario Benedetti/ Certificado de existencia
Ah ¿quién me salvara de existir?
Fernando Pessoa
Dijo el fulano presuntuoso /
hoy en el consulado
obtuve el habitual
certificado de existencia
consta aquí que estoy vivo
de manera que basta de calumnias
este papel soberbio / irrefutable
atestigua que existo
si me enfrento al espejo
y mi rostro no está
aguantaré sereno
despejado
¿no llevo acaso en la cartera
mi recién adquirido
mi flamante
certificado de existencia?
vivir / después de todo
no es tan fundamental
lo importante es que alguien
debidamente autorizado
certifique que uno
probadamente existe
cuando abro el diario y leo
mi propia necrológica
me apena que no sepan
qu estoy en condiciones
de mostrar dondequiera
y a quien sea
un vigente prolijo y minucioso
certificado de existencia
existo
luego pienso
¿cuántos zutanos andan por la calle
creyendo que están vivos
cuando en rigor carecen del genuino
irremplazable
soberano
certificado de existencia?
Mario Benedetti (1920-2009): morreu aos 88 anos, no dia 17 de Maio de 2009 em Montevidéu
Sy NAu éZ Lyber aHorA ahSegiRe fuZYlaSSS-TÚ
Sy NAu éZ Lyber aHorA ahSegiRe fuZYlaSSS-TÚ
Jigme Khyentse Rinpoche em Lisboa, 21 de Maio, 19 h
Caros Amigos,
É com enorme prazer que vos informamos da presença de Jigme Khyentse Rinpoche em Lisboa, e da Conferência, que aceitou realizar, a convite da Fundação Kangyur Rinpoche e da Songtsen - Casa da Cultura do Tibete.
A data é 21 de Maio, pelas 19h, no hotel Tiara Park Atlantic Lisboa (Rua Castilho, 149).
A contribuição será de 10 euros, (5 eur para os "Amigos da FKR" - www.krfportugal.org) não sendo necessária inscrição prévia.
Esperamos vê-los em breve !
Fundação Kangyur Rinpoche
Dear Friends,
We are delighted to inform you that Jigme Khyentse Rinpoche will give a conference at 19h00, 21 May, at the Tiara Park Atlantic hotel in Lisbon (Rua Castilho, 149).
We hope you will be able to attend this event.
The entrance fee is 10€ (5€ reduced tariff for "KRF's Partners" - www.krfportugal.org).
With best wishes,
Fundação Kangyur Rinpoche
--
Fundação Kangyur Rinpoche
Actividades:
Rua Conde Almoster, nº98 - 13ºE | Tel. 211 535 449 / 21 390 40 22 / 934 353 961
Correspondência:
Rua Conde Almoster, nº106 - 12ºD
1500 - 197 Lisboa
www.krfportugal.org
Chogyam Trungpa Rinpoche: Agora
Chogyam Trungpa Rinpoche
domingo, 17 de maio de 2009
um mar turbulento, nas raízes do corpo. Este corpo que sobrevive sem o espírito - está morto!
É nesta súbita lucidez, no quarto rodeado de paredes brancas, que divido a sombra. Diria que é uma divisória envidraçada, onde vejo, além - vêem também? - um homem que faz o gesto de um relógio, e executa o movimento dos ponteiros. E não pára. Grito para que pare, mas ele não me ouve; apenas lê o movimento dos lábios, que narra a deslocação de um silêncio ensurdecedor. «Ouve-me!», peço-lhe mais uma vez. É um pedido, que nunca, nas linhas telefónicas já sem ligação, chegou a acontecer no tímpano, a vibração da música.
Liliana Jasmim
A Princesa Lai e o Espelho de Água...agradecimento
Remetia-se, frequentemente, para os confins do seu ser, procurando apenas fluir sem que o universo das questões pela busca do ‘porquês' mais essenciais a atormentasse, em demasia…Perdia-se, e reencontrava-se, em espelho de água por vezes turvo pelas emoções mais nefastas que invadiam a sua quimérica existência…Outras vezes, mergulhava no abismo de si em solidão profunda. Chorava, sorria, quedava-se e chorava. E, o seu coração, era como que a macieza de uma pétala de rosa que contemplava a lua e flutuava na água, deleitando-se com pequenos salpicos de mar, chuva e cacimba, capazes de a purificar, em sorriso.
Comunicava, frequentemente, pelo gesto meigo, olhar terno mas melancólico e voz melodiosa que irradiavam a busca pelo Amor, a perfeição de Lótus, a compaixão de Jesus e de Yeshe Dawa cruzadas em horizonte de almejada Felicidade. Intuía, e escrevia, com/pela/na Saudade de um Jardim, algures, perdido no horizonte de si, onde as cores, as palavras e as imagens são acordes de violino e gotas de lágrimas que se movimentam em espiral de redescoberta, e renascimento. Só assim cresceriam asas em Lai…em trilho de deserto, vestígio de praia…Resistindo à miragem de samsara e desvelando o oásis de nirvana que lhe surgia, fragmentado.
