quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
Um Novo Credo, de Frei Betto O.P. (A propósito de um post de Ana Margarida Esteves e da micro-novela que quase se lhe seguiu aqui)
Creio no Deus desaprisionado do Vaticano e de todas a religiões existentes e por existir. Deus que precede todos os baptismos, pré-existe aos sacramentos e desborda de todas as doutrinas religiosas. Livre dos teólogos, derrama-se graciosamente no coração de todos, crentes e ateus, bons e maus, dos que se julgam salvos e dos que se crêem filhos da perdição, e dos que são indiferentes aos abismos misteriosos do pós-morte.
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitectura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.
Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.
Creio no Deus que se faz refracção na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfémias.
Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.
Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, suada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.
Creio no Deus que se esconde no avesso da razão ateia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.
Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.
Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.
Fonte: http://www.pastoralis.com.br/pastoralis/html/modules/newbb/viewtopic.php?topic_id=1518&forum=1
Outra: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frei_Betto
Creio no Deus que não tem religião, criador do Universo, doador da vida e da fé, presente em plenitude na natureza e nos seres humanos. Deus ourives em cada ínfimo elo das partículas elementares, da requintada arquitectura do cérebro humano ao sofisticado entrelaçamento do trio de quarks.
Creio no Deus que se faz sacramento em tudo que aproxima, atrai, enlaça, abraça e une – o amor. Todo amor é Deus e Deus é o real. Em se tratando de Deus, bem diz Rumî, não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento. Basta manifestar sede e a água jorra.
Creio no Deus que se faz refracção na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer. Creio em teofanias permanentes e no espelho da alma que me faz ver um Outro que não sou eu. Creio no Deus que, como o calor do sol, sinto na pele, sem no entanto conseguir fitar ou agarrar o astro que me aquece.
Creio no Deus da fé de Jesus, Deus que se aninha no ventre vazio da mendiga e se deita na rede para descansar dos desmandos do mundo. Deus da Arca de Noé, dos cavalos de fogo de Elias, da baleia de Jonas. Deus que extrapola a nossa fé, discorda de nossos juízos e ri de nossas pretensões; enfada-se com nossos sermões moralistas e diverte-se quando o nosso destempero profere blasfémias.
Creio no Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira em cada estrela e, na juventude, enciumou-se quando me viu beijar a primeira namorada. Deus festeiro e seresteiro, ele que criou a lua para enfeitar as noites de deleite e as auroras para emoldurar a sinfonia passarinha dos amanheceres.
Creio no Deus dos maníacos depressivos, das obsessões psicóticas, da esquizofrenia alucinada. Deus da arte que desnuda o real e faz a beleza resplandecer prenhe de densidade espiritual. Deus bailarino que, na ponta dos pés, entra em silêncio no palco do coração e, suada a música, arrebata-nos à saciedade.
Creio no Deus do estupor de Maria, da trilha laboral das formigas e do bocejo sideral dos buracos negros. Deus despojado, montado num jumento, sem pedra onde recostar a cabeça, aterrorizado pela própria fraqueza.
Creio no Deus que se esconde no avesso da razão ateia, observa o empenho dos cientistas em decifrar-lhe os jogos, encanta-se com a liturgia amorosa de corpos excretando sumos a embriagar espíritos.
Creio no Deus intangível ao ódio mais cruel, às diatribes explosivas, ao hediondo coração daqueles que se nutrem com a morte alheia. Misericordioso, Deus se agacha à nossa pequenez, suplica por um cafuné e pede colo, exausto frente à profusão de estultices humanas.
Creio sobretudo que Deus crê em mim, em cada um de nós, em todos os seres gerados pelo mistério abissal de três pessoas enlaçadas pelo amor e cuja suficiência desbordou nessa Criação sustentada, em todo o seu esplendor, pelo frágil fio de nosso ato de fé.
Fonte: http://www.pastoralis.com.br/pastoralis/html/modules/newbb/viewtopic.php?topic_id=1518&forum=1
Outra: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frei_Betto
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
("Daniel a atirar-se para o poço dos leões" - meio a propósito ainda dum post anterior, de Ana Margarida Esteves)
Este credo parece mas, no fundo, não é o que parece que é: é libertador, sem dúvida, daquilo que meramente aprisiona, sem sequer já se importar. Mas não liberta realmente aquele que quer libertar, à força de tanto querer “libertá-lo”! Explico!
Como qualquer marxista sabe, ou julga saber, uma reacção dialéctica é apenas uma parcela de um processo de encadeamentos infindáveis e correlativos.
Qualquer acontecimento, situação, relação ou contexto é uma mistura e um feixe de coisas díspares que, a todo o momento mudam e se permutam, reagem e interagem.
Quem vê apenas parcelarmente, como sempre nós vemos (mais ou menos incluídos nas coisas ou nas situações, no comprometimento ou na indiferença) não vê o todo da “totalidade” que está em processo e se processa.
Assim, um Credo é sempre uma afirmação catafática (afirmativa) ou apofática (negativa) – lembro aqui Dionísio o Areopagita, Nicolau de Cusa e de algum modo Mestre Echkart - relativamente a algo ou alguma coisa, relativamente a nós, aos outros, às coisas ou a tudo isto junto e mutuamente actuante (activa ou passivamente, é igual).
Afirmar, pois, estas coisas que Frei Betto afirma é igual, em termos radicais, a nada afirmar. É apenas dicção, dizer como expressão de intenção. Mas o fazer não é a intenção de fazer, o fazer é o estar feito que quer continuar fazendo.
Se não, vejamos.
