O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Ó Senhor, por cortesia

Ó Senhor, por cortesia,

manda-me a moléstia!

Venha a mim a febre quartã,

a contínua e a terça,

a dupla quotidiana

com a grande hidropisia.

Venha a mim a dor de dentes,

a dor de cabeça e a dor de ventre;

no estômago dores pungentes

e na garganta uma angina.

Mal dos olhos e dor de flanco,

um abcesso do lado esquerdo;

tome-me a tísica ferozmente

e a todo o tempo o delírio.

Tenha o fígado inflamado,

o baço grosso e o ventre inchado

e os pulmões praguejados

com grande tosse e paralisia.

Venham a mim as fístulas

com milhares de carbúnculos,

e os tumores sejam tantos

que todo eu coberto seja.

Venha a mim a gota

(um mal nos testículos, se tal me afectar),

a disenteria seja praga

e hemorróidas me sejam dadas.

Venha a mim o mal de asma

e junte-se o do espasmo;

como a um cão me venha a raiva,

e nasçam-me úlceras na boca.

Venha a mim a epilepsia

até cair na água ou no fogo,

e que eu não encontre sítio

onde não esteja sempre aflito.

Venha a mim a cegueira,

a mudez e a surdez,

a miséria e a pobreza,

sempre de trapos vestido.

Tanto seja o fedor fedido

que não haja homem vivente

que não fuja de mim, o doente,

caído em tanta enfermidade.

Num terrível fosso,

Riguerci nomeado,

seja eu abandonado

por toda a boa companhia.

Gelo, granizo e tempestade,

raios, trovões e escuridão;

e não haja alguma adversidade,

que não me tenha em seu poder.

Os demónios infernais

sejam-me dados por ministros,

que me inflijam os males

que procurei com os meus pecados.

E até ao fim do mundo

dure esta minha vida

e depois, na separação,

dura morte me seja dada.

A minha sepultura encontro

no ventre dum lobo, devorado,

e os meus restos em esterco,

em monturos e em ruínas.

Milagre depois da morte

é que quem vier me traga a sorte

de ser fortemente acossado

por terribilíssimas visões.

Quem ouvisse nomear-me

deveria horrorizar-se

e com a cruz se assinalar,

para que nada de ruim se atravesse em seu caminho.

Senhor meu, não são bastantes

todas as penas ditas,

porque me criaste com amor

e eu matei-te com vilania.

Jacopone da Todi (1236-1306)

4 comentários:

Paulo Borges disse...

Um pedido de que nos aconteça tudo o que temos por pior ! Eis o melhor e mais libertador antídoto da prisão do medo e da aversão. Eis uma experiência de transcensão dos limites digna de nota, porque mais facilmente as procuramos (quando as procuramos) pela exacerbação e gratificação do desejo. Eis algo que nos soa estranho, filhos mimados da ideia de que tudo nos é devido e a tudo devemos ser poupados (mesmo quando a nada poupamos, os outros seres vivos, humanos e não-humanos, a natureza).
Só lamento, no grande espiritual e místico franciscano que foi Jacopone, que pagou com a prisão a denúncia dos vícios eclesiásticos e papais, o tom final de culpabilidade e auto-punição. Podemos encontrar práticas espirituais semelhantes, enquanto radicalmente libertadoras do apego ao eu, no "tonglen" e no "chöd" budistas tibetanos: no primeiro inspiramos e absorvemos em nós toda a dor e negatividade do mundo, transmutando-a em luz que irradiamos na expiração para o bem de todos os seres; no segundo, desmembramos mentalmente o corpo e oferecemo-lo num festim cósmico, convidando todos os seres, dos deuses aos demónios, para com ele se banquetearem. Em ambos os casos sinto que estamos mais próximo do que se considera que Cristo fez e faz: tomar em si toda a dor, mal e pecado do mundo. Decerto que não para se auto-punir, mas sim por amor e compaixão incondicionais por todos os seres. É pena que um certo cristianismo, teológico, institucional e antropocêntrico, centrado na ideia do pecado e da redenção do homem, tenha esquecido isso.

Joana Serrado disse...

Estes poemas são magnificos, Ricardo!

Anónimo disse...

Ò Senhor, por cortesia
concede mais desta poesia !

Isabel Santiago disse...

“Ouvisse eu agora os que me avisavam, de mim sorriam e pensariam:
Por nos recear, mais cedo este louco nas mãos nos caiu.
E não considerariam isso um lucro…


Cantai, ó cantai-me, terríficos Deuses Fatais, a canção
Profetizando desgraça, sempre de novo ao ouvido.
Sou vosso por fim, bem o sei, mas quero antes disso
Pertencer a mim mesmo e conquistar vida e glória.”

Hölderlin

Pede, o daimoníaco Hölderlin, o Terrível e pede também a ilusão. Sim, não parece que peça vida e glória e pertença de si como quem o pede por pedir e por não saber que não pode pedir isso…não era justo depois da primeira estrofe chamar-lhe presunçoso ou pleno da vanitas… mas é também tão aguda a necessidade da ilusão e da arte para nos consolar do corte com o uníssono som! E não é, por ser as duas coisas, o lamento trágico tão belo?! Já não somos trágicos…e por isso procuramos a redenção e o mimo. O trágico não morria do “não” e de arrependimento. Morria do “sim” à sua culpa. Que linda que é Antígona! A mais linda…a mais linda…a que só tão remotamente ouvi, iludidamente ouvi… Hölderlin ouviu-a até ao ilimitado. Que par trágico que não se salvou…mas ilumina a nossa noite sem fim! Como este poema…