sábado, 3 de janeiro de 2009
Pacto em pura perda? - a propósito da postagem de um texto de Cioran
Mais uma vez, por imperativo da dimensão do comentário que determinado texto aqui postado me suscitou (no caso um excelente texto de Cioran, muito pertinentemente postado por Paulo Borges, e titulado “Caústicos – Os Santos”), faço-o como post, para não atamancar, como eu acho desrespeitosamente, um local que deve ser de breves comentários de partilha ou de um certo confrontar de posições e de opiniões.
A questão que levanta Cioran, a questão aguda que levanta Paulo Borges, é das mais interessantes, desafiantes e apaixonantes para o pensar, seja ele “filosófico” ou “teológico”.
Trata-se do problema de saber até que ponto, falando aqui por exemplar metáfora, o prólogo do livro de Job não é o paradigma do que se passa com todos nós, e sobremaneira com todo o homem que se queira “sincero e recto” (Job 1,1): no limite, a necessidade incortornável da presença “probadora” do mal, para que o bem, e sua virtude, isto é, o seu poder, possa manifestar-se em firmeza e, sobretudo, em transcendência de si.
São Máximo o Confessor, num texto que cito aqui de memória (e perdoe-se-me, por isso, algum pendor parafrásico no citá-lo), diz que “os homens santos, na verdade, não escolhem entre o bem e o mal, posto que, sendo vivos tabernáculos do Espírito de Deus, e aderindo a sua alma espontaneamente à Sua Presença neles, têm já o seu espírito acima do imperativo de escolha que advém de tal arbítrio: por isso, são realmente livres”.
Por isso também, ninguém é verdadeira e radicalmente provado num ambiente asséptico e, por assim dizer, “burguês”: isso seria jogar “fazendo batota” com Deus.
É fácil ser virtuoso quando não se tem, aparentemente, melhor vantagem em o não ser. Esta é, no fundo, porventura, a lógica do delinquente e do vulgar criminoso.
É fácil ser caridoso, podendo sê-lo, por querê-lo e por muito ter, dando um pouco (que muito será para quem nada tenha) daquele muito que por certo lhe sobeje. Mas sê-lo-ia, esse mesmo “caridoso”, na mesma medida se quase nada tivesse?
Quem é mais "caridoso"? Um homem poderoso que se presta interesseiramente ao mecenato, assim obtendo conhecidas vantagens fiscais e outras para continuar mais e mais rico, ou quem dê do que lhe faz falta, sem ver a quem e sem fazer juízos de valor quanto à bondade da sua acção - e não como agora se ouve, entre nós, quem governa auto-elogiar a “bondade” das suas acções ou medidas, como se quem governa lá estivesse para fazer outra coisa senão apenas isso…
O ponto em que temos de questionar-nos é o seguinte: seríamos nós diferentes, e em que medida o seríamos, se Deus (ou como queiramos chamar ao grande nexo de sentido das coisas no nosso viver) acedesse, relativamente a nós, a “estender a sua mão” (Job, 1, 11), “tocar em tudo quanto temos”(id.), para assim ver “se não blasfemaríamos d’Ele”(id.) abertamente, na Sua face, na Sua presença em nós?
Talvez, como se diz também no livro de Job, em passagem logo a seguir, Deus permita, como porventura podemos admitir que o faça a muitos dos nossos contemporâneos (seja em cenários de guerra, em territórios ocupados por americanos ou sionitas, por chineses ou outros, ou até por povos “ocupados” pelos seus próprios governos “legitimamente” eleitos numa não verdadeira escolha de alternativas eleitorais) em que, dizíamos, o vírus do mal - vírus é, por certo, linguagem mais compreensível para os nossos dias – infecte tudo na vida menos a alma que sobrevive intacta a todo o terror, a toda a extrema miséria e abandono, situações nas quais se evidencia que o que é verdadeira “propriedade privada” não é transaccionável nem especulável em bolsa (de outros valores), pelos que fazem no teatro deste mundo as vezes de Satanás, qual ele o faz em parábola no livro de Job.
O que se mostra então é a imensa volatilidade daquilo que é a nossa vida, daquilo que sejamos se dela retirarmos tudo aquilo que tenhamos, que seja mera posse, aquilo que sejam as circunstâncias mais ou menos lustrosas em que nos movamos, e o que nelas sejamos.
Quem seremos, o que será de nós, se de tudo que não é realmente o que nós “somos”, formos nós despojados?