“Deus desaprisionado do Vaticano”
Um Deus “aprisionado” não é um Deus, não é sequer um ídolo, é um cadáver de Deus. Logo, que se afirma aqui? Que Deus não está onde não pode estar? Ou que Deus, apesar disso, está ainda nisso, porque por definição está “em toda a parte”?
“Deus que não tem religião”.
Ok! Deus obviamente não tem nem nunca teve religião, pois religião é o processo de re-ligar (no latim: re-ligio), do qual Deus obviamente não carece. O que se diz é, portanto, aparentemente simpático, mas é absurdo no conteúdo…
“Não é o sedento que busca a água, é a água que busca o sedento”.
Actualmente fica sempre bem citar Rumi que, se bem que tendo sido um santo homem e um enorme poeta de viver divinamente, é “apenas” isso. Denota actualidade, mas pouco mais do que isso. A grande actualidade continua sendo a desumanidade do homem e a indivinidade para com Deus. Quanto à sede, cá me parece (no meu parco discernir) que deve ser como no amor (e em tudo): o sedento arde pela água; a água corre (se correr) para dessedentar: seja a terra ou o homem – isso é da sua natureza. Que se deve agradecer nisso? Preferir-se-ia que a água se “revoltasse”, numa qualquer “libertação” de tal constrangimento? Na verdade, ela por vezes se revolta, sim, em chuvadas, inundações ou tsunamis… e sempre sem constrangimentos ou carência de libertação: é “apenas” o que em cada momento é para ser…
“Basta manifestar sede e a água jorra.”
Se isto fosse verdade, não teríamos um número escandaloso de seres a morrerem a cada dia que passa: que eu saiba, a água não vai ter com eles… Grato, Rumi, irmão poeta, apesar dessa imprecisão, de mera de liberdade poética. Deus sabe o que querias significar...
“Creio no Deus que se faz refracção na história humana e resgata todas as vítimas de todo poder capaz de fazer o outro sofrer.”
Com as minhas desculpas, isto soa-me a marxismo retardado e bacoco. Este absolutismo de “todas as vítimas” é simples voto de intenção e pura expressão da incapacidade intrínseca de fazê-lo. Thanks, but no thanks! Prefiro ir fazendo o que as circunstâncias de cada dia me convidem ou exijam que seja feito. Será um de cada vez, não serão todos duma só vez. Ganha-se em verdade, o que se perde em propaganda...
“Creio no Deus da fé de Jesus (...) Deus que extrapola a nossa fé”.
Ou uma coisa ou outra, Frei Betto! Não há, para um lado, a fé de Jesus, só porque Ele também é Deus (para quem o professa) e, para outro, a fé do homem (que também é divino, se o quiser). Porque extrapolaria Deus? Quem, normalmente, extrapola somos nós, extrapolações de ser...
“Deus que, na minha infância, plantou uma jabuticabeira”.
Se bem que sempre fique bem “humanizar” Deus, Ele disso não carece: Ele humanou-Se em certo homem nascido em Belém de Judá, divinizando-nos em cada humanação que façamos na nossa vida...
“Deus (...) que nos “arrebata à saciedade”.
Deus está obviamente em tudo, até no que O “contradiz”, que em nada Ele está plenamente e é plenamente tudo. E entra, sim, “em silêncio no palco do coração”: para quem não faça orelhas mocas, como alguns habitualmente fazemos...
“Deus do bocejo sideral dos buracos negros (…) aterrorizado pela própria fraqueza” (do homem).
Quem sabe não somos porque Deus de facto “bocejou” o universo num grande bang, mas sabemos que feito Deus homem em Jesus, Ele suou água e sangue, como fazem os homens sujeitos a situações de extrema tensão: a humana medicina denomina isso pelo nome hematidrose)
“Deus que se esconde no avesso da razão ateia”.
Não me parece: Deus está até na própria negação do ateu (se bem que esteja também no avesso dela), visto que o que ateu nega é algo na verdade que ele não conhece, pois se conhecesse saberia e, sabendo, como sói dizer-se, acreditaria.
“Deus intangível ao ódio mais cruel”.
Sim e não. Deus é intocável pelo ódio, como o é pelo amor. A única diferença é que este encontra a Sua “presença”, e aquele a sua “ausência”. E se Ele “pede colo” é porque quer que em nós tenhamos a abertura e o aconchego de dá-lo a quem dele careça e de, assim, nos vermos em Deus, com o tamanho do colo que tenhamos querido ter…
“Creio que Deus crê em mim”.
O que em mim acredita em mim mesmo é Deus que em mim acredita.
É claro que a vida de pessoas como Frei Betto (ça va sans dire!) são dignas do maior respeito e admiração, mas o que está aqui em questão é sobretudo o sentido que elas devam dar às suas vidas: acreditarem que o homem, apesar de tudo, não é o lobo do homem, e que a humanidade “vale a pena”, ou seja, que vale a pena vivê-la divinamente, para que cada homem se torne humano.
O Lapdrey considera-se um intelectual? Só pergunto, porque, para mim, as palavras valem pelo seu impacto, pela sua "acção" no mundo. Usando o exemplo "creio num Deus sem religião", por absurdo que possa ser o conteúdo, para mim vale pelo seu impacto. "Religio" significa igualmente prestar culto a uma divindade e o impacto destas palavras é que Deus não espera que lhe prestem culto algum. Agradeço-lhe, Lapdrey, ter postado aqui estas palavras, pois encontrei nelas novas metáforas. E sim, acredito na Humanidade e acredito que o Homem se tornará humano quando finalmente vir o céu na terra.
Um bem-haja para si, Lapdrey. E aproveito para cumprimentar o Paulo e todos os membros deste site, que venho seguindo há uns tempos e que tem muito de humano e de divino.
Enviar um comentário