O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.
Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei, a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoa, chuvas, escuros — isso tenho eu em mim.
Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.
Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.
Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...
O dia deu em chuvoso.
12 comentários:
"Boca bonita da filha do caseiro, / Polpa de fruta de um coração por comer..." - É tão bom, porque tão raro, encontrar erotismo em Pessoa... Mais houvera e porventura seus dias não houvessem dado em tão chuvosos...
Trespassou-me, de futurar, este verso:
"Até amaria o lar, desde que o não tivesse."
Ter um lar, ter uma casa e ter uma habitação são coisas, na verdade, bem diversas.
O lar é como a pátria: está onde estejamos, como ausente, ou está saudosa ou desejosa em nós, sem nunca em nós se achar.
Por isso, ao lar sempre pagamos o tributo da saudade.
E nunca será ele demasiado.
A casa é onde moramos, e onde o ser mora, a fazer fé em Heidegger, que não sabemos se tinha fé.
Por isso, a ela sempre regressamos, duma ou doutra maneira.
E sempre a reencontramos de porta entreaberta, para nós.
A habitação, entretanto, é esse sempre exíguo espaço entre as quatro paredes de betão que em nós nos aprisiona: a alma
da pátria e o ser da morada, na ausência de tudo o que neles em nós não cabe.
Desta, apenas pagamos renda.
E já muito dói.
Alguém tem por aí um pouco de "sono, sem explicação"?
E alguém me indica onde fica o "azul da manhã"...?
É que " o dia deu em chuvoso" e, se bem que não seja elegante "ser susceptível às mudanças de luz" -"quem disse (...) que eu sou elegante?" - "hoje só quero sossego".
Farewell, Mr. Campos!
Que seria de Pessoa sem este sentimento de eterna perda do essencial!? Apenas um tipo que escrevia bem. O mesmo se poderá talvez dizer das nossas vidas: sem dilaceramento que seríamos senão animais saudáveis?
E sem a perda e o dilaceramento dos grandes autores, quem iríamos nós vampirizar?
Gárgula, meu caro,
isso em si deve ser defeito de fabrico ou ... será antes draculice frustrada, não?
Bom, também pode ser apenas "pedra-de esquinice crónica"...
É melhor ir ver isso...
Demais, vampiros são primos-irmãos dos anjos - dizem.
Não sei acredito.
(Nem em mim, nem em si...)
Bela escolha, como sempre... :)
um sorriso
Qual e o problema de sermos animais saudaveis?
Quem e que vampiriza? Os grandes autores, sendentos de vida devido as suas perdas e dilaceramentos, ou os leitores, sedentos de viverem atraves de paginas alheias aquilo que nao tem coragem de empreender na sua realidade?
Ja agora, o que aconteceu aos posts feitos entre dia 2 e 14?
Fugiram ...
lidia, se for antes antes lembras-
te-á de mim...
R. Reis
ana uma bala, as fp25, gora...
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