Isso, como se vê por exemplos bem recentes, pode acontecer até àqueles que aparentemente estariam (naquilo que supomos e imaginamos) mais precavidos e resguardados contra tais perigos e, estultamente, mais seguros estavam de que tal nunca poderia acontecer-lhes: tal como em Sodoma, no tempo de Lot, não muito diferente do nosso, na verdade, “comiam, bebiam, compravam, vendiam, plantavam e edificavam” (Lc. 17,28), em toda “a grande cidade que reina sobre os reis da terra” (Apo. 17,18).
A voz do poeta de “O Outro Livro de Job”, Miguel Torga, aqui me ocorre, do “Cântico do Homem”(1950), no seu poema “Há Ratoeiras”:
Quando vierem, como feiticeiros,
Tirar-te o espírito do corpo,
Obstina-te, irmão!
Não,
Não
E não!,
Seja qual for a habilidade
E a humanidade
Da encantação.
Lembra-te dum cortiço!
O que ferve lá dentro e dá favos de mel,
É que presta.
Mas se querem a festa
Da tua morte,
Então,
Que levem tudo no caixão:
A alma e o suporte!
Este é, porventura, o canto de quem já pouco espera do homem, ainda que indeciso esteja do que deva esperar de Deus.
Este é o canto de quem muito quereria esperar do homem, mas está quase resignado a nada esperar de Deus.
Onde estamos nós nisto, cada um de nós?
(Gratíssimo, Paulo!)
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26 comentários:
Amigo Lapdrey,
Tive vontade, que deixei adormecer, não sei porquê, sabendo-o, de comentar o post do Paulo. Não o fiz. Começo por comentar o seu seu: texto lúcido em extremo e excelente exercício introspectivo a ser feito em e por cada um de nós. Lá onde a alma se esconde ou se revela ou se oculta revelando-se, mas, sobretudo, nisso que não sendo só nosso, é, em todos nós, o mesmo Espírito Santo (ou o que lhe queiram chamar) que sobrevivente a todo o bem e a todo o mal nos vive intacto, como gostaríamos que fosse e que estivesse. O que Lapdrey nos traz hoje: o despojamento do que não somos, ou ambos que são um (corpo e espírito). A ruína do homem a que Miguel Torga se refere, a tentação mais hábil, será não a da perda do que somos, mas a do que não somos. Ou seja, para o caso de Torga, o que deveria de ser perservado seria o espírito. E se for o contrário? Se nos queremos ser não corpo, o que para o homem é, diríamos, impensável (ou não), de que nos quererão despojar, ainda? Se a mesma alma já nos tinha sido arrancada? Texto que não sei se compreendi em toda a sua extensão, mas que me tocou, como toca a todos. Já o postado pelo Paulo, de Cioran, tinha desencadeado em mim vontade de o comentar. Foi preciso esperar por pistas.
Há ilusão por sermos todos um, mas não é ilusão sermos todos um...
Não estou indecisa do que esperar de Deus, gostaria de poder como os verdadeiros infelizes estar, parafraseando a extraoridinária Weil e um dos seus mais maravilhosos títulos, à espera de Deus, que ela sabia ser Nada. O nada dos místicos. Sim, ela sabia-o. Como também sabia que a nós nos competiria, nada querer. Porque o homem livre está acima da escolha, ainda que tal merecesse outro nome que não ode liberdade, enfim, tão confusamente interpretado e trocada por nós, qual moeda com as faces distorcidas e gastas. Assim, não livres, pedimos, e isso envergonha-me. A mim cobre-me de vergonha ser a que pede, impõe reqisitos para estar viva...e sobretudo temer a monstruosidade que me habita...a tal ponto que nem consegui comentar o texto lá onde o devia ter feito. Temer a monstruosidade para além do pedido, do desejo, da escolha...Penso que esta foi a razão pela qual certas passagens da Bíblia e de outras narrativas em que homens havia, que sem contrapartidas ou outras hesitações, aceitaram e foram morada para uma vontade/necessidade. Essas paisagens, digo, marcaram-me de modo incontornável. Na realidade, viver de acordo com o que não se pede é o único caminho para a alma ser vítima de um Destino. Conheço os que de muita renúncia se fazem ou de si se desfazem, desfazendo-se de ser Homens. Que a minha admiração os aproxime mais depressa do rosto de Deus, e me faça, como a Weil, invejar a crucifixão...Abençoados sejam os que abrem as portas ao que é monstruoso dentro deles!
