domingo, 18 de janeiro de 2009
Viagem
Ainda não parti, mas a minha viagem já começou. A alma lança-se primeiro para a frente, na antecipação do vôo. A mente segue-a, receosa, medrosa, ainda hesitante. Assim se vai abrindo o caminho que me vai separar de ti. Colocar o meu pé físico nos primeiros centímetros desse caminho vai ser uma das coisas mais difíceis que já fiz. O meu corpo não quer separar-se de ti. Nem a alma, mas essa, essa anda sempre a esvoaçar de um lado para o outro. Vai e volta, vai e volta. Nem sabe que vai para sempre. Sabe o quê, a alma? A alma é uma tonta. Feita apenas de voo, emoção e luz e sombras, sabe lá para onde vai, ela. Vai para onde a mandam, ora essa. Vai com o corpo, porque está presa a ele. A mente é que tem medo, mas foi a mente que decidiu. A mente protege em primeiro lugar o corpo. E o corpo, ultimamente, fora muito atacado pelas bicadas da alma, que se queria libertar. A alma enterrou-lhe o bico e as garras e começou a destruir o corpo. O corpo não se mexe. Ou melhor, não se mexia. Mas a mente começou a ver que a coisa estava a ir longe demais. Sentiu o corpo a falhar, as células a avariarem e a errarem a programação, a respiração cada vez mais ofegante, a visão a nublar-se, a circulação a interromper-se em vários pontos. Por isso, olhou no futuro e mudou-o imperceptivelmente. Poucos sabem, mas quando o presente acontece, não é causado pelo passado. É causado pelos nossos pensamentos colocados no futuro. O tempo, ao contrário do que se pensa, tem dois sentidos. O corpo pode percorrer apenas um, mas a mente percorre os dois, infindavelmente, sem mesmo se dar conta. Quando a mente olhou para o futuro e viu a morte do corpo, assustou-se e criou um futuro diferente. Do futuro para o presente chegaram então novos acontecimentos, devagar, ao princípio, depois numa sucessão cada vez mais rápida. Embateram um a um, primeiro como cascalho, depois pedras, depois pedregulhos, contra os muros que rodeavam o corpo, até que estes caíram. O caminho abriu-se. O caminho que me separa de ti. Onde irei dar em breve o primeiro passo. A alma é uma tonta, mas acaba por conseguir sempre o que quer. O corpo prende a alma, a mente é que decide, mas afinal a alma é que manda. Essa tonta. Não sabe para onde vai, só sabe que não quer ficar. Sofre e nem sabe porquê. Morde e arranha, quando enlouquece e pouco lhe importa o mal que faz ao corpo, porque afinal, para ela, o corpo não passa de uma prisão. Não fosse a mente e a alma matava o corpo em três tempos. Talvez num tempo apenas. Como um traço de pincel flutuante ou um lenço de seda puxado pelo vento na direcção de um caminho que ainda mal se abriu, branco, tão branco, como uma fina tela pousada no chão, mal sabe a alma o que a espera. Quando sentir a tua falta, quererá voltar. Mas será tarde demais. O corpo só pode percorrer o tempo num sentido e também os caminhos abertos pela vida não têm regresso. Não sei como a mente e o corpo irão conseguir acalmá-la, à tonta da alma, quando ela perceber que se quebraram os laços entre ela e a tua alma. Neste momento ainda está entrelaçada na tua. Não sabe que vai separar-se. Chilreia, alegremente, numa estúpida emoção sem sentido, que a minha mente se apressa a tentar esmagar. Em vão. A mente é mais densa do que a alma, tal como o corpo é mais denso que a mente. Mas enquanto a mente tenta acertar com um tabefe na alma tonta, esta vai-se distraindo e por vezes, até já se separa da tua, esvoaçando para um lado e para o outro. A tua alma está presa em ti, mas a minha alma não corre para mim, que ainda aqui estou, traça pinceladas coloridas no caminho branco e canta. À medida que o caminho se vai abrindo, com pinceladas e mais pinceladas de vôo, o meu corpo prepara-se para partir também. Eu também vou ter de ir com ele. Estou presa à minha alma. Sou ainda menos densa que ela. Pensam que ela é tonta? Parece tonta, mas não é, sou eu que a controlo. Mas nada decido e nunca intervenho. Nem sei quem sou. Desdobro-me em multiplicidades infinitas. Interrogo-me. Tão sómente.
