sábado, 30 de maio de 2009
Diálogos do Jardim
Para se aproximarem das rosas, as palavras nascem sopradas de um som de partida. Um regresso ao anverso, ao avesso do fim. Ao fim do verso; ao lugar do desejo que diz que há laços íntimos entre corpo e escrita. Vêm, de costas voltadas para o nunca do texto e do jardim, os pescadores de sedas. Vêm desdobrando o fio de seda até ao olho do Minotauro, até ao caminho das pétalas das rosas, em direcção à luz. Em flores de fim de tarde, notas de laranja no branco das casas. O jardim abre as arcadas ao violino das palavras. As palavras fecham os olhos à luz exterior para melhor ouvir no marulhar da memória o enrolar da onda desfeita na praia do corpo reclinado do poeta. A onda cobre o corpo do poeta e há um incêndio a alastrar na sua cabeça em febre.A cabeça do poeta é um tigre ao sol. Parado na tarde, o jardim é uma savana, uma lua em forma de barco ou boca para dar de beber ao vento do deserto. A rapariga afasta-se da janela e a luz fecha o dia à chave. Como uma pedra a arder, um astro, a cabeça do poeta gira sobre si mesma antes de cair no mar, com o que nasce no peito da Saudade, com o que nasce da chegada para a outra chegada. Uma angústia de Aurora. Uma morte enche o peito subida em nostalgia. Saúdo o regresso. Um regresso que é um naufrágio. Nesse naufrágio com espectador salvam-se os que se afundam.
O pintor olhou o rosto das três raparigas cegas por terem visto a cabeça do poeta. A rapariga disse que a escuridão, ao Norte, é uma noite muito comprida. E nessa noite comprida, o poeta está dentro do tronco da árvore. Fuma cachimbo e é louco. Duma loucura sem sossego. De súbito, um sorriso desvia o centro da atenção para o lábio. A mão suspensa no ar é uma fenda no centro do mundo, uma eterna possibilidade de mudar o pensamento e a hora do jardim. Fazíamos crescer as tardes atadas ao frágil coração das rosas. Rosas de nascer. De regresso, o poeta viu o lilaseiro cobrir de flor as torres do jardim e o musgo das paredes. Tudo mudado! Ontem o leitor pensou que o paraíso é andar distraído a desfrutar os sons das aves. Foi esse som que levou o monge-cantor a atravessar o portão do convento, e a inaugurar um outro tempo para o ouvido. Os passos do cantor regressaram ao jardim. Não há tempo nem no nascimento nem na morte. Não há tempo no poema como não há no beijo: o mundo desapareceu há muito.O leitor mal desvia a vista, já se lhe escorrega o sentido pela húmida e fresca porção de terra de onde brotam os últimos malmequeres da Primavera. À mais pequena distracção, as rosas mudam. O poeta está distraído do sentido do texto. Perdido. O seu olhar abandona o jardim. Sobe pela janela do quarto das gaivotas para se perder na nuvem que, como floco macio do tempo, vaga para o lugar onde se fecharam algumas vozes. Taparam o rosto com a erva que sobrou do “Sonho de uma noite de Verão.” Sabe-se, desde o segredo de hoje e da luminosa presença do primeiro jardim, que na dança das vozes o poeta havia de emudecer. Uma língua natural tinha desabrochado desde as vides, na parede asida, e em todas as direcções onde o vento tinha espalhado sementes.Tinham esgotado o silêncio os pássaros e as mãos descascavam laranjas para um recipiente de loiça branca, ao lado da cisterna. Bebe o silêncio como um potro manso a vagarosa tarde. Sorviam o veneno da taça as sensações. Canções. “A ave que tem um laço na pata é humana. As rosas florescem uma vez” alguém terá escrito uma palavra de vento na superfície da folha, mesmo no desenho das pétalas caídas no “encadernado” do jardim. O jardim labiríntico das folhas! Visto de cima, o jardim era como uma estrela, mas de mais complexo desenho, em bifurcados e arredondados caminhos de arbustos. Um labirinto para outro tempo! Um buraco negro para as letras e para o sentido. Um tempo de jardineiros de pedra, mudos na dança. Atlantes.
