O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 10 de janeiro de 2009

Nostalgia da unidade e seu círculo vicioso


Giorgio Chirico,"As musas inquietantes"


"O primeiro procedimento do espírito é distinguir o que é verdadeiro do que é falso. No entanto, mal o pensamento reflecte sobre si mesmo o que descobre é, inicialmente, uma contradição. É inútil esforçar-se para ser convincente a tal respeito. Durante séculos ninguém tratou o caso com uma demonstração mais clara e mais elegante que a de Aristóteles: ‘A consequência frequentemente ridicularizada dessas opiniões é que elas se destroem por si mesmas. Porque, afirmando que tudo é verdadeiro, afirmamos a verdade da afirmação oposta e, consequentemente, a falsidade da nossa própria tese (pois a afirmação oposta não admite que ela possa ser verdadeira). E, se dizemos que tudo é falso, também esta afirmação se torna falsa. Se declaramos que só é falsa a afirmação oposta à nossa, vemo-nos não obstante forçados a admitir um número infinito de juízos verdadeiros ou falsos. Porquanto, quem emite uma afirmação verdadeira declara ao mesmo tempo que ela é verdadeira, e assim por diante até o infinito.
Esse círculo vicioso é só o primeiro de uma série em que o espírito que se inclina sobre si mesmo se perde num torvelinho vertiginoso. A própria simplicidade destes paradoxos leva a que sejam irredutíveis. Quaisquer de sejam os trocadilhos e as acrobacias da lógica, compreender é, antes de tudo, unificar. O desejo profundo do próprio espírito nos seus procedimentos mais evoluídos vai ao encontro da sensação inconsciente do homem diante do universo: ele exige familiaridade, tem fome de clareza. Para um homem, compreender o mundo é reduzi-lo ao humano, marcá-lo com o seu selo. O universo do gato não é o universo do formigueiro. O truísmo de que ‘todo pensamento é antropomórfico’ não tem outro sentido. Assim também o espírito que procura compreender a realidade só pode considerar-se satisfeito se a reduz em termos de pensamento. Se o homem reconhecesse que também o universo pode amar e sofrer, ele estaria reconciliado. Se o pensamento descobrisse nos espelhos fenómenos cambiantes, relações eternas que pudessem resumi-los e resumirem-se elas próprias num princípio único, poder-se-ia falar de uma felicidade do espírito de que o mito dos bem-aventurados seria apenas um ridículo arremedo. Esta nostalgia da unidade; este apetite de absoluto ilustra o movimento essencial do drama humano. Mas que esta nostalgia seja um facto não significa que deva ser imediatamente apaziguada. Porque, se acaso transpondo o abismo que separa o desejo da conquista, afirmamos com Parménides a realidade do Um (seja lá o que ele for), caímos na ridícula contradição de um espírito que afirma a unidade total e com a própria afirmação prova a sua diferença e a diversidade que pretendia resolver. Basta esse novo círculo vicioso para sufocar as nossas esperanças."

(Albert Camus, "Le Mythe de Sisyphe" Gallimard, Paris, 1962, pág. 31 e seg.)

5 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Lapdrey,

Terrivelmente denso, contudo claramente familiar, é o mito que aqui apresenta. Essa primeira contradição, pois: a de que somos contradição; a de que uma afirmação é sempre verdadeira e falsa, e a dúvida não existe fora desse paradoxo. A esperança não sucumbe a essa mesma prova. Serve aquela de alimento à certeza da sua mesma negação ou afirmação. Nem tudo é do domínio da opinião. Mas nem aí o homem escapa à sua feliz condenação. Creio que no espelho mutável da vida e no espelho igualmente mutável e ciclicamente renovado da natureza, deparamos sempre com a inconciliável ou parcial constatação de que, ao tentar compreender a natureza do Um, chocamos com o olhar antropomórfico que nela vê, sem querer ou sendo disso conscientes, um mundo sem todo que o unifique, pois é essa mesma ideia que nos falta e a que será irrealizável, a que mais alimenta a esperança e o seu círculo vicioso. Nem Um nem Não Um é o que se me apresenta como iludente apaziguamento dessa tensão. A uificação dá-se no pensamento, como vontade consciente, que não na realidade. Continuamos a levantar a pedra, porque enquanto o fazemos, sabemos que a eternidade não se conduirá de nós e a nossa humanidade sorrirá de soslaio, semeando de mistério e poesia o campo das nossa falsas ilusões. O texto ainda nos dá que pensar. O melhor talvez seja ver, o que também não pode ser.

(quem me manda a mim meter-me com a filosofia...)

Abraço, Lapdrey

Luiz Pires dos Reys disse...

Cara Saudades, eu não diria melhor (como poderia?), nem mesmo (e muito menos) naquilo que não podem as palavras dizer.

Minimamente (porque mínimo sou, e "pobre" de espírito me quero, pobre de tudo quanto nos atulha de insensato e vão in-sentido), minimamente diria parecer-me que nem sequer num qualquer "ponto" de equi-líbrio ou fiel da balança ôntica/ontológica, entificante/nadificante, ou outra qualquer, radica o nenhures disso que nos acena e sussurra no "saudir"-nos à absoluta transvia do que quer que seja: esse Tao, esse Dao, esse Dyau, esse Deo, esse Zeus, esse Deus, esse... nada disso tudo que possa ser dito...

..."esse nada disso, disso tudo" nos fala quanto nos cala: na para-doxia que nos coze a túnica, afinal inconsútil, de nosso roto olhar.

"Então" veremos a aurora no mesmo crepúsculo... qual sempre esteve...

Abraço de saudir, Saudades...

Paulo Borges disse...