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10 comentários:
A natureza do ser humano, do ente humano, da entidade humana tem expressões várias em cada uma das diversas linhas de tradição espiritual mais antigas.
Em qualquer delas, seja qual for a "estratificação" de níveis por que seja vista a constituição do ser humano, em todas o que se pretende é tender para a "transcensão" (nem que seja de "consciência") das suas desarmonias e atingir um "ponto", um "grau", um "modus" que as unifique e integre, ou "restaure".
Sempre o ser humano é visto como "disperso", "perdido", "caído", "acorrentado", "sujeito" seja pela ilusão da mente, seja pela acção e consequências do elemento "pecado", seja pela "insubmissão" a um que chamamos "Deus", etc.
Em todas, "algo" está descentrado de "algo", fora do seu "eixo", do centro axial do seu "ser", da sua natureza própria e primordial.
É, pois, obviamente, quando o homem se dá conta da sua condição desarmónica que ele realmente inicia (se assim o de-cidir) uma abordagem à "im-perfeição" que em si mesmo constata.
Seja qual for a via que o homem escolha para a si mesmo integrar no em que sente dever integrar-se, o que desde logo se manifesta e nele aflora é a consciência de ver e sentir em si a "constradição" entre as diversas "partes" que em si nota estarem em conflito nessa mesma "estratificação" que é, muito provavelmente, puramente "analítica".
Como quer que se lhe chame (alma, espirito, mente, mónada, consciência, etc.), o que se lhe apresenta como tarefa, ou antes, como aquilo em que ela mais repara, é a existência, a presença de todos os pares de opostos e sua "di-ferença" em si mesmo.
O primeiro "trabalho de Hércules" é então, para o homem, verificar que realmente o que quer que seja que nele esteja em conflito em todos esses opostos, ele não é "isso": ele é algo que está mais "fundo" do que "isso".
É esse "fundo" sem "fundo" que constitui o começo do início do seu "caminho", ou do "Caminho".
Algum dia, o homem chega à conclusão de que, por mais caminho que ande e per-corra, sempre ele "está" onde "esteve", "onde" "estava" no mesmo que ele é sempre e desde sempre.
E de que, mesmo o espanto sem nome que ele "sente" perante as maravilhas e deslumbres que em seus vislumbres lhe seja dado "ver", mesmo isso já estava em si desde todo o sempre.
O novo é, na verdade, o sempre novo, porque é o sempiterno que se apresenta no circun-stância em que estejamos no tempo: mistério de um jogo de espelhos que reflecte algo que se não deixa reflectir.
Bem vinda, Madalena, ao caminho sem caminhada...
Não seremos mais um processo, uma metamorfose, que um ser ou um ente, humano ou outro? Não será isso que nos é sugerido pelo facto dos Gregos simbolizarem a alma (psyché) como uma borboleta, que nasce da metamorfose da lagarta? Não seremos antes viagem que viajante?
Não surgiu a ontologia, o discurso/saber do ser, de um esquecimento da odologia, o discurso/saber da viagem, da metamorfose, como o sustenta o profundo pensador Stanislas Breton?
Não será isso um dos motivos fundamentais da estranheza de ser, pois na verdade, a ser assim, presumimos o que nunca é, presumimo-nos o que nunca somos!?...
Interessante e estimulante o texto e o diálogo que sugere. Procurando seguir pelo pensamento e deixando por momentos a alma a vaguear por onde queira. Diria que parece ser adequado pensar que onde há descentramento, a viagem se impõe, tal como a metamorfose (Talvez não o soubesse dizer como os que me antecedram souberam). Mas, tenho para mim que nada é fixo, que tudo é movimento: interior e exterior. Daí que a metáfora da borboleta ou a do trânsito do ser para o que já não é, e presumimos ser o Ser (obrigada, Paulo) nos apareça, eventualmente, como “o que nunca somos”, na circunstância e no tempo. No resto, se o houver, acena-nos o mistério do Sem Nome, que em cada caminho é a capa com que o vestimos. Parecendo sempre embater com a (im)possibilidade de aparecermos a nós mesmos como Nada. E não me parece que seja porque o Nada seja fixo, que o não é, porém, o é o senti-lo como o absoluto. E ao absoluto não podemos contemplá-lo senão por instantes breves, quando o Silêncio pleno se funde com o Nada que queremos Ser. Movimento seja, e caminho ou viagem. Pensá-lo dá que pensar, e abandoná-lo também. Que cada um encontre esse ponto de equilíbrio que, suspeito, tal como a alma, nunca está parado.
