O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 10 de janeiro de 2009

Receita de Mulher

As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República [Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Qu tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da [aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que tudo seja belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Eluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-e dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida!) e também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar das pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é, porém, o problema das saboneteiras: uma mulher sem [saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma hipótese de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteie em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de 5 velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna vertebral
Levemente à mostra; e que exista um grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume de [coxas
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima [penugem
No entanto, sensível à carícia em sentido contrário.
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem dúvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na face
Mas que as concavidades e reentrâncias tenham uma temperatura nunca [inferior
A 37° centígrados podendo eventualmente provocar queimaduras
Do 1° grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da Terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro da paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que a mulher dê sempre a impressão de que, se se fechar os olhos
Ao abri-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos fazer [beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
Que ele não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe de ser nunca a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.



Vincius de Moraes

in Antologia Poética

Publicações Dom Quixote, 2006

17 comentários:

Casto Severo disse...

Ferozmente rendido, na ponta de diamante do meu sangue insurrecto!

Anónimo disse...

Beleza e inteligencia, mas aqui é tudo tão idiota, meus deus

Anónimo disse...

Deslumbrado, completamente... "a mulher se alteie em cálice..." ah sim que não seja 'lisa'... e saiba falar com o olhar. Estou perdido!

Anónimo disse...

Em ti tens isso em que te perdes. Em ti te perdes.

"Amei a Antiga antes que o tempo fosse: todo amor temporal não teve para mim outro gosto senão o de lembrar o que perdi" - Bernardo Soares

Anónimo disse...

Ora aí está uma coisa que nós homens sabemos mas nem sempre o conseguimos expressar poeticamente: "beleza é fundamental.

Obrigada. Um grande poeta.

Viriato

Liliana Gonçalves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Marta Rema disse...

Anónimo 1 (n és tu Viriato, é o 1º): és muita chato possa...!...

Anónimo disse...

" A vida só se dá a quem se deu" é a minha frase preferida! Vinicius de Morais

Anónimo disse...

Gosto do Vinicius, mas não deste poema. É artificial. Sou mulher gostando-o de ser e este poema pesa, aborrece-me,
fardo duma visão de ego macho: Oh, a louca contemplação das belas que nos fazem companhia nos serões dos quase sertões da literatura!!!

A Beleza está nos olhos de quem a vê!Tão simplesmente...

Marta Rema disse...

bela Maria Aurora, haja quem o diga.

Liliana Gonçalves disse...

aprendo sempre mais um pouco com as opiniões das pessoas...por isso os poemas que selecciono têm sempre esse propósito.

Esperei...e quase estava a desistir de esperar até que surgiu a bela da Maria Aurora dizendo aquilo que a minha esperança esperava ouvir.

Ser mulher é muito mais do que servir de alimento ao ego masculino.

Apraz-me dizer aquilo que algures alguém me disse sobre o que um homem deveria ver quando estivesse perante uma mulher bela

"Não se pergunta se e feia ou bonita, aceita-se-lhe o encanto".

os homens que me perdoem, mas não há receitas, e quem vive só com receitas de mulher...talvez tenha deixado de ver a beleza das mulheres.

Anónimo disse...

Pois é, a beleza não se receita... mas, na falta dela, valham-nos as receitas de beleza.

Anónimo disse...

Ego macho ou ego fêmea?

Anónimo disse...

Atenção, atenção, eu sou muito oscilante e muito influenciável. O que agora digo que é feio, num ápice posso tornar belo. E depois há este adágio: "quem feio ama bonito lhe parece".

Marta Rema disse...

critério do gosto: muito ao estilo do poema. essa é a perfeita canção do bandido.

Anónimo disse...

as mulheres são todas umas putas, e as nossas são as mais caras.

Anónimo disse...

grande verdade carlos ferreira, tenho observado que és demasiado grande para estár aqui. um homem dessa grandeza não deveria perder tempo aqui!
obrigado pela presença!