quarta-feira, 7 de janeiro de 2009
PASSEIO SOCRÁTICO Por Frei Betto
Ao visitar em agosto a admirável obra social de Carlinhos Brown, no Candeal, em Salvador, ouvi-o contar que na infância, vivida ali na pobreza, ele não conheceu a fome. Havia sempre um pouco de farinha, feijão, frutas e hortaliças. "Quem trouxe a fome foi a geladeira", disse.O eletrodoméstico impôs à família a necessidade do supérfluo: refrigerantes, sorvetes etc.
A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano – e nisso também nos diferenciamos dos animais – manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico. A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.
Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós."
O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela… Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade. Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" – diz Jean Baudrillard – "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/11/403577.shtml
A economia de mercado, centrada no lucro e não nos direitos da população, nos submete ao consumo de símbolos. O valor simbólico da mercadoria figura acima de sua utilidade. Assim, a fome a que se refere Carlinhos Brown é inelutavelmente insaciável. É próprio do humano – e nisso também nos diferenciamos dos animais – manipular o alimento que ingere. A refeição exige preparo, criatividade, e a cozinha é laboratório culinário, como a mesa é missa, no sentido litúrgico. A ingestão de alimentos por um gato ou cachorro é um atavismo desprovido de arte.
Entre humanos, comer exige um mínimo de cerimônia: sentar à mesa coberta pela toalha, usar talheres, apresentar os pratos com esmero e, sobretudo, desfrutar da companhia de outros comensais. Trata-se de um ritual que possui rubricas indeléveis. Parece-me desumano comer de pé ou sozinho, retirando o alimento diretamente da panela. Marx já havia se dado conta do peso da geladeira. Nos "Manuscritos econômicos e filosóficos" (1844), ele constata que "o valor que cada um possui aos olhos do outro é o valor de seus respectivos bens. Portanto, em si o homem não tem valor para nós."
O capitalismo de tal modo desumaniza que já não somos apenas consumidores, somos também consumidos. As mercadorias que me revestem e os bens simbólicos que me cercam é que determinam meu valor social. Desprovido ou despojado deles, perco o valor, condenado ao mundo ignaro da pobreza e à cultura da exclusão. Para o povo maori da Nova Zelândia cada coisa, e não apenas as pessoas, tem alma. Em comunidades tradicionais de África também se encontra essa interação matéria-espírito. Ora, se dizem a nós que um aborígene cultua uma árvore ou pedra, um totem ou ave, com certeza faremos um olhar de desdém. Mas quantos de nós não cultuam o próprio carro, um determinado vinho guardado na adega, uma jóia?
Assim como um objeto se associa a seu dono nas comunidades tribais, na sociedade de consumo o mesmo ocorre sob a sofisticada égide da grife. Não se compra um vestido, compra-se um Gaultier; não se adquire um carro, e sim uma Ferrari; não se bebe um vinho, mas um Château Margaux. A roupa pode ser a mais horrorosa possível, porém se traz a assinatura de um famoso estilista a gata borralheira transforma-se em cinderela… Somos consumidos pelas mercadorias na medida em que essa cultura neoliberal nos faz acreditar que delas emana uma energia que nos cobre como uma bendita unção, a de que pertencemos ao mundo dos eleitos, dos ricos, do poder.
Pois a avassaladora indústria do consumismo imprime aos objetos uma aura, um espírito, que nos transfigura quando neles tocamos. E se somos privados desse privilégio, o sentimento de exclusão causa frustração, depressão, infelicidade. Não importa que a pessoa seja imbecil. Revestida de objetos cobiçados, é alçada ao altar dos incensados pela inveja alheia. Ela se torna também objeto, confundida com seus apetrechos e tudo mais que carrega nela mas não é ela: bens, cifrões, cargos etc. Comércio deriva de "com mercê", com troca. Hoje as relações de consumo são desprovidas de troca, impessoais, não mais mediatizadas pelas pessoas.
Outrora, a quitanda, o boteco, a mercearia, criavam vínculos entre o vendedor e o comprador, e também constituíam o espaço das relações de vizinhança, como ainda ocorre na feira. Agora o supermercado suprime a presença humana. Lá está a gôndola abarrotada de produtos sedutoramente embalados. Ali, a frustração da falta de convívio é compensada pelo consumo supérfluo. "Nada poderia ser maior que a sedução" – diz Jean Baudrillard – "nem mesmo a ordem que a destrói." E a sedução ganha seu supremo canal na compra pela internet. Sem sair da cadeira o consumidor faz chegar à sua casa todos os produtos que deseja.
Vou com freqüência a livrarias de shoppings. Ao passar diante das lojas e contemplar os veneráveis objetos de consumo, vendedores se acercam indagando se necessito algo. "Não, obrigado. Estou apenas fazendo um passeio socrático", respondo. Olham-me intrigados. Então explico: Sócrates era um filósofo grego que viveu séculos antes de Cristo. Também gostava de passear pelas ruas comerciais de Atenas. E, assediado por vendedores como vocês, respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz".
