O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

"Ai de nós!" - Homenagem a Pascoaes nos 57 anos da sua partida




"O Povo, como os animais, pressente certas grandezas, invisíveis aos olhos sujos de tinta de letra impressa. Os camponeses, os passarinhos e as árvores, são frutos ainda intactos, que sabem à terra que os criou. Neles brilha a Verdade natural; essa Verdade que, em nós pobres criaturas racionais, se oculta em artifícios. Ai de nós! Que iluminamos e definimos um pequeno espaço da Existência, e imaginamos, por isso, que mais nada existe para além. Pobre ciência, feita de ignorância e vaidade! As almas dos campónios e os passarinhos ignoram a luz que define. Vivem na noite indefinida; e os seus olhos, habituados à sombra natural, descortinam a imagem das cousas como ela é, muito embora indecisa... Vêem o esboço da Verdade; e nós não vemos mais que o nítido desenho da Mentira"

- Teixeira de Pascoaes, Os Poetas Lusíadas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1987, p.122.

Esta é a herança de Pascoaes que não se deixa instrumentalizar em rapinas ideológicas, patrioteiras e lusomaníacas do seu legado. Esta é a herança incómoda, que não alimenta discursos legitimadores da vontade de poder. Esta é a herança que nos desarma e despe de ilusões, deixando-nos nus de nós mesmos, em contacto com a verdade do Céu e da Terra. Este é o Pascoaes universal, que há-de falar aos homens mesmo quando Portugal e a Lusofonia já não existirem.

Saúde, Irmão!

14 comentários:

platero disse...

Bom texto

explicação não menos boa. Foi bom ter lido os dois

Paulo Feitais disse...

É uma herança que nos 'deserda'. Ou seja: o que tivermos de nosso terá que ser buscado e feito com as nossas mãos!
A 'papinha' não está feita.
Excelente!
E um brinde a um Irmão Maior!
:)

João de Castro Nunes disse...

Da parte de um... Menor! JCN

João de Castro Nunes disse...

Todos querem ser testamenteiros... da herança de Pascoaes! JCN

Ana Margarida Esteves disse...

Bela citação. Só há aqui uma coisa que acho muito perturbante: A identificação do "Povo" (o que é isso?) como "Outro" e a sua identificação com os animais ... Uma nostalgia da era-pré industrial, muitas vezes acompanhada por uma certa repulsa pelo proletariado e classe média urbana emergente?

Sim, a civilização industrial tem muito de distorcido e doentio. Mas será que a solução é mesmo uma nostalgia da era pré-moderna, marcada por um mundo de distância entre o "Intelectual" e o "Povo" e um desejo que esse "Povo" se mantivesse na agricultura de subsistência e no analfabetismo?

Sim, o "progresso" (se é que isso existe) tem muitos aspectos negativos. Mas para quê "jogar fora o bébé com a àgua do banho"?

João de Castro Nunes disse...

Na minha linguagem, chama-se a este tipo de prosa... "palafrório". JCN

Paulo Borges disse...

Creio que hoje há muito mais cisão entre o intelectual e o povo do que na era pré-moderna e nâo vejo onde Pascoaes vê o povo como Outro... Aproximá-lo dos animais é um elogio: Pascoaes recorda insistentemente que o burro de Barlaão viu o Anjo, invisível aos olhos do profeta.

Ana Margarida Esteves disse...

Podes publciar esse texto no blogue, Paulo? Parece bastante subversivo e adequado à quadra Natalícia. Quem sabe a acompanhar a imagem de um Presépio...

Um abraço.

Ana Margarida Esteves disse...

Porque achas que há hoje mais cisão entre o "intelectual" e o "povo", Paulo? Como definir o "povo" hoje em dia? Tarefa difícil... Já definir o "intelectual" fica mais fácil. É uma categoria que parece que se está a expandir cada vez mais. Especialmente se considerarmos como "intelectual" cada pessoa que trabalha com conceitos e abstracções.

Agora de "intelectual" a "pensador/a" vai uma grande distância...

João de Castro Nunes disse...

Já a mediu?!... JCN

João de Castro Nunes disse...

"SICUT NAQUILA VOLANS"

Quisera ser uma águia soberana
de asas possantes, fortes, resistentes,
para voar por cima das vertentes
em que rasteja a criatura humana!

Quisera ser uma águia sobranceira
de acutilante e penetrante olhar
para do céu diáfano enxergar
na sua vera essência a terra inteira!

Quisera, Pascoaes, ter o teu génio,
o teu talento, ó "Águia do Marão",
por obra de metáfora ou convénio!

Quisera, como tu, perto dos astros
voar, pensar, sem nunca estar de rastros
ante o poder... em plena solidão!

JOÃO DE CASTRO NUNES

João de Castro Nunes disse...

No título, corrijo "NAQUILA" para "AQUILA". Evidente desatenção JCN

Anónimo disse...

Que grande, que imenso soneto!
Só uma desatenção o não afirma!

Parabéns, JCN

Feliznatalpascoalino! JCN!

Atirai rosas às pedras!

E acendei as velas de Natais!

Já tenho Saudades, Saudades!

João de Castro Nunes disse...

Obrigado pelas rosas... que coloquei em graciosa jarra Vista Alegre dos primórdios, marca dourada! Muitíssimo obrigado! Dá gosto escrever sonetos para si, "saudadesdofuturo2! É dar pérlas... aos anjos! JCN