Obrigado, cara Saudades, pelo comentário, que mais certeiro vai para o texto de Cioran e, penso também, à intenção mais profunda de Paulo Borges.
Concordo com o que diz relativamente a qual deva ser ou seja o eixo trágico da ruína do homem: se o corpo, se o espírito.
Por mais que limpemos (como o faria um judeu, no mais zeloso cumprimento das prescrições legais), ou julguemos limpar, a borda do copo por que bebemos a nossa vida, e como assim a bebamos, sempre lá mais dentro, lá mais fundo, lá sempre inacessível, estará a sombra do que se não “limpa” senão pelo que sequer nem há como “sujar-se”.
Como quase sempre, nas mais fundas e altas questões, também aqui nos é de grande auxílio o nosso José Marinho, que cito de sua obra maior:
“Emerge o espírito do ser da verdade na cisão, emerge plenamente como aquele a quem a cisão não afecta em ponto algum e de maneira alguma. Pois ele é, como o que autenticamente é, (...) o que assume o Nada, ele é, como se fosse, no princípio de toda a cisão, e a suporta como aquele a quem a alteração da substância não altera, como aquele a quem carência alguma e desejo algum e amor algum afecta, e de nenhuma acção carece nem paixão. Esse, [é o] claro mistério e pleno sentido da união suma e inalterada de todo o ser e toda a verdade”
(in “Teoria do Ser e da Verdade”, Guimarães Edt., Lisboa, 1961, pág. 113“).
Isto parece-me não estranha mas significativamente próximo, quer de São Máximo o Confessor, na menção que a ele fiz, quer outrossim do que mais fundo subjaz, suponho, às palavras de Cioran, de tão extremada radicação interrogante.
Por alguma razão, por certo não estranha ao questionamento mais abísmico do que aqui ponderamos, é talvez aclarante mencionar o facto de, de acordo com certa estatística algo insólita (de que, lamentavelmente, perdi o rasto de referência, com que aqui poderia confirmá-la), os filhos de clérigos "in genere" (e, como é sabido, mais são as religiões que admitem o casamento aos seus clérigos, do que o contrário), os filhos de clérigos, digo, quando se sintam opressos no contexto mais ou menos fechado e porventura sufocante de tal ou tal prática religiosa ou eclesial, tendem quase sempre para a isso "reagirem" entregando-se fanaticamente a práticas e cultos que poderíamos incluir - para facilidade de compreensão daquilo de que aqui se fala - sob a designação genérica de "satanismo".
Como se houvesse uma como estranhíssima (ou, quiçá, nem tanto) proximidade entre os extremos se verificasse...
Anita, não sei se somos todos um, mas apraz-me pensar, sentir e viver de acordo com o pressuposto (que é mais um propósito) de que todos sejamos para ser flores diferentes, igualmente belas por certo, do mesmo maravilhoso jardim, e cidadãos que mutuamente não enjeitam o permutarem o seu ser na mesma divina cidade... em que Deus não é Deus, mas cada um é divino como se Deus fosse, e outros deuses (pela graça, ou pelo que seja) por certo somos para ser.
Amigos, espero que a leitura de Cioran, na qual ando embrenhado, me deixe forças para mais produtivo diálogo, mas apenas observo quanto têm a ver com tudo isto o Deus e os santos de Pascoaes, entre outros...
Se todos fôssemos em absoluto um, quando um espirrasse ou tossisse todos o faríamos...
Ó Sol, que tudo iluminas e és.
Que Ser senão em Ti,
sem ser como Tu,
Um?
Isso, Isabel. Esperar Deus, como quem espera (sempre) por um amigo. Isso me move e comove até à maior distância de mim mesmo em mim.
Nada querendo, tudo nos será dado.
Tudo querendo, seremos o mais belo nada que possível seja sermos.
Concordo em extremo com a urgência de encontrarmos um nome para esse ser "além da escolha".
Eu proporia o de o verbo "saudir", para exprimir tal movimento infindo, interminável, entre a saudade, o saudar e ir sempre mais além...
Quanto ao pedir: a palavra entre nós perdeu seu sentido de activo vigor no latim.
(Socorro-me do meu Houaiss. " Etim. lat. vulg. "petire":lançar-se sobre, atacar; dirigir-se para, tentar atingir; aproximar-se de; alcançar, atingir; buscar procurar" e só depois "pedir , solicitar, requerer", etc.)
