O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 17 de janeiro de 2009

Estranheza

À memória de Fernando Neves

Ser é estranho. A experiência de haver algo é estranha. Haver realidade, sujeito e mundo, haver eu, outros e coisas, haver estes pensamentos e palavras que o nomeiam - seja isso o que for, real, ilusório ou real e ilusório - , é de um estranhamento sem fundo.
O mais estranho de tudo é o sentimento de ser, o sentimento de se ser, o sentimento/pensamento de se ser um ser, de existir. O que é isto de me sentir, de me sentir um ser distinto do mundo e dos outros seres, de me sentir aqui e não ali, de me sentir um/num corpo que oculta uma contínua metamorfose emocional e mental? O que é isto que se diz ser um corpo e um corpo humano? O que é isto de haver uma forma e de a considerar a minha forma? O que é isto de haver uma cabeça, um pescoço, um tronco, dois braços e duas mãos, duas pernas e dois pés? O que é isto de haver um rosto e de o considerar o meu rosto? O que é isto de haver dois olhos, duas orelhas, um nariz, uma boca? O que é isto de ter pele, carne, ossos, tendões, nervos, músculos, órgãos, sangue, linfa, secreções, mucos, fezes e urina? O que é isto de passar o tempo imóvel e em movimento, a deitar-me, levantar-me, sentar-me e a andar? O que é isto de estar sempre acordado ou a dormir, a sonhar ou não? O que é isto de passar o tempo a fazer coisas ou a não fazer nada e ter consciência disso? O que é isto de estar em silêncio, respirar, pensar, falar, agir? O que é isto de percepcionar continuamente o que julgo e se diz ser o meu corpo, as minhas emoções e os meus pensamentos? O que é isto de percepcionar continuamente o que considero seres e objectos e o que é considerá-los isso? O que é isto de poder continuamente tocá-los, agarrá-los, falar-lhes, afectá-los?
O que é estar aqui, neste preciso instante, a sentir-me sentado no que se diz ser uma cadeira, a bater com o que se diz serem dedos no que se diz ser um teclado, enquanto sinto e penso o que se diz ser sentir e pensar isto e contemplo o que se diz serem caracteres a aparecerem no que se diz ser um ecrã, enquanto o que se diz ser um gato se levanta e desloca para junto do que se diz ser um aquecedor?
E o que é isto que se diz ser a minha vida? O que é este contínuo, dia após dia e noite após noite do que se diz serem dias e noites, manhãs e tardes, acordar, levantar-me, lavar-me, fazer exercícios físicos e espirituais, vestir-me, saudar a família, estudar, escrever, traduzir, conduzir, dar aulas, comer, beber, urinar, evacuar, dormir? O que é isto que se diz ter família, filhos e companheira, amigos, inimigos e indiferentes? O que é isto que a tudo isso acompanha, a babélica multidão do que se diz serem sentimentos e emoções, sempre mutáveis, a sucederem-se e a converterem-se uns nos outros: amor, apego, ódio, raiva, medo, indiferença, ciúme, inveja, ternura, orgulho, vaidade, compaixão, avareza, desejo, alegria, tristeza, esperança e seus contrários? E o que é a vertiginosa turbamulta do que se diz serem pensamentos e palavras, de tudo isso inseparáveis? O que é ter um nome? O que é responder a ele como se efectivamente me designe, quando não sei o que é isso ou esse que designa nem o que é ser? E o que é ter passado pelo que se diz ser o nascimento e ir passar pelo que se diz ser a morte?
O que é interrogar e pensar tudo isto e o que ou quem é – se, como dizem, o há – quem assim interroga e pensa? O que é cada um destes pensamentos e palavras? O que é um pensamento e uma palavra? O que é dizer e pensar o quer que seja? Haver palavras e pensamentos é tão estranho quanto haver o que se pense e diga.

Porque não sei responder em absoluto a estas questões, se me libertar das respostas que outros antes de mim sem as colocar deram e que quase todos sem as colocar e dar dão? E porque julgo quase sempre saber ou faço de conta que sei o que em verdade não sei? Porque me sinto tão incomodado com o súbito despertar a saber que o não sei e, por hábito ou opção, consciente ou inconsciente, sempre por conforto, quase logo disso me distraio e o esqueço? Porque é tão difícil pairar suspenso no abismo da interrogação e tão facilmente resvalo para o chão de tão incertas certezas e inseguras seguranças?

