O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Espírito Santo - Espírito Universal


VI “Deus e o Diabo! Que primária contradição! Que intolerância de rudes extremos! Como se de permeio não brilhassem em nós as variadas cores que vão do animal ao Espírito. E os desejos que, passando por maus, tornam espaçosa a alma? E as virtudes que, passando por boas, a amesquinham numa maligna ingratidão à vida? Rejeitemos decididamente esse radicalismo indecente que nos exorta a dar à luz o que é da luz e às trevas o que é das trevas. Porque as trevas estão na luz como o Yin está no Yang; e a luz está nas trevas como o Yang está no Yin. A triste estupidez que quer estancar a vida no seio da sua maravilhosa indiferença pelo bem e pelo mal teria de dar na fábula ridícula do macho luminoso e da fêmea tenebrosa. Profanaremos as fontes da nossa origem? Não. Mister é resguardar os ouvidos dos açuladores das matilhas do bem e do mal. Brio nos seja desmistificar a insidosa querela que, fazendo de nós o campo de uma luta dramática, dá lugar à falsa virtude do padecimento: a cruz.”

VII “Avanço, pois, apressadamente para a ideia da descrucificação: antes que se gaste a flor do deus anoitecido na cruz. Porque este é o tempo de descobrir o mundo em boas relações com todos os deuses. E ao regresso de todos é devida a piedade, essa, sim, cristianíssima, de apearmos o seu doce irmão do suplício que os afugentou. Aos abutres de um culto necrófilo poderá ser agradável o cheiro a cadáver de um deus. Não ao olfacto divino apurado em aspirar os odores sadios da natureza. Os deuses mudam. Não morrem. A sua inconsútil solidariedade não tolera que um deles seja supliciado. Por isso perdemos todos os deuses se um deles encobrimos com o manto da morte. Tal é o mistério do Espírito Santo, que nos abandona quando molestamos uma das suas células.”

VIII “O sentido da vida é a própria vida, onde quer que ela termine. Como então o sacrifício? Esse gozo macabro da imolação ao céu. Ah!, se quereis que o céu e a terra não se detestem, atentai neste mal-entendido: o cristianismo da cruz é a sombra onde se perdeu o cristianismo da vontade de vida. Contemos com os olhos inocentes para verem que Cristo só deixou de dançar porque o monoteísmo inimigo do júbilo dos deuses cobriu o chão com espinhos. Que as mulheres santas tragam em seus vasos piedosos o bálsamo que cura os pés feridos pelos usurpadores da dança sagrada da vida! Que uma delas, a mais maternamente decidida a ocupar o mundo de pombas, falando as palavras da água profunda da origem, queira arrancar Cristo ao incessante desejo de morte que lhe forjaram os ímpios crucificadores! Eis as letras floridas da nova escritura: a obra de reconhecermos a luz pura e imortal do seu terno desejo de vida. Uma singela singularidade. Uma humanizada gentileza na egrégia comunidade dos deuses. Mas nada de confusões. Cristo não veio para nos induzir à vaidade do espírito de nos tornarmos mais morais. Apenas o amor passou a ser mais verdade desde que ele veio. Um deus romântico? Um paradoxo que faltava. Visto que os deuses são imparciais.”

IX "Não reneguemos o zelo com que a vida reclama que os deuses voltem como os pássaros às suas árvores. O seu regresso nos dará sinal da descrucificação. Ou o contrário, se quiserem. É o mesmo. Porque nenhum é sem o outro e todos são o dom de pensarmos todos os pensamentos, de sentirmos todos os sentimentos e a beleza de gozarmos todas as belezas. Não procures mais explicações. Os deuses são da poesia. Deixa aos teólogos o artifício de encotrarem o método perfeito de serem os coveiros das divindades que tecem. Néscia é a cerviz que se verga aos decretos da fé. Os deuses só nos pedem que estejamos na vida com a mesma naturalidade com que as flores estão na haste. Contente-te saber que eles são os múltiplos poderes do Espírito que não é maior nem menor por obra da tua fé. As chamas da lareira do mundo que o mantém aquecido. Propões-te a finalidade ecuménica da paz universal? Foste preso por isso? É bem feito. Não és melhor que o teu carcereiro, visto que como ele te fazes desentendido na questão decisiva: como atingir a paz com os olhos postos num só deus, se as guerras são fornecidas pela nossa fé na vitória sobre a serpente da fé dos outros? A única coisa que podes fazer pela paz é não desfraldares a insígnia da tua crença num só deus. Porque os homens só serão unidos quando acreditarem em todos os deuses. Assim subirão ao píncaro espiritual de onde se abrange todo o universo. A humanidade que se coroa a si mesma. O Pentecostes.”

Natália Correia, O Armistício (1985)

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