Conclusão: mais nos importa, creio, irmos pelo viril e forte sentido "jurídico", do que pelo mais enfraquecedor sentido "religioso".
Tocou-me profundissimamente o que escreveu, querida amiga Isabel: haveremos, por certo, de "viver de acordo com o que não se pede (...) único caminho para a alma ser vítima de um Destino".
Vítima assim, no mais belo sentido de o ser.
Paulo Borges,
Que bem que me soube, mesmo sem dispor de tempo (ficando assim mais tempo para o meu pensar) ter lembrado - como não havia de lembrar, neste contexto -. Foi de quem logo me lembrei ao ler o primeiro post: Pascoaes de quem, com grande surpresa minha, me aproximo em sentir, cada vez mais.
O que é a vida? Paulo. Eu que de Caeiro sempre pensei possuir o olhar nítido e que tanto nele trabalhei. Tenho que repensar tudo isto,caro Paulo.
Abraço
Grato, Paulo pelo pascoalino indício, a termos por certo muito em conta neste nosso caminho sem veredas...e porventura sem mesmo chão.
Céu do mais alto Marão de nós e horizonte do Mar em nós o mais profundo, nos sempre bastem.
Querida Saudades,
Talvez Caeiro nos seja para ser um Pascoaes sem Marão e um pobre tolo da cidade, tanto quanto Pessoa ele mesmo nos seja um Pascoaes dos Marões íntimos, e Pascoaes porventura um Camões sem Gama, sem Índias e sem mar.
Mas tudo isto é simplificar, complicando.
Depois desta, prometo não in-comodar mais:
«Sabe-se Lá
Amália Rodrigues
Composição: Frederico Valério e Silva Tavares
Lá porque ando em baixo agora
Não me neguem vossa estima
Que os alcatruzes da nora
Quando chora
Não andam sempre por cima
Rir da gente ninguém pode
Se o azar nos amofina
E se Deus não nos acode
Não há roda que mais rode
Do que a roda da má sina.
Sabe-se lá
Quando a sorte é boa ou má
Sabe-se lá
Amanhã o que virá
Breve desfaz - se
Uma vida honrada e boa
Ninguém sabe, quando nasce
Pró que nasce uma pessoa.
O preciso é ser-se forte
Ser-se forte e não ter medo
Eis porque às vezes a sorte
Como a morte
Chega sempre tarde ou cedo
Ninguém foge ao seu destino
Nem para o que está guardado
Pois por um condão divino
Há quem nasça pequenino
Pr'a cumprir um grande fado.»
Sem dúvida, caro Lapdrey. Para essa constatação nem necessitaremos de estatísticas. Basta o que a observação atenta do que no mundo se passa (visto já conhecermos muita humanidade) para verificar, sem rigor científico, é claro, que (estou-me a referir ao último parágrafo da sua resposta), muita repressão e rigidez de costumes ou fanatismos religiosos conduz a práticas que, por oposição (ou nem tanto) correspondem a opostas e igualmente extremadas posições.
Santos e demónios todos nós, acho eu, carregamos. Porventura nos valha não querermos sê-los nem não sê-los. Já somos, de algum modo, “monstros” de nos sermos “cindidos”, isso sim, sem o querermos ser o que nisso não nos liberta do mesmo mistério de sermos. Parece confuso? Para mim, é claro, se nisso formos o que pensamos.
Quem disse que incomoda, Anita? Mesmo que aconteça não estarmos de acordo, nunca incomodou, pelo contrário. Porque desapareceu dos posts?
Querido Lapdrey,
Não me parece, pelo menos no que é dito de um Caeiro que todos teimam em incompreender. Budistas, católicos, animistas, mesmo xamanistas, enfim, tragam-nas todas, estará nelas e no seu avesso. Não trago recados de Caeiro, que não os pode trazer, pois já os esqueceu ou nunca os lembrou. No resto, não podia estar mais de acordo. Procure ler Caeiro à luz da “Teoria do Ser e da Verdade” ou a outras luzes.
Estou sempre a defender o “menino” que não há!
Um abraço
Rectifico: "neles", claro está.
Companheiro Paulo,
não faça por entender o que eu própria...
Mas certamente, continuamos "juntos". Quem sabe se para um dia publicarmos novos 'artigos' ao vivo.
"Sabe-se Lá"...
