O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 13 de outubro de 2009

O natural e o artificial

Quando a noite cai
a cidade adormece.

O bulício é história
de outro mundo.

Os seus habitantes repousam
em paz.

Ergue-se o mundo
dos sonhos.

A cidade é então
sonhada.

Não existe propriamente
é miragem.

Calcorreá-la é calcorrear
pedaços de nada.

Como a noite e o vento a sua estrutura
arruinar-se-á.

Nada é eterno se não
o eterno.

Toda a construção humana é
artificial.

Por isso todas são como
palavras jogadas ao vento.

Compreendes o mundo
num relance.

Não consegues dizê-lo
mais que vê-lo e ouvi-lo.

Descobres quão vãs são
as palavras.

Discorres sobre o longe e o perto
pareces mais que um animal.

Mas a tua linguagem é
artificial.

Se um dilúvio houvesse nada restaria que não
a animalidade.

A palavra é já
um ganho.

O que te pode tornar vitorioso
pode tornar-te vencido.

Os opostos caminham
lado a lado.

Mas a Natureza não tem
oposto.

É o que é
incontingentemente.

Foi criada
para a eternidade.

Porque foi criada
pelo que é imortal.

E do mortal só saem
coisas mortais.

O ser que tudo pervade
distingue-se dos seus modos.

Assim o primeiro os fez
dois.

Nisto consiste a ciência:
em descrever a realidade.

Que as palavras te não levem a julgares-te
para lá da ciência.

Pois são artificialidades
isso em que te enredas.

Por isso são superficialidades
em que perdes o teu tempo.

Que coisa mais vã
desperdiçar a preciosidade do tempo.

E o tempo só vale
em função da preciosidade da vida.

E a vida só é preciosa
porque morre.

Tudo o que morre
deve ser tratado com cuidado.

Não tem tempo
a perder.

Cada instante deve ser aproveitado
ao máximo.

Pois é dádiva do eterno
este estar vivo.

E há mundo
por ver e viver.

À sua hora
tudo é chamado.

Mas nada conhece
a sua hora.

Há que estar desperto
para o mundo.

Porque o mundo é
a realidade.

Do sono profundo
nada se sabe.

Há que apreciar as preciosidades
do mundo.

Se puderes viajar
tanto melhor.

Se o não puderes fazer
imagina.

Que a tua imaginação
te leve longe.

Mas não discutas
palavras.

Não percas tempo
com jogos.

Pois a realidade é rica
demais.

E os jogos são como
o vento.

De facto toda a vida é
como o vento.

E só a novidade
permanece.

E esta consiste
nas constantes mortes e nascimentos.

No constante balancear entre
a alegria e a tristeza.

Na renovada percepção
a cada piscar de olhos.

Esquece o pensar e
automatiza os teus actos.

Harmoniza-te com
o eterno.

Cada coisa a seu tempo:
tempo para viver e tempo para morrer
tempo para a infância e tempo para a velhice.

Mas não te percas muito
com palavras.

Usa-las com sabedoria
para a ciência.

Pois o seu bom uso trar-te-á
alegria.

Estarás de acordo com
o eterno.

Nisto consiste o eterno:
em estar para lá do vento.

5 comentários:

platero disse...

Gostei muito
adorava ter sido eu a escrever
abraço

afhahqh disse...

Obrigado, Platero. Um abraço.

João de Castro Nunes disse...

Se fosse mais conciso... não se perdia nada! JCN

guvidu disse...

mais conciso, JCN? acho que para a profundidade do sentido está objectiva, sem perder beleza...já estou como o Platero, quem me dera ter sido eu a escrever mas, pelo menos, tenho a sorte de conhecer a paisagem dessa cidade e o autor desta reflexão-poema.

bj grnd em ti
(foto da cidade para breve ;)

guvidu disse...

sorriso tb para Platero e JCN