“Quando fores velha, grisalha, vencida pelo sono,
Dormitando junto à lareira, toma este livro,
Lê-o devagar, e sonha com o doce olhar
Que outrora tiveram teus olhos, e com as suas sombras profundas;
Muitos amaram os momentos do teu alegre encanto,
Muitos amaram essa beleza com falso ou sincero amor,
Mas apenas um homem amou tua alma peregrina,
E amou as mágoas do teu rosto que mudava;
Inclinada sobre o ferro incandescente,
Murmura, com alguma tristeza, como o Amor te abandonou
E em largos passos galgou montanhas
Escondendo o rosto numa imensidão de estrelas.”
Yeats
Haverá outra luz em nós que não o fugaz Bem? O Bem que nunca se instala e não tem ninho tem apenas asas? À maneira de Éluard? Que outro Bem como o Amor poderia perdurar dentro de uma alma peregrina? Ele que é alado e faz subir à solidão da mais alta montanha? Uma alma peregrina espera as estrelas para entregar o rosto, o seu e o do amado. Uma alma peregrina não o traz revelado nem descoberto. E, por isso não pode sentir senão abandono e, em si e nele, um rosto que mudava. Uma alma peregrina canta, com a voz que canta em Lacrimosa days of tears na composição de Zbigniew Preisner. E chora e ouve no vento a voz do rosto que se esconde sob todas as formas e de todas as formas. O rosto amado tem as formas todas do Universo e tem os sons de todos os elementos. Não é um rosto. É um universo. É por isso que a alma é peregrina: para o ver de todas as maneiras em todas as coisas. E tanto é o cansaço desse correr e dessa espera, enfim em tudo cheia e vazia, que as imagens do mundo nos hão-de querer destruir o corpo, como o rosto. E nesse instante murmurará a voz cadente e cadenciada do poema: da sua música e do seu canto. Porque lá onde há poeta, há já músico e cantor. Mas ele não se ouve. Canta e sente a indizível dificuldade de ser a luz que é, ao sê-la. E que só outros podem reconhecer luz, música e voz. Uma alma peregrina é a que passa e diz poemas às estrelas. É por isso que elas dançam. Mas não tem ninguém para contar e não conta. Canta e visita os mortos. As almas peregrinas são as que ainda lêem os poetas e ouvem os músicos e as esferas divinas.
Kuntá Hora, Republica Checa
2 comentários:
De que escondem o rosto estes anjos ? Do insuportável fulgor das almas peregrinas, tremeluzente do universal Rosto do Amado, tremeluzente da mais que luminosa treva divina !? Pois não serão as almas peregrinas, acima mesmo de anjos e arcanjos, a derradeira mediação para o sem nome !?...
Hipótese um de resposta:
Os homens prostram-se ante a beleza e a dor do rosto, os anjos ante a das almas e a luminosa treva divina. Os anjos escondem o rosto quando Deus recebe, enfim, as respostas que as almas peregrinas trazem às três perguntas com que (re)começaram a partir do Paraíso. As almas peregrinas têm que responder às seguintes perguntas: como te comportarás se Deus amar outrem mais do que a ti? Se tu amares outrem mais do que a Deus e se outro te amar mais do que Deus?
Resposta 1: Amando-O mais, ainda mais, porque se Deus a não amar como ama os outros é porque a sua alma ainda está longe do olhar directo de Deus que ama por proximidade, não por proximidade física, mas ontológica;
Resposta 2: Amando o amado como se ama o divino. Procurando o que no amado é o divino. Amando o que no amado está para além do rosto e da palavra. O seu silêncio, a sua distância em relação ao existente. Não há D(eu)s sem “eu”, nem “eu” sem Deus.
Resposta 3: Esse outro é Deus, noutro nome e noutro rosto. Porque nada do que é, é sem a presença obliterada de Deus.
Mas as almas peregrinas não o dizem assim: cantam poemas, cantam hipoteticamente o poema de Hölderlin nos jardins do cemitério:
“Queríamos separar-nos, tínhamos isso por bom e sensato;
Quando o fizemos, porque nos assustou, como homicídio, a acção?
Ai! Pouco nos conhecemos
Pois em nós reina um Deus.”
Ora, para ouvir estas respostas de modo poético e melódico nem os anjos, nem Deus precisam de rosto. Precisam da escuta. Porque o sem nome não se diz, mas escuta-se. As almas peregrinas sabem cantá-lo ao Amado e a Deus. Porque o canto e a música são a linguagem universal, a única com que o divino se sente em diálogo. As almas peregrinas são essa mediação não logogramática, mas logorítmica com eles: o Amado e o Divino. Um só em dois ou na multiplicidade dos seres.
Nota: os anjos e arcanjos podem descansar, baixar as asas como quem baixa os braços, porque quando o ritmo de Deus e das almas se reencontra não há nada mais para anunciar, relembrar, ou salvar.
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