sexta-feira, 29 de maio de 2009
Transcender Deus
Apresento a conclusão da comunicação que apresentarei hoje, pelas 18.00, com o título "Transcender Deus: de Eckhart a Silesius", no encerramento do II Colóquio da Sociedade Portuguesa de Filosofia Medieval, no Anf. III da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:
Poder-se-ia dizer que a verdade última da religião, desvelada pela mística, é a morte de Deus, vivida não só como a extinção de todos os conceitos e representações teológicos, mas também como a ausência, a abs-entia, a não entidade, da suposta Presença absoluta. Neste sentido, e para dialogar apenas com uma das emergências do tema da “morte de Deus” no pensamento ocidental, cremos ser esta primordial morte de Deus, inerente à experiência última do que se designa como Deus, que permite compreender o efeito da morte de Deus proclamada pelo “insensato” nietzscheano: “Para onde vamos nós próprios? […] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Não será afinal, esta experiência de vazio, ausência de fundo e referências - consequência da humana abdicação da ideia de um absoluto princípio ordenador do mundo e da vida - , a própria experiência desse abismo, fundo sem fundo, deserto e morada onde ninguém mora que a tradição mística vive como a experiência última do transcender Deus? Não será o que Nietzsche proclama como “morte de Deus” a própria experiência do absoluto trans-divino e trans-teológico, porém por sujeitos que não parecem preparados para a suportar? Daí a confissão: “A grandeza deste acto é demasiado grande para nós”.
Há assim um ateísmo, primordial e inumano, que excede o humano e que, embora imprevistamente se lhe abra no seio da experiência de negação do divino, lhe é dificilmente suportável. Daí que o “insensato” nietzscheano acrescente à declaração anterior: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela?”. Passa-se assim da morte de Deus para a divinização do homem, o que é já uma demissão do abismo trans-divino, que procura introduzir no “deserto” primordial quem o habite, insulando entificações na sua vastidão hiante. Perante a efectiva transcensão mística de Deus, o projecto ateu da modernidade parece ser bem mais piedoso, trocando o abismo pelo ídolo deificado da própria humanidade. Como também viu Nietzsche, os ateus comuns são afinal bem “piedosas gentes”, que apenas se desprendem da metade divina do rosto do ídolo para mais se prenderem à sua gémea metade humana.
Poder-se-ia dizer que a verdade última da religião, desvelada pela mística, é a morte de Deus, vivida não só como a extinção de todos os conceitos e representações teológicos, mas também como a ausência, a abs-entia, a não entidade, da suposta Presença absoluta. Neste sentido, e para dialogar apenas com uma das emergências do tema da “morte de Deus” no pensamento ocidental, cremos ser esta primordial morte de Deus, inerente à experiência última do que se designa como Deus, que permite compreender o efeito da morte de Deus proclamada pelo “insensato” nietzscheano: “Para onde vamos nós próprios? […] Não estaremos incessantemente a cair? Para diante, para trás, para o lado, para todos os lados? Haverá ainda um acima, um abaixo? Não estaremos errando através de um vazio infinito? Não sentiremos na face o sopro do vazio?”. Não será afinal, esta experiência de vazio, ausência de fundo e referências - consequência da humana abdicação da ideia de um absoluto princípio ordenador do mundo e da vida - , a própria experiência desse abismo, fundo sem fundo, deserto e morada onde ninguém mora que a tradição mística vive como a experiência última do transcender Deus? Não será o que Nietzsche proclama como “morte de Deus” a própria experiência do absoluto trans-divino e trans-teológico, porém por sujeitos que não parecem preparados para a suportar? Daí a confissão: “A grandeza deste acto é demasiado grande para nós”.
Há assim um ateísmo, primordial e inumano, que excede o humano e que, embora imprevistamente se lhe abra no seio da experiência de negação do divino, lhe é dificilmente suportável. Daí que o “insensato” nietzscheano acrescente à declaração anterior: “Não será preciso que nós próprios nos tornemos deuses para, simplesmente, parecermos dignos dela?”. Passa-se assim da morte de Deus para a divinização do homem, o que é já uma demissão do abismo trans-divino, que procura introduzir no “deserto” primordial quem o habite, insulando entificações na sua vastidão hiante. Perante a efectiva transcensão mística de Deus, o projecto ateu da modernidade parece ser bem mais piedoso, trocando o abismo pelo ídolo deificado da própria humanidade. Como também viu Nietzsche, os ateus comuns são afinal bem “piedosas gentes”, que apenas se desprendem da metade divina do rosto do ídolo para mais se prenderem à sua gémea metade humana.