Toda esta tristeza, que eu também sinto de um jeito especial e indefinível, como percorrendo ditânncias de centos e milheiros de km., este sentimento objectivo e unánime de um dia chuvoso em nós pode, quiçá, ter o significado de que o nosso ser essencial esta a aprender. Lembro uma frase:
"Quando o eu chora porque perdeu, a essência ri porque encontrou".
O que é surpreendente é a incrivel unidade do ser.
Não será "pedir" invocar e fazer acontecer o que se pede?
Desculpem não estar a conseguir comentar e responder a tudo, mas o que se me afigura dizer é que nada nem ninguém - Deus e/ou Diabo, vida e/ou morte - jamais nos tiraria ou daria a sensação de nos tirar o quer que seja se algo ou alguém não pretendêssemos ser ou possuir. Creio, com efeito, que a grande perda é desde logo a suposição de que algo ou alguém somos ou temos. A perda da experiência primordial, alheia a toda a apreensão - no duplo sentido, gnósico e emocional - e por isso a "Deus" e "Diabo", "bem" e "mal". A perda do que não podemos em rigor perder, tão só obnubilar, porque é da ordem dessa saúde virginal e incorruptível de que a saudade brota como vínculo imarcescível e de que a santidade, enquanto sanidade, é sinónimo.
Deleito-me com as provocações e o agonismo de Cioran e Pascoaes, óptimas como cáusticos, ou seja, como formas de eliminar o tecido doente dos nossos conceitos habituais, mas não as levo demasiado a sério, pois penso que se movem ainda num plano demasiado psíquico, ou espiritual até, que desordenado ou ordenado gravita em torno do mais fundo e sem fundo. Para ele abrem através dos rasgões das grosseiras ou subtis (mais perigosas, estas, por menos reconhecíveis, sobretudo quando filosófico-científicas, artísticas e religiosas) películas e ficções com que nos envolvemos e identificamos.
Caro anónimo,
Talvez entre pedir ("petire") e repetir logremos alcançar esse sentido: tanto quanto nalguma petição em que a nossa vontade de querer fazer acontecer algo se "conlua".
Ou no seu contrário, quando assim seja da nossa vontade...de fazer acontecer algo que seja o contrário.
Tanto quanto, porventura, entre o que em nós nalgum momento se invoque e o que, nisso, já se convoca...
Concordo, meu caro Paulo.
Tão só me detenho na "in-certeza" de que a "saúde virginal" - correlata (em certo contexto e âmbito de pressupostos) da "imagem" (eikon) tida por incorruptível, e como o intacto do inalterável ser-estando - seja "idêntica" à "sa(n)tidade", correlata da "semelhança", como similitude do estar-sendo.
Mas, pergunto-me, não poderá "a perda do que não podemos em rigor perder", como tão bem diz, Paulo, "pulsar-nos" insituavelmente (não localizavelmente, como dizem os quânticos) entre o "consumirmo-nos" e o "empreendermo-nos" - fazendo nisto um paralelo, quiçá dilucidante, com o que George Bataille denomina a "parte maldita", a "perda", e a "noção de despesa"?
Lapdrey, quanto a Bataille, teria de pensar numa obra que li há muito tempo... Quanto à comparação que estabelece, talvez sim, mas não são esses os meus termos de referência. Quanto ao resto, a meu ver o fundamental, creio com efeito que essa ilusória perda do imperdível nos propulsa, ou algo de nós, a consciência mais exterior, feita carne e osso, nesta tragicomédia do in-ex-istir em que assumimos formas mortais e aparências de ser isto ou aquilo, homens, deuses, animais... É a auto-criação fictícia de formas cindidas e determinadas a partir do incondicionado ou da sua manifestação virtual, que Plotino viu como a ontogónica "ousadia" das almas aventurando-se fora da unicidade inefável ou o carnaval da existência de que fala Pascoaes, o mais que divino fogo de artifício da nossa mente ou do Criador, na homologia estabelecida por Pascoaes no "Santo Agostinho". É a criação de si, e assim do mundo e de "Deus", de que Eckhart fala no sermão sobre os pobres em espírito, a qual, com algumas intuições de Orígenes e Escoto Eriúgena, é a única versão que compreendo da criação segundo a metafísica cristã, que de outro modo cai, a meu ver, na determinação unilateral do Criador único. E isto tudo pode bem ser o diabolismo que Vilém Flusser, grande e original pensador em língua portuguesa, convivente de Vicente Ferreira da Silva, Agostinho da Silva e Eudoro de Sousa, vê como a história da vida, ou seja, do Diabo... Por mim assumo que o tenho bem vivo no corpo e na alma! E confesso que não consigo abdicar disso, por enquanto.