Silenciava-se, aquietava-se e sabia que poderia voar pelas asas do coração, onde na sua essência se albergavam a solidão e a saudade, em mistério de si…
Filosofia e Estudos Orientais - Inscrições abertas
Filosofia e Estudos Orientais
Curso de Especialização
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Objectivos: Curso de especialização que visa estudar e aprofundar os princípios e temas fundamentais do pensamento e da cultura oriental (da Índia ao Japão).
Sinopse do curso: Este curso permitirá uma introdução às tradições filosóficas e culturais cultivadas na Ásia (Hinduísmo, Budismo, Confucionismo, Taoísmo, entre outras) possibilitando o conhecimento dos seus principais ensinamentos filosóficos, bem como das suas diferentes práticas, em particular aquelas que se reflectem na vida artística dessas comunidades. Será igualmente dada importância ao modo como o pensamento e a sabedoria oriental reequacionam a relação do homem com o mundo, criando soluções novas para os dilemas com que as sociedades e os indivíduos hoje se confrontam, e serão abordados aspectos fundamentais da relação da cultura e da filosofia portuguesas e ocidentais com as culturas orientais.
Público-alvo: este curso destina-se a todos os que pretendam compreender o fenómeno de ressurgimento e popularização do interesse pela cultura oriental e queiram desenvolver o diálogo intercultural.
Responsáveis científicos: Carlos João Correia; Paulo Borges
Equipa de docentes: Paulo Borges; Carlos João Correia
Outros Docentes: Filipa Afonso, Ana Cristina Alves, Fabrizio Boscaglia, Duarte Braga, Antonio Cardiello, Bruno Béu Carvalho, Renato Epifânio, Paulo Guedes, Miguel Gullander, Dirk Hennrich, Beatriz Lobo, Rui Lopo, Joana Luís, Vasco Marques, Paula Morais, Lavínia Pereira, Amon Pinho, Romana Pinho, Ricardo Ventura.
Seminários:
1. Filosofia Clássica Indiana (1ºsemestre)
2. Introdução ao Budismo (1ºsemestre)
3. Oriente/Ocidente: diálogos e cruzamentos (2ºsemestre)
4. O Budismo e o Extremo-Oriente (2ºsemestre)
Unidades de Crédito: 60 UC
Horário do curso: pós-laboral
Propinas: a serem definidas pela Universidade de Lisboa
Data-limite das candidaturas: 28 de Agosto de 2009
Para mais informações:
http://www.carlosjoaocorreia.com/oriente
Contactos:
Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Tel: 21 7920050
Fax: 21 7960063
E-mail:
pauloaeborges@gmail.com;
carlosjoaocorreia@gmail.com;
filomena.martins@fl.ul.pt
sexta-feira, 15 de maio de 2009
A Renúncia
- Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Paulinas Editora, p. 260
quinta-feira, 14 de maio de 2009
Poeta
Nos meus olhos, divina claridade
A minha pátria aldeia alumiou
Duma luz triste, que era já saudade.
Humildes, pobres cousas, como eu sou
Dor acesa na vossa escuridade...
Sou, em futuro, o tempo que passou-
Em num, o antigo tempo é nova idade.
Sou fraga da montanha, névoa astral,
Quimérica figura matinal,
Imagem de alma em terra modelada.
Sou o homem de si mesmo fugitivo;
Fantasma a delirar, mistério vivo,
A loucura de Deus, o sonho e o nada.
Teixeira de Pascoaes
Sempre (1898)
In Poesia de Teixeira de Pascoaes
Org. de Silvina Rodrigues Lopes
Lisboa, Editorial Comunicação, 1987
quarta-feira, 13 de maio de 2009
Pétalas ao vento
quisera voar livre, como o vento...
sentir o odor dos pastos, do mar e da cidade
ainda que impregnada de vultos vazios
reenergizar-se em trespasse de luz
dança de mil e um sons
encantamento de natureza
sempre vislumbre de pureza
as suas asas eram pétalas de rosa
feminilidade ao luar
maciez ao tocar
um desejo
um suspiro
uma recordação
eis a essência de seu coração
terça-feira, 12 de maio de 2009
segunda-feira, 11 de maio de 2009
Cá nesta Babilónia
Matéria a quanto mal o mundo cria;
Cá, onde o puro Amor não tem valia,
Que a Mãe, que manda mais, tudo profana;
Cá, onde o mal se afina, o bem se dana,
E pode mais que a honra a tirania;
Cá, onde a errada e cega Monarquia
Cuida que um nome vão a Deus engana;
Cá, neste labirinto, onde a Nobreza,
O Valor e o Saber pedindo vão
Às portas da Cobiça e da Vileza;
Cá, neste escuro caos de confusão,
Cumprindo o curso estou da natureza.
