O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 13 de janeiro de 2009

O anjo do Ocidente


“No topázio mais triste da minha clarividência, apareceu-me o anjo do Ocidente. Tropeçava de sombra em sombra e a espada com que guardava os jardins com buxos de livros da Europa despedaçara-se em números que espavoridos fugiam uns dos outros. Um horizonte de canções blindadas cantava a parábola das cidades brancas cobertas por noites laboriosas de formigas. As estátuas cambaleavam no alto de temerosos pensamentos. As catedrais eram levadas por um vento de elevadores endemoninhados. Mulheres a arder em revistas ilustradas faziam strip-tease para latas de conserva boquiabertas. E a Europa fugia para trás. Fugia parada na louca pulsação do seu movimento estático. E a Europa era a triste viuvinha no meio de uma roda de crianças que matavam índios num filme americano.
Desatei então a correr para o sítio onde se chora. O sítio onde se chora é na penumbra pensativa. No quarto de estalactites da alma onde se fazem poemas. Mas notei que no meu pranto faltava uma lágrima e essa lágrima era Portugal. Percebi finalmente que Portugal era eu a chorar trevos de cinza pela Europa.”

Natália Correia, “O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro”, in “Poesia Completa”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000, 2ª edição, pág.361.

10 comentários:

rmf disse...

Caro Lapdrey, muito, muito obrigado pela partilha deste poema! Deste magnífico poema.

Tão-somente, um abraço, amigo!
´
E brindo, à "luz" do Ocidente!

Anónimo disse...

O Anjo do Ocidente é a morte
de mãos postas a cobrir
o rosto ausente

Anónimo disse...

Magnífico texto, Lapdrey, magníico, não conhecia: "Percebi finalmente que Portugal era eu a chorar trevos de cinza pela Europa.”; "As catedrais eram levadas por um vento de elevadores endemoinhados"; "desatei então a correr para o sítio onde se chora..." senti um arrepio. Suspiro e aspiro estas palavras, como se fossem vapor e água e ar puro. Que triste o anjo do Ocidente! Como me doem as "canções blindadas" da nossa cegueira. Ainda nos falta decerto, uma idade... para cumprir. Mas continuo a ver, ultimamente, Portugal a chorar "trevos de cinza" por si, ou já nem isso...
Tristeza!

Grata pela, como sempre, pertinente oferta deste texto ao nosso pensamento.

guvidu disse...

adorei este excerto:

"O sítio onde se chora é na penumbra pensativa.

No quarto de estalactites da alma onde se fazem poemas.

Mas notei que no meu pranto faltava uma lágrima..."

grata pela partilha :)

guvidu disse...

será por isso a redescoberta do oriente pelo ocidente?

cada vez mais o saber milenar se difunde e é aplicado, com mais regularidade, na prática quotidiana...interpreto como sendo, de certo modo, um regressar à(s) origem(ns)...

guvidu disse...

"trevos de cinza", claro, teve que cá postar quem adora Cinza!rs

Ana Margarida Esteves disse...

Algum de voces leu o livro de Natalia Correia "Descobri que sou Europeia", que ela escreveu depois de ter passado um ano nos EUA?

rmf disse...

“Há uma fronteira intransponível entre o povo descobridor e o povo
conquistador. O primeiro é levado à descoberta pela inquietação e pela virtude sublime
de criar. O último é impelido pelo orgulho e pelo espírito de dominação que
afunda as suas raízes nas regiões sombrias do sadismo. Temos exemplos flagrantes
desta atávica aberração nos nossos dias"

Natália Correia

Anónimo disse...

Quando era pequena ouvia a Natália na televisão e temia aquela voz. Uma saber incontido, uma força telúrica brotava daquela voz e daquela forma de colocar a palavra à altura do que pensava. Como se a Terra fosse um lugar para plantar pensamentos que fruticariam nos leitores, nos ouvintes. A minha mãe dizia-me: "não a temas, ela traz uma voz que ressoa para dentro de ti."

O anjo deste texto, Lapdrey, faz-me lembrar o de Benjamin, o "anjo da História", de asas caídas, impotente, olhando para os destroços da História. O anjo do Ocidente só pode, com efeito, olhar para os livros esquecidos, preteridos; a espada do anjo não está como a de Tristão lascada, está partida e as estátuas balançam porque a Ideia as abandonou e o homem contempador foi afastado dos jardins; as catedrais desmoranam-se porque tudo é vil e subterrâneo, nada é do Alto e os pássaros não têm asas, como ontem lembrava a Fragmentus. A Europa sempre em busca de si mesma e da sua identidade está parada, exposta à mais perigosa aliança,é uma viuvinha mas só para quem leu o mito e, quem na Europa aprende ainda os seus mitos fundadores...?
Neste topázio que é o pensamento da Natália e onde o anjo se manifesta, deixo a minha dor e a minha culpa como professora. A Natália, como os autores,
é como o Príncipe de O. Wilde, estátua numa praça por onde ninguém conduz o pensamento a passar. Eu própria me atraso na travessia desse largo amplo que são as praças e cidades fundadas pelo pensare pelos autores. Nessa memória dos livros juntaria este excerto a um outro que o encontra pelo que este excerto, que nos deu a pensar, diz no final sobre as lágrimas e Portugal: Eduardo Lourença, "Nós a Europa ou as duas Razões."
E lágrimas para quê em tempo de indigência? Dá também vontade de parafrasear o Grande Holderlin...sobre os poetas...

Muito lho agradeço este excerto. A culpa e a tristeza são em mim produtivas de respostas.

Laura disse...

Belíssimo texto, cheio de múltiplos significados e belíssimo o comentário da Isabel; sem dúvida que a voz da Natália Correia ressoou para dentro de si. A alma lusitana é um barco. Estamos aqui, de olhos no mar, sempre à espera de zarpar. Um barco pode ser muita coisa.