Um abraço a Madalena, Lapdrey e Paulo.
Caros Paulo e Saudades,
A questão remete sempre, como se vê, para o que me parece ser esse "nenhures/algures" que suscita/encontra todas as de-cisões/hesitações em nós.
Há viagem sem viajante?
Não é o viajante que faz a própria viagem "ser", ainda que ela seja ilusória e ilusão o que veja e passa nela?
Há viajante se não há viagem?
Se o haver movimento é ilusão de haver o que quer que seja, não é contudo ilusão que há uma consciência ilusória que assim se ilude.
Se não, o jogo de espelhos é infindo e sem solução.
E, se é sem solução, solucionado está, e razão terá o nihilismo ou certo gnosticismo que indiferencia o valor do que quer que seja, que seja feito ou não feito, "bem" ou "mal", ou outra coisa.
Se o "des-tino" extremo e derradeiro do homem é um além-rosto, porque é ele, o rosto, o que mais define o homem como homem?
Porque, então, as teofanias e avataras (se bem que coisas diferentes) são modos "necessários" de "prosopónica" concessão de um rosto, de uma imagem ao próprio Deus, Divindade, Deidade, Divino, Ele, El, (.:.),(.), ( ), ____ ?
O que se joga e joga nisso o próprio Divino, ao "pôr-se em jogo"?
A assim ser, tem mais razão o Zen quando insulta o próprio Buda como rasto ainda da ilusão de ser um buda.
Mas que adianta isso, se nada adianta?
E porque, mesmo aqueles que tiveram já experiência "mística" da cosmicidade da consciência, ou do além dela, ou do "in-difer-enciado" a "tiveram", ou dela apenas um lampejo tiveram, ou "nele" "se" "viram", porque mantêm eles um rosto, uma face, um corpo, e se mantêm "ex-sistentes" e não os faz isso "des-integrar" de "i-mediato" nisso que "neles" "houve" de "libertação", por via dessa "ex-peri-entia"?
Ali onde "matéria" e "espírito", todos os contrários, opostos ou toda a di-ferença inexistem, porque é que isso não "pro-voca" a integração "in-stantânea" do que não tem nome (nem pode ser dito) no "ente" que deixou de "ser" "ente" e de ter "nome", ao libertar-se?
Porque não pulveriza isso, como um "vírus" bom, isso mesmo que em nós se "pro-paga", se o resíduo de ser que somos é apenas um nem resíduo?
Que sentido tem sermos "separados", se na verdade, no limite, o não somos?
E "onde" fica isso que de tão rico chamamos de pessoal e inter-pessoal, que se co-move e se extasia no que o co-move?
Como pode ser "nada" ou não ser nada , ou ser um além disso sem "isso" que nos co-move, se isso é para o jogo de "ser" tão carregado de sentido?
Qual é o sentido do não-sentido?
Se o não tem, nada faz sentido.
Se o tem, que sentido tem não ter sentido ou não ter o sentido que tenha?
(P.S.
O limite extremo, "finistremo", "finistérrico" do meu "cristianismo", bem sei que sui generis, Paulo, creio eu que ele roce algo que tenho como " via búdica", naquilo em que eles (cristianismo e budismo) a si mesmos se a-nulam, para se alcandorarem ao "extremo" do "in-extremis" do inumanizar para, "rompendo" com o des-humano, mais humanarem, ou seja mais iluminarem, "budeificarem", "cristificarem" o que seja isso de ser homem.