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/11/403577.shtml
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11 comentários:
LUME
Companheiro
Irmão
Amigo
Sem o teu calor
Sem a tua luz
Sem o teu fulgor
Sem o teu fumo
Sabe lume:
Ardo
contigo
gostava de ter escrito a belíssima prosa de Frei Betto. alinhavei esta espécie de poema, que me parece inserido no contexto
Três rápidas constatações, em tom de "cirrose":
1ª constatação:
Não seria preciso ser frei para escrever tal prosa, que basicamente apenas alinha, por palavras justas e relativamente bem escritas, algo que todos já relativamente sabemos porque sentimos na pele, mais uns do que outros:
Com mais ou menos geladeira, mais ou menos frio, mais ou menos papelão por cobertor.
2ª constatação:
Para um frei, se bem que mostrando a doença, dir-se-ia que algo haveria a mostrar quanto a remédio. Mas não. Nada. O "compromisso social" dá nisto: fica-se no detalhe que é o pé importante, mas perde-se um tanto o tento e a cabeça, que convém sempre não perder.
Outra desnecessidade de ser frei, na circunstância.
Para isto bastava um vulgar jornalista.
3ª constatação:
Sócrates, feliz ou infelizmente, pelos motivos que bem sabemos, não pôde observar na totalidade "quanta coisa [existia] de que não [precisava] para ser feliz".
O pobre, das duas, uma:
ou foi finalmente feliz, o que é bem provável, por se ter libertado de tal incumbência tão pouco filosófica, e nem sequer tão-pouco sofística;
ou então, assim chegou à rápida conclusão de que verificado certo padrão, desnecessário se torna conferir todas as suas ocorrências.
Perdeu-se um filósofo, é certo, que se ganhou porventura em Platão.
Um passeante se perdeu em Atenas, qual hoje também os perdemos aos molhos nos passeios comerciais hodiernos, tendo-se ganho um derradeiro consumidor de sicuta:
a morte, dum só trago, pela nobreza dum princípio.
Deve ser o equivalente ao que agora se chama "acto único".
Obrigado na mesma, Ana.
Que remedio e que propoe, Lapdrey?
Que pena, Ana!
Lamento mas não sou médico - nem das "ialmas" nem dos corpos, se bem que...
Não se enxofre, nem alcaxofre, Ana Margarida! Então?
O que eu quis dizer é que não interessa andar-se a trocar os papelinhos que escolhemos na vida. Se o freis quiseram ser freis: que sejam freis, então! Ainda que sejam tudo o que forem: até jornalistas. Mas falando como freis, não como estes. Certo?
E deixem-se os freis também de "sociologias da salvação", que só vão parir uma grandíssima (prefere "grandessíssima") "népia", como é costume na Cúria ou na favela.
Mais vale andarem todos aos saltinhos paramentados e darem o show em Alvaláxia!
Todos vemos assim melhor o ridículo da coisa e a coisa ridícula que são.
E deixemos também a tal coisa da sociologia para os sociólogos!
Eles que continuem a analisar a feridas (disso de "sociedade", que ninguém já sabe o que seja) juntamente com a própria
pus, esperando assim chegar a alguma conclusão.
Hum,não me cheira!...
Aliás, cheira ao raio da pus infecta...!!
(Ó Ana, hoje a amiga está muito mais "perguntadeira" do que no outro dia, lá com a questão da China e não China e bla bla bla... A coisa ali deu um bocado mau resultadinho!... Coisas! Eu, se fosse a si... ía analisar feridas... ou sei lá... freis...)
Qual e o seu papel nesta vida, Lapdrey?
Assim se evitam debates entre ideias e se faz a "seleccao natural" de quem fala e quem nao fala, e do que se fala: Ja nao com garrotes, mas sim com ironia.
Não me diga que a Ana é do SIS? Ou da "Judite".
(Acho que a Ana está ainda "a medo" comigo... a ver em que é que a "coisa" dá... e para que lado é que isto pende. Boa táctica. Perguntas curtas e secas, sem margem para... Muito "sociológico"!)
Sejamos, amiga, tão coerentes que isso nos leve ao limite da própria in-coerência. Falo por mim.
Assim eu quero. Para não ser engolido pela circulação quadrada do intelecto.
(Não sei se isto é o inverso da quadratura do círculo, mas...tanto importa...)
Não nos levemos tão a peito, para podermos levar a vida realmente mais "a sério" no que ela tem de caricato, e mais a "brincar" (como uma criança) no que ela tem de espantoso.
Assim, mantemo-nos infantes e, citando Platero (com a sua licença, amigo Platero) mantemo-nos
"Companheiro(s)
Irmão(os)
Amigo(s)"
(Não interessa defender os pobres "contra" os ricos: isso não é digno dum cristão. Ele não o fez.
Não interessa fazer nada "contra" nada... Devemos, sim, fazer tudo por tudo)
Quanto ao meu "papel"...? (Big question!)
Se o meu for o de um homem que tenha chegado algum dia a ser realmente criança, dou-me por "real-izado", isto é, "aí" tornei-me porventura "real".
Abraço serpentino, Ana.
(A pluma, não me fica lá muito bem. Fico meio "coiso e tal".)
Como quase sempre, pelos vistos, "morre pela boca", Ana Margarida...
Verdade colega, a Escada Articulada 12 degraus tem varias posições. Você poderia gravar um vídeo mostrando como montar essa escada
Você só esqueceu de falar do Bebedouro de Água Electrolux, eu tenho um bebedouro desse e postei uma resenha dele no canal, para saber sobre esse bebedouro Clique aqui
Legal essa maquina de Grama Elétrico , ela é uma mão na roda, ele é bem prático mesmo, e muito fácil de montar. Obrigado por compartilhar
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