O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Canção da América

Há música na América,
meus senhores.

Nunca a ouviram?

Talvez os tambores da guerra
vos tenham roto os tímpanos,
assim como a superioridade moral
vos bloqueou as artérias.

Há música na América,
meus senhores
e é estridente.

Nunca a escutaram?

É a música do desmoronar
das nossas certezas
sob o peso das garantias.

É o som do chacoalhar
dos refegos gordos
da nossa saciedade.

É o eco do caminhar
dos esqueletos que acordam
do longo sono que lhes proporcionámos
nos armários da nossa História.

Há música na América,
meus senhores
e o seu vibrar é ambivalente.

Não o sentiram?

É o hálito agridoce
de um repentino despertar.

É a dor e a delícia
de uma puberdade revisitada.

É a estranheza e o fascínio
de quem vê o seu reflexo com novas lentes.

Há música na América,
meus senhores
e é um canto de sereia.

Não se aperceberam?

É a canção mestiça
que nos recorda
a tentação de Ulisses
e a indiferença a que foi votada
a donzela do mar,
que Andersen fez sacrificar
a própria vida
ao amar o inalcançável.

Há música na América,
meus senhores
e é uma canção pungente.

É a canção da sabedoria intemporal
que força para ser ouvida
entre os brados do auto-contentamento.

É a canção do amadurecer das eras
que tenta transparecer
entre o choro da ingenuidade violada.

Há música na América,
meus senhores,
um cântico dolente.

América,
das filhas dos homens a mais pura,
beija-nos o rosto, tu que olhas fascinada
para o falo com que injectámos o teu corpo virgem
com os nossos devaneios.

América,
das filhas dos homens a mais puta,
abraça-nos ternamente, tu que caminhas desajeitada
nos tacões altos que te emprestámos,
para que a queda seja mais doce
quando o chão se abrir sob os nossos pés.

E que a nossa garganta roufenha remoce
ao juntar-se á tua nesta canção embriagada.

Par ce que oui, Messieurs, Dames,
il y a de la musique
dans l’Amerique,
la merdique.



Bruxelas, Abril de 2004

1 comentário:

Anónimo disse...

Há música na América, sim, no mínimo Walt Whitman !... Mas não só !...