Mas ainda isso roça, quanto a mim, o que de mais abísmico e "inacessível" no Cristo está presente de "radical" e se revela para logo se re-velar.
Há um Cristo a descristianizar!
Há um Cristo a descristificar!
Há um Cristo que não há!
Há um Cristo que não há ainda porque não tem quem o haja.
É Ele o "Há" de "tudo", de "nada" e do que há "além" disso que há ou haja.
É Esse "Sem-Nome" que me chama, em chama, Esse que está além mesmo d'Ele em mim, e além do que eu diga, possa, seja ou veja a ser ou não ser.
E isso, Paulo, que (creio) em nós (todos?) se roça como "pálpebra de anjo" naquilo que (na "via", na "Parede sem porta" é "eternamente" e "instantaneamente" válido e trans-radicalmente explosivo e implosivo, e disso o "mais além" que haja ...
Abraço "nisso"...
Tavez nem valesse a pena tecer o meu modesto comentário, que nada acrescentará ao que foi dito. Mas o "chamar" do post e os comentários do Lapdrey e do Paulo, enfim, cá vai:
“Nisso” que não nomeamos, mas a que somos impelidos a dar um “rosto” ou não(Eu sou o que Sou) é onde se joga a entifificação ou a nadificação desse que em nós porventura deixou Semente - desde que se distinga o "nada" do "Nada".
A viagem sem viajante não é viagem. O viajante sem viagem não há. A viagem perderá o sentido sem viajante, o mesmo inverso... Pergunto: Então, o que é não é?
Aqui também o Zen vai mais longe pelo mais próximo,e mais alto pelo mais baixo, ou simplesmente dizer: o que está em cima está em baixo, não há "em cima", nem há "em baixo": Há.
Talvez pudessemos dizer. Há. Se houver, não é o que há. Há.
Também me aproximei (não tanto como vós) da via Zen, com Tao Te King, e o que retiro dessa visão é simples: O que há, é. A partir desta aparente(?) simplicidade, banhada de budismo e cristianismo, poderia formular(ou não) uma outra proposição: Há Um, somos Todos. Assim sejamos.
O meu Cristianismo tem rosto apenas para não o ter. Para nos aproximar da Natureza, do Humano em nós(?!) Estou também com Lapdrey, quando diz: Ele é o “Há” de tudo....
Um abraço Lapdrey e Paulo
Car@s Amig@s, o pensamento/linguagem são uma teia onde a aranha se emaranha. Talvez como sinal de estar a contradizer-me respondendo-vos com uma assaz longa consideração, acabei de perder tudo numa quebra da net.
Agrava-se assim o meu cansaço do silêncio, da palavra e do que haja ou não entre ou para além de ambos. Agrava-se o meu cansaço de estar aqui e vou desmaterializar-me para renovar a forma em que participo no faz de conta de tudo.
Boa noite!
Quero só agradecer as portas que abriram a esta viagem. Ao Paulo, quero apenas pedir que não as feche. De repente, percebi que esta viagem não é minha, mas de muitos. Cansaço, tantas vezes o sinto e sobre ele ainda não consegui escrever. Mas sei que um dia escreverei sobre o cansaço, alguém já deve ter escrito sobre o mesmo, pois o cansaço... atinge todos numa ou noutra altura. Quem já leu algo sobre o Cansaço?
Tudo o que se abre se fecha. Porta só o é o que nunca se pode abrir ou fechar.
"Cansaço", fado cantado por Amália Rodrigues
Composição: Joaquim Campos / Luís Macedo
"Por trás do espelho quem está
De olhos fixados nos meus?
Alguém que passou por cá
E seguiu ao deus-dará
Deixando os olhos nos meus.
Quem dorme na minha cama,
E tenta sonhar meus sonhos?
Alguém morreu nesta cama,
E lá de longe me chama
Misturada nos meus sonhos.
Tudo o que faço ou não faço,
Outros fizeram assim
Daí este meu cansaço
De sentir que quanto faço
Não é feito só por mim"
Obrigada, Cansaço! Então aqui vai outro...
De Álvaro de Campos
O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.
A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas.
Essas e o que faz falta nelas eternamente;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço, Cansaço.
Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo. íssimo, Cansaço...
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