Um sopro suave na face de uma palavra florida em cristalino vaso! Uma corda a vibrar na epiderme da língua: no céu do canto, no luminoso lago, entre lírios e rosas. Os olhos, parados, são o reflexo polido de um espelho de água, um coração de pérola. Brilhos que na lisura da tarde são pasto para a alegria nascente do sorriso de outras flores que brotam no jardim.
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53 comentários:
Maravilhoso, como sempre!Nunca é demais reler, aliás, os teus escritos são tão profundos que exigem essas releituras de prazer, em descoberta de sabedoria.
"até ao caminho das pétalas das rosas, em direcção à luz." - sabes bem como me toca este excerto, tu, que tb me lês, querida Saudades.
grata pela partilha
bj
Muito sensual, bonito e imaginativo.
Não sei quem és Saudades, mas perante o que escreves, ajoelho-me sempre!
autodefinição: «Saudades são 'poisagens'» :)
e a imagem desse micro-jardim é linda!
lembra-me um sonho lindo quase acordado, lembra-me um céu aberto outro fechado, escorre-me a veia em estrangulada.
fausto
"....sopra no peito um grito à desgarrada!...É como um sonho lindo, quase acordado...".
baal, agora nos vimos e nos entendemos em Fausto.
Grande e aberto sorriso "acordado",
baal (azul sem fato nem gravata)!
Fragmentus,
Sim, é verdade, também já leio os fragmentus que me lêem.
Sempre aberta à leitura e ao diálogo.
(...E imensamente grata também por isso)
Praxis,
Eu não sei o que dizer. Por isso nada digo. Mas quero também ajoelhar perante o que és, mesmo não sabendo, também.
Uma reverência sentida.
é como um céu aberto, outro fechado
adeus fragmentus, bem visto, para ser sincero não estou muito acordado
As ressonâncias podem ser coisas terríveis. Também.
Agora as rosas abrem no perfume da tua escrita e roubam-nos a atenção para esse lugar que não se sabe, mas cuja porta está escancarada para nós, como o portão do sonho que não é só do verão, mas de todas as estações. O sonho de uma sombra que se abre em nós como uma neblina matutina, como uma música que a alma ouve mesmo quando os pássaros estão, como Deus, em silêncio. O texto tem o poder de fazer sorrir e de alegrar...um dom da escrita quando vem das Fontes.
Também aqui um abraço
Não quero ser ressonância... Nem som apenas... mas benigna, decerto, Praxis!
Um abraço, então!
"Pronto, agora, na próxima sala, veremos o estilo que marca a transição para a Modernidade, o Impressionismo."
Isto ao som de "Entrai, pastores, entrai, por este portal sagraado" que sem música não se vive!
Caro No Museu-o gui,
Parece-nos dispensar por hoje o guia. Temos gravado o som:
"Pronto, agora, na próxima sala, veremos o estilo que marca a transição para a Modernidade, o Impressionismo."
Isto ao som de "Entrai, pastores, entrai, por este portal sagraado" que sem música não se vive!
(Sagremos-nos, pastorinhos, mesmo sem guia. Vamos saudar o menino.
O menino coroado, o Espírito Santo? Pentecostes. Venha a Folia e os "enfolinados", sobretudo sem guia... já o sabia, já o sabia!
É apenas um texto! Será?...)
Guiemo-nos por Ele, o Guia...
Isabel, minha boa amiga!
O que vem das fontes e~é em si mesma a aparição (sem intermediários) nem pastores nem senhora... Apenas o odor das rosas e as palavras leves, as que voam sobre o jardim.
As rosas abertas no perfume da escrita já é uma aproximação ao paraíso do texto, quiçá do jardim e do "rei dele"... Aguardamos que ele nasça da magia da leitura e dos perfumes de todas as estações.
Um abraço
no museu, o guia? fascismo? a cultura ensina-se?, não me parece.