Eu pendo, caro Paulo, para pensar, aceitando-o, até por experiência aferida em vivência interior - que é o que é, e que é apenas o que é em cada qual - tendo para pensar que a suprema maravilha de estarmos vivos é não podermos (em consciência) admitir que pudesse não havê-la.
Não que não possamos admiti-lo, mas porque admiti-lo implicaria uma remoção de sentido, porventura insolúvel. A vida tem demais a ver com o que de mais alto sabemos ser, para ser in-significante.
Assim sendo, o haver vida e amor, o haver por isso carne, e por isso prazer e alegria, e por isso dor e morte, é tudo demasiado "precioso", por ser tão belo ou tão terrível, e tão belo por ser tão carregado de sentido ou tão terrível por imaginarmos que o não tenha, e ser tão carregado de sentido por ser tão eivado de perplexidade e de mistério - ainda que, pois, nisso tudo eu veja progressivamente a ilusão disso mesmo, e a ilusão de ver tal ilusão ser ilusão, não me é dado desprezá-lo, nem demasiado também o prezo, pois a medida de tudo é precisamente pesada na balança de cada um de nós, logo, tem o peso do sermos únicos todos, tão únicos, e sermos todos o que nenhum outro será.
“Essa ilusória perda do imperdível [que] nos propulsa, ou algo de nós, a consciência mais exterior”, como o Paulo tão precisamente diz, é (vejo-o eu assim) algo similar à inevitabilidade de respirarmos e de precisamente não querermos não fazê-lo.
Quem medite sabe que “gostaria” que a respiração em si tendesse para o seu inteiro repouso suspensivo, pois é nesse "quê", que não é sequer "espaço de tempo", "aí" inapercebidamente se dilui uma certa película de (utilizando livremente as suas palavras) "ilusório sentido de perda" de consciência.
Mas isso logo se transcende ali, mal se vá além daquela consciência habitual a uma outra, que repousa não na sua própria quietude, mas sim num “quê” que a suspende de si mesma, na leveza de ser um "estar ausente" de onde "está" habitualmente a consciência e de onde presumivelmente ainda se mantém o corpo, então em repouso profundo.
E, porém, em que “momentos” mais e melhor “sentiremos” que tão “autenticamente” somos, do que em "momentos" como estes?
Quanto à “criação de si, e assim do mundo e de ‘Deus’ ”, tenho para mim que é quando ousamos “medir forças” com “Deus”, como Jacob o fez com o Anjo, de “igual para igual”, que tudo isto, de que falamos, pode ir à raiz mais funda e paradoxal, e epidérmica também, do que “somos”: ainda que na coxa ou nalgum outro lugar de nós a marca de tal confronto seja empós disso o timbre "definitivo" da nossa "tónica de ser", o carácter e a verve que fazem a nobreza do homem nesse face a face de permanente corpo-a-corpo com o mistério.
Nisso, ousadia e luta de medir força e forças, e assim também a implícita fraqueza, se realiza e consuma uma espécie de espelhamento sem imagem nem reflexo, pois que ambos os contendores estão intrincados de tal forma que, qual espelho de Alice, estão a um tempo num e noutro lado dele: ora na “inefável unicidade”, ora em pleno “carnaval da existência”.
Esse o mistério e a suma maravilha de… “sermos” e “estarmos” “aqui”...
Gratíssimo, meu amigo, por tais tão extremadamente abísmicos serpenteios adamantinos!
Lapdrey
pensar consigo é cuidar sempre de jardins. De si até as palavras florescem, "como a rosa sem porquê"; "Saudir" é também, se me permite a ousadia, o nome da primeira e última flor. A flor que fechada tem saudades e aberta nos abre o futuro. Uma rosa do tempo! De todo o tempo que o não é...
O Heidegger que alguém lembrou há poucos dias, Baal, também dizia que o Homem deveria ser o pastor do ser, disse até, deve ser o pastor do ser, pois eu em certos momentos devo ser, ou sou escolhida, e com alegria o recebo, jardineira do porvir.
Lapdrey, muito estimado leitor e escritor, há palavras que são sementes. No sonho a semearei, a "saudir", para que floresça nos jardins da eternidade.
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