Por isso Damáscio, derradeiro mestre da Academia neoplatónica e um dos mais radicais pensadores apofáticos do planeta, abandonou a henologia, o dizer/pensar o Uno, e escreveu que do "inefável" (arreton) nem sequer podemos dizer que o é, convidando assim a uma "derrocada" do e da palavra no "vazio" e no "nada" (ouden) por excesso de todas as determinações.

No outro lado do planeta, Nagarjuna escreve: "Bem-aventurada a pacificação das palavras e das coisas".

Pensar, falar e porventura escrever muito é um dispêndio da energia vital que reduz o poder de pensar, falar e escrever acerca do que mais importa e reduz o próprio tempo de vida, como bem sabe a tradição taoísta. Veja-se François Jullien, "Nourrir son esprit à l'écart du souffle vital".

Abraços

Paulo Borges disse...

Leia-se ""derrocada" do pensamento e da palavra..."

Luiz Pires dos Reys disse...

Em inteiro acordo, meu caro Paulo.

Porém (o que é, muito certamente, um nanamicron de "réstia" de des-acordo), não me creio "capaz" de me fechar a "isso" que sempre de forma para-doxal se dá a "entender" e se faz "sentir" que "está ali", quer no dizer de viva voz (onde a palavra tende inelutavelmente para o seu silenciamento), quer no "escreviver" dizendo-se em palavra, pela escrita, "aquilo" que do silêncio mais plenamente brota, do silêncio parece sempre proceder, e para ele parece também tender, quando e se se suspenda o "razoar" intelectivo, dualizante de tudo.

A poesia parece-me, por isso, de algum modo sucedânea da oração, enquanto meio, veículo unitivo e “unicional”

Por alguma boa e fundamental razão falamos gramaticalmente em oração quando nos referimos a uma frase completa (do grego “phrasis”, para quem não saiba, “acção de exprimir pela palavra, elocução”(Houiass), derivado do verbo gr. “phrazo”, “pôr no espírito, fazer compreender, explicar, indicar por sinal ou por palavra”(idem).

Pergunto-me se, quem sabe, não é precisamente essa a primordial e última função da linguagem e, no limite, da poesia: “pôr no espírito, fazer compreender, indicar” e, em seguida, silenciar-se.

Quem sabe não existe uma qualquer conexão profunda, “subterrânea” entre a "oração frásica”, “pôr no espírito, fazer compreender, indicar”, e essoutra respiração, a da alma”, “oração” (vocal ou “mental”), exercida na vocalidade mântrica repetitiva ou na sua interiorização extrema na “apateia” do “nous” silenciado.

Assim se compreenderia como, em determinado contexto de pressupostos, Logos divino e logos humano se inter-comunicam e “reconhecem”, sem solução de continuidade.

Disso fala, por exemplo, Dumitru Staniloae, na esteira aliás de Máximo o Confessor (que não separava revelação cósmica de revelação bíblica), quando não distingue entre revelação “natural” e “sobrenatural”, mas as interliga através do logos humano ao qual as “razões (de ser)”, “os ‘logoi’ das coisas desvelam a sua significação na razão (logos) do homem e pela sua acção consciente”. “Aliás, diz ele, no princípio, no estado normal do mundo, revelação ‘natural’ e revelação ‘sobrenatural’ não estavam separadas”(in “Le génie de l’Orthodoxie”, Desclée de Brouwer, 1985 , pág. 29 e seg.).

Isto porque, diz também o mesmo autor, “o cosmos e a natureza humana intimamente ligada a ele estão impregnados de ‘racionalidade’ ” - em nota do tradutor, diz-se que o autor compreende por “racionalidade” “a estrutura e a ordem interior constitutivas das coisas criadas, isto é, aquilo que permite que as abordemos e elas sejam compreensíveis para a razão humana - logos ”) (ibidem).

Quanto à referência feita ao taoismo, tradição que me é muito cara - veja-se, a propósito, “Taoist Yoga”, de Lu K’uan Yu, que inclui a tradução dum texto alquímico chinês, “Os segredos do Cultivo da Natureza Essencial e da Vida Eterna” onde se fala amplamente destes assuntos -,referência, diziamos, a todo o tipo de dispêndio da energia vital - o ch’i chinês, correspondente ao ki japonês, como na palavra Reiki -, dispêndio que não se circunscreve obviamente apenas às actividades do pensar, falar e escrever, mas a todas aquelas em que a sua “intencionalidade” e razão de ser sejam, em si mesmas, dela dissipativas – lembraria eu aqui igualmente a sua presença na tradição alquímica ocidental.

Para dar apenas um exemplo, refiro que Fulcanelli (alquimista que, como é sabido, viveu na transição entre os séculos XIX e XX), no capítulo de conclusão da sua obra “O Mistério das Catedrais” cita um adágio de Zoroastro (“Scire, potere, audere, tacere”:”Conhecer, poder, ousar, calar-se”), e termina o livro dizendo:

“O sábio, desprezando as vaidades do mundo, aproximar-se-á dos humildes, dos deserdados, de todos os que trabalham, sofrem, lutam, desesperam e choram neste mundo. Discípulo anónimo e mudo da Natureza eterna, apóstolo da eterna Caridade [intenção porventura aqui equiparável à compaixão do bodhisattva budista], permanecerá fiel ao seu voto de silêncio.
Na Ciência [que aqui se refere à ciência alquímica], no Bem, o Adepto deve sempre calar-se.”
(in Fulcanelli “O Mistério das Catedrais”, Edições 70, Lisboa, 1973, pág. 239)


N.B.
Falar aqui na desejabilidade de não dispêndio de energia vital em "pensar, falar e porventura escrever muito", como disse, caro Paulo, e escrever eu um comentário qual este, é contradição.

"Bem prega frei Tomás!"...

Abraço a ambos, Saudades e Paulo!