Saudades, vinda da praia devo dizer-te que ouvi escos do teu jardim, pelo marulhar :) sempre grata!bj p/ti e Baal, e d+
(Para ler devagar, a chiar nos sss)
Claro que a cultura não se ensina. Cada um já vem com a sua, pois claro. Na pior das hipóteses contagiamo-nos, pois então!
Fascismo? Sempre foi a sinalética dos elitistas. "Cuidado com o cão, não o pise!"
Guia no museu, sim! Nada de street racing.
Por mim não dispensava era a Maria da Conceição (que não assobia nos "ss", mas decerto tem o melodioso sotaque das beiras "ssss") Ora, também assobia!
Que saudades dessa alma pura,dessa Senhora que decerto nos iria ser de grande utilidade neste diálogo. Ser-nos ia, creio, um melhor guia. Pois que a cultura não sei...
"A cultura aos cultores!"Fascismo artístico, já!" "Somos futuristas!..."
O que dizes baal, dispensamos o guia ou seguimos o que nos é indicado por o "penso eu de...?"
P.S. Até já, vou escrever um romance, já venho. Não sei se deve haver um guia... que dizem, dispensamos o guia?
Os fascistas ouvem música?
O riso contagia-se?
E a cultura... não sei.
Então vai lá escrever o romance e dá-me o título que eu compro, não por questões cultura que ninguém sabe, mas porque gosto de joelhos (dos meus).
Sim. Os fascistas ouvem o hino (com pena de o não terem escrito) e a marcha fúnebre (com um sorriso).
E Sim. Dispensem o guia e o penso eu de que. É gente má.
Corrijam o erro.
saudades , eu que sei de museus, ainda não sei se eles existem, conto-te uma história, desculpa não conto,se não era uma história museológica.conversa de vinho
isso não vale, agora conta! ;)
Pois não havia de ser, baal?
Eu já estou a pensar que não vais contar a história... também só porque é museológica, também não é razão... mas há essa do vinho!
Acho que devias, baal, contar a história... podemos falar com Gabriela (não a morena do Seu Nacib(?) (sorriso amarelado), mas a que "enchia a tela de ponto de texto, como se de bordado se tratasse..." Este é o início do romance (risadas)
Um abraço, baal, é sempre um prazer.
história/conto
Neste preciso momento, estou a ber três torres enormes, todas cum três andares que estão a ser conduzidas em direcção às muralhas. Estão apinhadas de soldados e cada uma delas pode deixar cair sobre as muralhas uma ponte lebadiça. O problema vai ser chegar às muralhas e passar o fosso a descoberto, debaixo do fogo inimigo. É a pior parte da guerra e custa sempre bidas.
Claro que bejo três torres pelo prisma da bobida, pois que "Muralhas" é o nome do binho! Luto por mais! ic!
ehhehe este blog é d+
não brinques com a saudades pk ela tb escreve sobre Castelos e Torres (e de forma soberana, claro está! ;)
é Verão e entardece
caminho no monte para o moínho
vejo os prados amarelo torrados
e as suas sombras, as oliveiras
ordenadas junto a mim
tudo é silencioso excepto
os passos das minha sandálias limpas
de pó
que caminham na Terra, nos grãos
semi alaranjada
à minha esquerda a lonjura
da planície estendida no nunca
e a vila que se ergue em colinas
sem fundo
na espera de uma noite estelar
que para sempre fica no coração
que se abre e onde tudo cabe
que tudo abarca
que de tudo é barca
embalada no mais doce vogar
na tua voz cantada
nas parvoíces que dizes
nas carícias que fazes
na ternura que és
e que só um poeta, que não sou
que de facto não sou
conseguirá dizer:
amo-te.
tu poetaste isso, Maltez, e eu isto:
«Sussurro, de rio
preencheste-me em maré, de mim
plenitude que esvaziou a minha descrença
e fez-se espuma, em nós
trilho horizontes perdidos e reencontrados
que se dispersam e aglutinam na brisa
que viaja, infinita, para o (a)mar beijar
e até ti me transportar
em sussurro, de rio»
olha, gostei deste teu excerto:
"que tudo abarca
que de tudo é barca
embalada no mais doce vogar
na tua voz cantada"
:)
Adorei o Tô tâ mal, Fragmentus,
"(Be)ber três torres pelo prisma da bobida..." é uma coisa maravilhosa... (risos)
"A ponte lebadiça" é um mimo!