Vê se me esquecerei de ti, Sião!
Luís Vaz de Camões, in "Sonetos"
Eu não Quero o Presente, Quero a Realidade
Vive só no presente.
Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.
O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.
Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.
Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.
Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas,
Vê-las sem tempo, nem espaço,
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.
Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"
Heterónimo de Fernando Pessoa
domingo, 10 de maio de 2009
Um traço - Continuidade textual e fulgurações
sábado, 9 de maio de 2009
O Encoberto
- Mestre Eckhart, Tratados e Sermões, Paulinas Editora, p.169
sexta-feira, 8 de maio de 2009
Dor
Toda a vida sofri
A dor de não haver
Quem me quisesse aqui
Restando-me morrer.
Toda a vida sofri
A dor de não ser querido
Por isso morri
Só sem nenhum amigo.
Toda a vida sofri
A dor do detestado
Eis porque choro assim
Do mundo abandonado.
Toda a vida sofri
A dor que trago ao peito
Hoje adormeço aqui
No derradeiro leito.
Acrescento-lhe outro que saiu agora:
Fado suicida
Sofro desde um tempo
Que não tem memória
Com um ou outro momento
Em que virei a história.
Sofro desde um tempo
Que terá tido começo
Mas hoje sem alento
Já frio me despeço.
Sofro desde um tempo
Que habita na escuridão
Nos nuncas do vento
Nos nadas da paixão.
Sofro desde um tempo
Que sofrido foi sonhado
Eis que chega o momento
De cumprir o meu fado.
Outro:
Imo negro
Fria e escura realidade
Adormecida insanidade
Infundo corta o inexistir
Vislumbre eterno vou partir.
Cinza vento eis o dia
Anoitece a manhã fria
Alva a noite não se cura
Espinho lento nada dura.
Fria e escura ansiedade
Não nascida sem idade
De nenhures de um confim
Onde late um motim.
Ardente negra a porta
Grito escuro à minha volta
Do outro lado o abismo
Para onde me dirijo.
A memória
Aperta o coração
Sufoca a garganta
Traz lágrimas submersas
Reais e não choradas
Vertidas na consciência
Que lembra
A táctil música-espaço
Que anseia o impossível
Tactibilidade selvagem perdida
No horizonte
Sonhado para além
Da negridão para além
Da brancura para além de
Tudo és. Além
Ausente buraco negro
Sem fundo coração - tudo
Tocas, perscrutas
Se te perscruto na sabedoria
Nunca sabida oração até
Que os músicos da saudade
Silenciem a mente tua
Abandonada no mais frio
Imaculado nada.
João Darque, Pautas para uma obra imaginária, Livreira Nocturna, 1999.
Serenos Sobressaltos - "Basta pôr fim às visões falsas"
- Sin-sin-ming, 3º Patriarca do Ch'an.
Que serão as "visões falsas"? Diria: as visões.
Esvaziar a Alma
- Mestre Eckhart, Tratados e Sermões
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Estou na escuridão
Envolvem-me eternos nadas
No passeio há folhas caídas
Os meus passos silenciosos
Ecoam no infinito e chegam
Aos ouvidos de Deus
Que chora a Sua criação
E ignorante se pergunta:
Meu Deus o que fui fazer?
Mas não obtém resposta
E isolado de tudo na mais
Imaculada solidão
Apercebe-se do nada
Que está para lá de todas
As coisas
Que ecoam ruidosamente
No mais íntimo de Si
E então chora
E envergonha-Se
E sente culpa
Uma culpa tão grande
Que O leva a fechar-Se
Em Si
Num acto suicida
Quando mais nada pode
Que não sofrer a fatalidade
Do Fado que, todo-poderoso
O guia pela rua cinzenta
Onde os brilhos na sujidade são
Deslumbres, meros deslumbres
Que logo passam e que até
O entristecem como a alegria
O entristece ao um dia
Ter vindo a saber
Do seu ser como eco etéreo
Que efémero ecoa no infinito
Longe, como um espelho
Que se quebra no espaço negro
Em alturas imaginadas libertas
De todos os astros que sabe serem
Fogos de artifício que antecedem
A morte que criou, enfeitiçado
Pela Sua própria ignorância impelido
Por uma vontade louca
Que o cegou enquanto se distraía
Na fruição da luz que acabou
Por obscurecê-Lo e transformá-Lo
Em eco no infinito.
João Darque, Pautas para uma obra imaginária, Livreira Nocturna, 1999.