O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 10 de janeiro de 2009

Povo que Lavas no Rio



Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

Fui ter à mesa redonda
Bebi em malga que me esconde
O beijo de mão em mão.
Era o vinho que me deste
A água pura, puro agreste
Mas a tua vida não.

Aromas de luz e de lama
Dormi com eles na cama
Tive a mesma condição.
Povo, povo, eu te pertenço
Deste-me alturas de incenso,
Mas a tua vida não.

Povo que lavas no rio
E talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão.
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não.

4 comentários:

Paulo Borges disse...

Que é o fado senão a erótica memória da nossa própria morte?

Anónimo disse...

Grata pelo fado que aqui traz. “Amaliemo-nos", Maísha!

Paulo,

Para lá de interessante este seu comentário/definição do fado! Acrescentaria, se me permite, que o fado é memória saudosa da nossa mesma morte, cantada na pulsão erótica do que nos falta ou finda, - como diz o poeta - “Essa coisa é que é linda”- É angústia de finitude, prazer intenso na dor de cantar o que sempre falta no que há; desejo de amar a própria dor e nela morrer de alegre tristeza; de triste alegria... em memória da terra e dos céus. Gosto de fado, de “flamenco”, de “la Saeta de los gitanos”, de “rondeñas”... Creio que o flamenco difere do fado, precisamente na exuberância naquele dessa pulsão de existência, paixão aplaudida, cantada e dançada. O fado é, em alguns aspectos, o avesso desse sentimento de alegria; é mais nostálgico, mais fundamente interiorizado no seu irredutível luto. Morte que gosta da morte, que se regozija na dor, virada para dentro, com as mãos da fadista a apertar o xaile ao corpo. Enquanto as sevilhanas se vestem de vermelho e festejam a morte em espectáculo virado para o exterior, o fado é o sentimento interior exteriorizado, ausência, enquanto a música tradicional espanhola é o exterior interiorizado devolvido à fonte do sentimento, enfim... ou talvez não.

Paulo Borges disse...

Inteiramente de acordo, cara Saudades! Sinto exactamente o mesmo, também em relação ao flamenco e à música gitano-andaluza de que fala. Sinto no fado a vertigem daquele mesmo "duende" de que García Lorca tão bem fala num curto texto sobre a experiência de ouvir certa cantora de flamenco numa tasca obscura, já não sei onde!... Extinto este fogo e estas entranhas não há cultura que valha a uma cultura! Resta a civilização para a amortalhar.

Marta Rema disse...

luto e erotismo da saudade. sim.
e eu que achava impossível descrevê-lo, acho belo o que dizem.