Tudo é tão estranho. E em verdade, mais estranho ainda que o sentimento da estranheza de tudo, é ele ser tão estranho. Pois que há ou se crê haver que se não estranhe? Que há que seja em absoluto familiar, conhecido e próximo, a começar pelo que digo e me dizem ser eu próprio? O que é ser eu próprio?

Ser é muito estranho.

E o que é estranhar? Ser em suspensão de si e de ser? In-ex-istir? Estar aqui alhures?

(Dedico este texto à memória do Fernando Neves, companheiro de escola e brincadeiras na rua, bom jogador de futebol e nada intelectual, com o qual, num belo dia, deveríamos ter uns 8 anos, sentados em cima de um muro que já não existe perto da casa de meus pais, descobri que o sentimento do terrível enigma de tudo, e a interrogação do porque há ser, era algo compartilhado. Recordo-me como se fosse agora de, subitamente, confessarmos mutuamente como pensávamos nisso até à exaustão e à sensação da iminência da loucura ou da explosão. Jamais encontrei na Universidade, ou na leitura e convívio com poetas e filósofos, momento mais gratificante. Tudo o que aqui escrevo não é senão uma redutora extensão desse relampejante diálogo.
O Fernando Neves passou a ter uma doença estranha a partir da adolescência e acabou por se suicidar, após se lançar uma segunda vez da janela da casa dos pais, perto de onde moro. Não se inquietem ou alegrem todavia os leitores, pois não creio ir no mesmo caminho. Creio que a estranheza e a incerteza acerca da própria existência se substituem ao suicídio com evidentes vantagens)

11 comentários:

Isabel Santiago disse...

Paulo,

estava a pensar nisso desde que escrevi ao Platero quando lhe disse "eu sou" e logo disse soa-me sempre a estranho e pouco verdadeiro,"eu sou".

E fui contornar a inquietude dessa afirmação lendo e escrevendo. Estava talvez agitada nesse pensamento. Encontrei esta tradução de dois versos de Éluard da Gabriela Llansol:

"Encontro-me em face desta paisagem feminina
Como uma criança diante do fogo"

E se tentar responder às perguntas que faz, sobretudo aquela que nos questiona sobre o que é a estranheza, e sem saber ou disso estar certa, diria assim seguindo a sabedoria dos versos: a estranheza parece ser a paisagem feminina que contemplamos quando em criança ardíamos na floresta de questões que não nos respondiam. Inexistimos desde essa contemplação da chama e do fogo que da paisagem recebemos por estarmos nela e não mais diante dela? A estranheza resulta da descoberta em nós do fogo que somos: admitimos que somos cinza, mas admitimos muito menos que antes tenhamos sido e sejamos crepitar belo e incerto dentro de uma paisagem que nos fez e tornou fogo como a tudo resto tornou isto e aquilo. E se o espanto do homem perante o fogo fosse o de estar perante o primeiro espelho que o reflectiu? Existir parece uma chama, uma labareda que a paisagem faísca e nos incendeia... belo e efémero. E se existir fosse ser aforismo numa paisagem? Um acender súbito que se apaga...às vezes sentimo-nos apagados...outras incendiados...
Como a chama somos os que se apagam nos sopros. É por isso que cantar quase nos dissipa...

Não sei, mas sei que não sou. Sinto só que sou chama e chamada...

Não respondi, partilhei o que não sei. Como sempre.

Anónimo disse...

Sim,é tudo muito estranho. Não sei responder às interrogações, nem sei o que é a verdade, nada. Só sei que apetece dar-lhe um abraço. De alma para alma.

Luiz Pires dos Reys disse...

Esse amigo, caro Paulo, a cuja memória aqui junto a minha respeitosa vénia, é um daqueles seres que passam pela nossa vida como relampejo do logos que, em nós, às coisas e a nós interroga.

