O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Juliette

Adorno/Horkheimer
Juliette ou Esclarecimento e Moral
" Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o conhecimento e o plano, que imprime o carácter de uma inescapável funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas pausas para respiração, Sade realizou empiricamente um século antes do advento do desporto. As equipes desportivas modernas, cuja cooperação está regulada de tal sorte que nenhum membro tenha dúvidas sobre seu papel e para cada um haja um suplente a postos, encontram seu modelo exacto nos teams sexuais de Juliette, onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inactiva. No desporto, assim como em todos os ramos da cultura de massas, reina uma actividade intensa e funcional, de tal modo que só o espectador perfeitamente iniciado pode compreender a diferença das combinações, o sentido das peripécias, determinado pelas regras arbitrariamente estabelecidas. A estrutura arquitecónica própria do sistema kantiano, como as pirâmides de ginastas das orgias de Sade e os princípios das primeiras lojas maçónicas burguesas (a imagem cínica que a espelha é o rigoroso regulamento da sociedade de libertinos das 120 journées anuncia uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado. Mais do que o prazer, o que parece importar em semelhantes formalidades é o afã com que são conduzidas, a organização, do mesmo modo que em outras épocas desmitologizadas, a Roma dos Césares e do Renascimento, ou o barroco, o esquema da actividade pesava mais do que seu conteúdo." ...
"A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é considerado como disfarce, racionalização do instinto físico, "uma falsa e sempre perigosa metafísica" (71), como explica o conde de Belmor em seu grande discurso sobre o amor. Apesar de toda a libertinagem, os amigos de Juliette atribuem à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho excessivo, mas também um carácter excessivamente inócuo. A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como factos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por exemplo, o acto sexual dos selvagens australianos. A separação é abstracta. A metafísica falsifica, ensina Belmor, os factos, ela impede de ver o amado como ele é, ela nasce da magia, ela é um véu. "E eu não o arranco! É fraqueza... pusilanimidade. Vamos analisar, após o gozo, esta deusa que me cegava antes." (72) O próprio amor é um conceito não-científico: " ... as definições erróneas nos induzem sempre em erro", explica Dolmance no memorável 5º diálogo da Philosophie dans le Boudoir, "não sei o que é isto, o coração. Este é um nome que dou apenas à fraqueza do espírito" (73). "Passemos um momento, como Lucrécio diz aos "bastidores da vida" (74), isto é, à análise "e veremos que nem a exaltação da amante nem o sentimento romântico resiste à análise… é o corpo apenas que amo e é o corpo apenas que lamento embora possa reencontrá-lo a qualquer instante". O que é verdadeiro nisso tudo é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso. Através dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor é atacado em seu núcleo. Quando Juliette faz do louvor da sexualidade genital e perversa uma crítica do não-natural, do imaterial, do ilusório, a libertina já passou ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a felicidade mais celestial, mas também a mais terrena. O devasso sem ilusões que Juliette defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e à terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua fé no desporto e na higiene. A crítica de Juliette é dividida como o próprio esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos. ...
"Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não tentaram distorcer as consequências do esclarecimento recorrendo a doutrinas harmonizadoras. Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais íntima com a moral do que com a imoralidade. Enquanto os escritores luminosos protegiam pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação, aqueles proferiam brutalmente a verdade chocante. " ... É nas mãos sujas pelo assassinato das esposas e dos filhos, pela sodomia, pelos homicídios, pela prostituição e pelas infâmias que o céu coloca essas riquezas; e para me recompensar por essas abominações, ele as põe à minha disposição", diz Clairwil no resumo da vida de seu irmão (109). Ela exagera. A justiça da má dominação não é consequente a ponto de recompensar apenas as atrocidades. Mas só o exagero é verdadeiro. A essência da pré-história é o aparecimento do horror supremo no detalhe. Por trás do cômputo estatístico das vítimas do progrom, que inclui os fuzilados por misericórdia, oculta-se a essência que somente surge à luz na descrição exacta da excepção, ou seja, da mais terrível tortura. Uma vida feliz num mundo de horror é refutada como algo de infame pela mera existência desse mundo. Este torna-se assim a essência, aquela algo de nulo. Certamente, o assassinato dos próprios filhos e esposas, a prostituição e a sodomia, são muito mais raros entre os governantes durante a era burguesa do que entre os governados, que adoptaram os costumes dos senhores de épocas anteriores. Em compensação, quando estava em jogo o poder, estes ergueram montanhas de cadáveres mesmo nos séculos mais recentes. Comparada à mentalidade e aos actos dos senhores no fascismo, onde a dominação realizou sua essência, a descrição entusiástica da vida de Brisa-Testa (na qual, porém, é possível reconhecer aquela) cai ao nível de uma banalidade inofensiva. Os vícios privados são em Sade, como já eram em Mandeville, a historiografia antecipada das virtudes públicas da era totalitária. O facto de ter, não encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato ateou o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem Sade e Nietzsche. Diferentemente do positivismo lógico, ambos tomaram a ciência ao pé da letra. O facto de que insistem na ratio de uma maneira ainda mais decidida do que o positivismo tem o sentido secreto de liberar de seu invólucro a utopia contida, como no conceito kantiano de razão, em toda grande filosofia: a utopia de uma humanidade que, não sendo mais desfigurada, não precisa mais de desfigurar o que quer que seja. Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios morais da burguesia. "Onde estão os piores perigos para ti?", indagou um dia Nietzsche (110) "Na compaixão". Negando-a, ele salvou a confiança inabalável no homem, traída cada vez que se faz uma afirmação consoladora.

In: http://www.robertexto.com/archivo3/excurso2.htm

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