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15 comentários:
Caro Paulo,
é verdade que vou poder ouvi-lo no lançamento da Nova Àguia, em Sintra?
Ou será o Dr. Renato Epifânio?
Cumprimentos aos dois*
Cara Sereia, na verdade será o Renato. Eu estarei na Arrábida.
É uma pena que no Penedo já não se festeje o Espírito Santo, na verdade! Mas sem torturar o touro... Basta-nos o que somos.
Saudações pentecostais e folionas
como ateu, reconheço-me imensamente religioso. não percebemos as religiões, mas sabemos um segredo que ninguém percebe, acreditamos não acreditando.
Pois, Paulo, me parece importante relevar essa dimensão abísmica e última da mística moderna: a da morte de Deus. É bem verdade que essa "abs-entia" tem o perigo de fazer recaír o divino no humano e tornar a morte de deus numa divinização do homem, uma outra face do mesmo "errante" e erro do pensamento humano? Será que estaremos à altura de tal transcendência e vazio, transdivino e absoluto operado em nós? Podemos dizer, como Nietzsche, que o ateu é ainda o que apenas "dispensa" a metade divina, para mais se agarrarem à outra, à humana, fazendo do homem o ídolo de si mesmo?
Muito claro fica o entendimento que a morte de deus, nada pode fazer de diferente do que matar no mesmo movimento ou gesto, o deus do homem e o homem-deus.
É preciso ir e "cair" ainda mais fundo, ao vazio do vazio, à transcendência sem "troca"; à plenitude livre(?) do nada?...
Grata pela reflexão...
Um discurso do abismo - agora tenho de fazer a catarse do mesmo. Gostei muito também de ouvir falar o Professor Leonel Ribeiro dos Santos, especialmente porque falou na solidão de Petrarca, na subida à montanha e do sentimento estético do sublime, vastidão, imensidão - o que de certa forma vai dar ao abismo.
Abraço ainda convalescente.
maltez, de qual professor gostas-te, de todos? para anarquista és um bom engraxador..
Não, na verdade não gostei de todos. Gostei daqueles de que falei. Para além disso, não preciso de engraxar ninguém porque não quero nem espero nada de ninguém :) de resto, já estava à espera de uma resposta dessas.
Gostei bastante, repito, do que falou Leonel Ribeiro dos Santos, porque me identifico com as "personagens" de que falou.
O discurso de Paulo Borges, porém, foi mais inquietante.
Que dizes baal?
O único interesse que eu poderia ter naquele sítio seria o curso - que de facto me interessa - de Filosofia e Estudos Orientais, que até pensei frequentar, o que não vai acontecer porque não estarei em Portugal - espero estar neste mundo - se tudo correr bem. Por isso tenho total liberdade para dizer o que me apetece. Digo-te ainda que achei interessante o discurso daquele mais jovem, que falou da vontade, porque é um tema que me interessa, embora não concorde com a opinião do autor que ele referiu. Os outros podem ter sido bons - e decerto foram porque se trata de especialistas -, mas não me tocam pessoalmente (os temas). Aí tens a reportagem (in)completa de um tarde quente e diferente.
do leonel o livro, do paulo o budismo, da vida nada.
A catarse foi feita ao som do Requiem de Mozart, seguido do Seventh Son de Maiden, depois In my darkest hour de Megadeth e agora estou a ouvir Day is done de Nick Drake pela enésima vez.
deixa-me engraxar-te um pouco: admiro a tua inteligência.
o livro dei-o.
o budismo não pratico.
a vida morre lentamente.
E algum de vocês transcende Deus? Ou seja, transcendem-se a vocês mesmos? Ou é só paleio de blog?
o que significa transcender-me a mim mesmo?
para aprenderem, na arrábida uma vez era novo e nadei mais que uma sereia, passei a pedra da anicha e olhei no meio do oceano, nem a serra ví, e pensei deus ensina-me o caminho e á praia voltei.
lindo
há bocado estive a ler o início do Evangelho de João e parece que ele identifica Deus com o íntimo.
e depois diz "nunca ninguém viu a Deus".
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