Não sei se mais deva curvar-me perante esse brotar do auroral enamoramento de Phílon por Sophia em Paulo Borges, se mais deva fazê-lo por tal irmanar de dois seres face a esse tão doce quão doloroso espanto, que umas vezes leva ao êxtase, outras às lágrimas - estações diversas apenas, dos mesmos anais eternos do ser e do além-ser - face ao mistério sem nome de haver coisas, e antes as não haver, ou haver que haver.

Recordo de, intimamente, perguntar-me em criança porque eram as coisas e as pessoas algo separado de mim, já que as sentia como "por dentro", já que de algum "(pré-)adâmico"(?) modo de inteligir - antes de me ver realmente “expulso do paraíso”, aquando da entrada na escola - eu, digamos, “intuía” o que me iam dizer antes mesmo de o fazerem (como se, antes de haver palavras e o dizer delas, houvesse já “algures” a raiz delas e do vir a haver o dizê-las) e eu quase me divertia, ingénua e inocentemente (pois não conseguia, na verdade, “interpretar” muito de quanto quanto apreendia), a ler o “pensamento”, apenas olhando para as pessoas.

Como se, de algum tão misterioso quão maravilhoso modo, me fosse possível, permitido, acedido, ler no rosto, na expressão, na maneira de estar, em cada gesto, em cada olhar, e num “mais além e mais ao fundo disso” tudo (que não sei localizar de todo “onde” tal fosse) o que ia na alma, no coração e na mente de quem se me cruzasse.

Creio que essa “queda” na escola foi o maior “baque” que tive em toda a minha vida.

Hoje ainda, estou a tentar "re-cuperar" o de quanto, tão inesperada quão incompreensivelmente, fui então arrancado.

Sem "trauma" (ou talvez sim: que serão estas interrogações que nos fazemos, e que tão poucos se fazem?) mas sem remissão também, de não lograr impedir-me da fome e sede de “lá” “voltar” ou “chegar”...

Grato, meu caro Paulo, tão grato quanto ao filósofo Fernando Neves (com fundo respeito o escrevo e digo), e a Isabel Santiago que sempre habita estas, não sei se rarefeitas se feitas raras, paisagens de nada, de ser e de não-ser.

Abraço a ambos, e um aceno do espírito mais alto em mim, a Fernando...

Semente disse...

A partilha pode ser um momento de estranheza, mas vale sempre a pena!

Acredito que vale a pena para quem partilha e para quem recebe, que é o meu caso.

Obrigada, Paulo*

Ana Moreira disse...

Estranha-se sobretudo ser estranho. Não ter casa: saber, bem no íntimo, que nunca a abandonámos apesar de não lembrarmos como se regressa. Regressar por meros vislumbres relampejantes e não poder entrar quando a porta está sempre aberta.
Estranha-se as curvas, a dificuldade do caminho quando bastaria bater os calcanhares, dizendo:
" there's no place like home!"

Anónimo disse...

Estranha forma de vida...

Anónimo disse...

Qual a relação entre espanto e estranheza?

Ana Moreira disse...

Será o espanto a expressão primeira e súbita de estranheza? Um assalto relâmpago?
E a estranheza a impressão que perdura como uma náusea, um desconforto? Um sequestro?

Anónimo disse...

"É uma coisa estranha, ou mesmo uma coisa sinistra, ter primeiro que saltar para alcançar o próprio solo sobre o qual nos encontramos" - "Was heisst denken?"

Anónimo disse...

Caro Paulo,

Passei tantas vezes pelas suas palavras a tentar uma forma de resposta às sem respostas que aqui coloca, que me estranhei esquecida de mim, com as suas palavras a nascerem-me da mesma interrogação: o que é a estranha “aparição” de nós a nós mesmos? Também conheci quem a não aguentasse.
Mas ainda o que me estranha mais, não sei, são as mãos do Paulo sobre o teclado e a cabeça do Paulo sobre a interrogação e a memória. E senti, com alegria, confesso, a humanidade que nos é comum. E dentro das respostas que não dou ou do comentário que seria um livro interminável, senti que o abraço que lhe dou é uma ternura verdadeira de ser.


Abraço, pois, a estranheza de sermos e de nela não nos estranharmos.

Laura disse...

As interrogações, a mim, conduzem-me à espera. Quero muito saber as respostas. Mas sobre o que a alma por vezes faz ao corpo... deve doer, separar-se assim de um amigo.
Abraço.