O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

"Ich bin das Messer mit dem der Tote seinen Sarg aufsprengt" / "Eu sou a faca com que o morto abre o caixão"


Eu sou o anjo do desespero. Com as minhas mãos distribuo o êxtase, o adormecimento, o esquecimento, gozo e dor dos corpos. A minha fala é o silêncio, o meu canto o grito. Na sombra das minhas asas mora o terror. A minha esperança é o último sopro. A minha esperança é a primeira batalha. Eu sou a faca com que o morto abre o caixão. Eu sou aquele que há-de ser. O meu voo é a revolta, o meu céu o abismo de amanhã.
- Heiner Müller, "O anjo do desespero", in O Anjo do Desespero, tradução, posfácio e notas de João Barrento, Lisboa, Relógio d'Água, 1997, p.51.

10 comentários:

Luiz Pires dos Reys disse...

Quanto daquilo, de que somos hoje testemunhas no mundo, não grita nas poderosíssimas palavras de Heiner Müller!

Desespero,
(ilusório) êxtase,
torpor (vendido como o contrário),
gozo (fátuo),
dor nos corpos,
terror,
faca,
último sopro,
voo
céu,
revolta,
abismo do amanhã...
Pura enumeração duma galeria de horrores!

Grato, Paulo, pelo abanão que sempre importa em nós manter, para não cairmos no mais variegado quebranto...

Anónimo disse...

Força pura! Fôssemos nós estes mortos, não aqueles que se fecham no caixão da existência!

Luiz Pires dos Reys disse...

Imaginei-te morto, Rasputine!
Afinal estás como, alma pérfida e perdida?
Morto-vivo ou vivo-morto?
No fundo, tanto faz!
Já mal não fazes!
Nem mesmo a ti próprio.


Quanto a caixões:
É por isso é que certa tradição representa o Cristo recém-nascido, no presépio dentro dum sarcófago de madeira, entre as palhas da manjedoura:

O Vivo nasce entre os semi-mortos!
Incarnar é, para Ele, "insarcofagir-Se", o que é dizer o mesmo de outra maneira!

Boa estadia, "onde" quer que estejas, Rasputine!
Vai aparecendo!

Anónimo disse...

Lapdrey, queres um beijo na boca ou uma faca no coração?

Paulo Borges disse...

Lapdrey, eu não sinto necessariamente horrores, mas antes uma enorme pujança de Ressurreição. Desespero também é não esperar e ser desde já o que mais importa.
Claro que sou suspeito, com a minha forte costela de niilista místico (com a qual o budismo nada tem a ver, diga-se em abono da verdade).

Paulo Borges disse...

E adoro esta força bárbara e arcaica que a língua alemã ainda tem, tão perdida na latina e suas derivadas, embora com outros ganhos.

Marta Rema disse...

Paulo, adoro este livro (acho que cheguei a falar dele contigo!?) e já não pensava nele há muito tempo.
"uma enorme pujança de Ressurreição": só me apetece bater palmas, se tivesses dito isso ao pé de mim já estavas a ouvir as gargalhadas. :-) rio porque percebo. e apetece-me dizer: EXACTO!

Marta Rema disse...

ah, esqueci-me: no outro dia conheci aqui na terra uma pessoa extraordinária, num sítio onde só se pode conhecer pessoas extraordinárias (se um dia cá vieres, temos de lá ir): uma tasca numa aldeia aqui ao lado, que parece uma gruta, onde se come, se bebe e se dança portuguesamente entre as mesas e as cadeiras, se serve o café das velhas no fim (alguém sabe o que é isso? :-)) e a certa altura a dona fecha a porta e diz aos clientes descontraidamente: «podem fumar!»
enfim, nesta tasca, conheci um alemão que trabalha na produção da melhor aguardente nacional e é um apaixonado por História. e tivemos uma conversa maravilhosa à mesa sobre História, pautada com o seu acordeão e as minhas desafinadas cantorias. a certa altura falávamos sobre línguas e ele diz isto: «há um povo, de que ninguém fala, cujos sons da língua são muito parecidos com o Português. são os suevos, que são o único povo além do português com sons nasalados.»
lembrei-me disto, naturalmente, porque ele era alemão e eu dizia que adorava o alemão e ninguém percebia porquê (ele próprio não gostava, gostava de português). mas ensinou-me umas coisas :-)

Paulo Borges disse...

Maísha, que vontade de conhecer essa tasca-gruta, onde acontecimentos e encontros portentosos ainda podem ter lugar! Portugal a sobreviver-se.

E sim, há quem fale na grande afinidade de Portugal com a presença sueva, que nos distinguiria dos castelhanos, mais marcados pelos visigodos.

Posso saber onde fica esse lugar?

Luiz Pires dos Reys disse...

Perguntas desnecessárias, Rasputine!
Nunca tas fizeste!
Porquê agora?