Luto por mais (gargalhada de doer a barriga)...
E a pior parte da guerra passar pelo fosso... (Ó, meu Deus, não aguento mais!)Eu acho que és tu, baal, é o teu sentido de humor!
Eu faço cálculos e apostas para o número dos diálogos do "romance":
40! mais?
Guerra inaudita... guerra infinita... guerra bendita!
O riso da Rosa!
O Nome da Saudade!
"loooloollooool-2009"
Até que fica giro!
Aceitam-se sugestões.
sim, eu tb acho que foi o Baal :)
partilha e bom-humor num serão de sábado ;)
e quão bela é a voz...
"preencheste-me em maré (...)" diz tudo
e "trilho horizontes perdidos e reencontrados" diz algo mais.
todo muito bonito. respira-se nele e por isso é sublime.
mt grata, Maltez :)
na verdd, enquanto estive na praia poetei em sms rascunho (como habitualmente faço)algo parecido, aliás, mt melhor a meu ver mas fiquei sem bateria e zásss...cheguei a casa e ficou assim a 'amostra' daquele momento de inspiração
... Se não fosse os m--d-t-- testes! Era uma noite ainda mais divertida, Frag.
Mesmo assim, vou andando por aí, minha franca, terna e cara amiga!
Um beijo
P.S. E estou a gostar de ser leitora do Nuno Maltez, em poesia...
Algumas imagens tocam-me e fazem-me sentir bem. Parabéns, Nuno: filósofo, músico e poeta, jovem e suficientemente louco!
Um abraço
... vou deixar-vos conversar.
Saio devagarinho.
é verdd, Maltez, tu não tinhas um blog? queremos espreitar a tua poesia ;)
Saudds, este ano lectivo fiquei de 'folga forçada' (+1 p/ a estatística) a testes e afins mas desejo q os corrija assim bem depressa, e bem, no fresquinho da noite para amanhã cuidares das nossas 'rosas', regando-as em poesia e magia :)
só tem música... posso convidar-te para espreitares...
mas para isso preciso de um mail
estou é sem som no pc :(
lolololololol convido-te e depois ouves...
Saudades disse que foi baal a escrever o que eu escrevi e eu fingindo que sou baal respondo:
Claro que fui eu que escrebi. Num sou o máximo?
és o máximo, ainda bem q não tens coma alcoólico ;) hehe
(agora ri-te c/palavra de verificação: "comati") - tem coma lolol
mt grata, Nuno, só não sei como te convidar
agradeço a generosidade do teu convite, mas depois é informação a mais para a minha cabeça.... já estou tão ligado......... espero que seja um bom blogue e que compreendas.
Conversa de chacha....
Alguém reparou verdadeiramente na beleza admirável das imagens do texto?
Reparei sim. Lindo, como tudo o que a Saudades escreve, alma sensível, aberta a tudo o que é belo. As suas palavras mereciam um livro.
Volto para agradecer os vossos comentários, poemas, opiniões, vozes que dialogam com o texto que aqui deixei de coração e sorriso abertos. São "visões" do jardim que me oferecem as vossas vozes. Sabemos que não duram nem as vozes nem as rosas. Mas assim vão tecendo um fio que por alguns instantes nos dá a ilusão de uma suspensão de toda a realidade. Assim, melhor vemos que os fenómenos, as flores e as vozes vão passando como um filme onde todos temos a especificidade de uma nota. A melodia, a ópera, os deuses, que não nós, tratam de compor. Nós executamos com erros e imperfeições, o que maior do que nós nos habita. E nem sabemos que o gesto da escrita nos escreve e nos inventa, desajeitada e persistentemente, um jardim para a viver e para morrer. Que sejam rosas ou abismo e Saudade essas visões!
Grata pelos comentários e também pelo riso, que sempre aflora...
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