terça-feira, 31 de março de 2009
Agostinho da Silva: por novos "frades-políticos"
A “base de tudo”, porém, terá de ser a interiorização do combate, já não movido a qualquer adversário exterior, mas ao que em si menos vale, a luta que visa não a conquista do poder, mas a “conquista e domínio de si mesmo”, pela via única que “têm apontado a experiência e os séculos: o caminho da ascese mais rigorosa e absoluta, da oração contínua e do amor dos homens em Deus e por Deus”. É a acção interior, mais difícil e exigente, que torna verdadeira e benéfica a intervenção exterior.
- Excerto da minha comunicação, "Política e Espiritualidade em Agostinho da Silva", a apresentar no Colóquio do dia 3 de Abril, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Para quem a palavra "Deus" seja de menos ou demasiado, como para mim, pode substituir por "ausência de sujeito e objecto". "Oração contínua" também se pode substituir por absorção contínua nessa mesma ausência. Os budistas podem chamar-lhe vacuidade, desde que não se apeguem a esse conceito, mera bola de sabão, como todos os demais.
Teodiceia
- Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo [1945], in Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 235.
segunda-feira, 30 de março de 2009
Agostinho da Silva - O legado, 15 anos após a sua morte - 6ª feira, 3 de Abril, Anfiteatro I da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
do físico ao metafísico
no Outono triste da humanidade
espero o certo momento da verdade
para fugir do profundo deserto
que é esta vida de carne e osso
mil passos perdidos no tempo cheio
quando me liberto e quando posso
nascer como flor e sair deste meio
para obter o meu ultimo perfume
para ser um esplendoroso lume
soltando o pólen do meu pensamento
lá sobre tudo e lá para dentro
das almas amadas, doce costume
ser desejado e um desejo no vento.
Madragoa 29.III.09
Provocações agostinianas: da filosofia e da ciência como "substitutos do amor para pessoas fracas"
- Agostinho da Silva, Sete Cartas a um Jovem Filósofo [1945], in Textos e Ensaios Filosóficos I, p. 258.
Celebram-se 15 anos da morte de Agostinho com um Colóquio, 6ª feira, dia 3 de Abril, no Anfiteatro I da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Um pensador e um pensamento que não são "para pessoas fracas".
domingo, 29 de março de 2009
A oiro a Primavera de Klimt
Klimt virá porque terá de vir, e sobre o ouro dos vestidos derramará o pó de estrela com que vestiremos anjos que, saídos da jarra onde estiveram a secar as asas, vieram do jardim para outro jardim. Nele vêem-se os que em vigília são sentinelas. Sentinelas de pé no alto da torre, a receber o vento nas faces; a brisa nas pálpebras. No jardim que não há vêem-se no alto das quatro torres, anjos gigantes a devolver o grito mudo ao som do horizonte, a soltar as suas plumas no pano azul da seda deste céu e deste véu. Na torre as damas de preto são sons ouvidos ao longe, devolvidos em eco ao gesto de uma flor. Uma flor frágil no seu caule estreito. A sua taça de mel para as abelhas e os pássaros, um aclarar na voz calma do poeta.
Em Nome dos Velhos Tempos...
Porque tenho razão.
Sabes que tenho razão.
Mas não tens coragem de o dizer!
Porque defendes a tua felicidade como um cão defende um osso...
Ah mas como a vossa felicidade me mete nojo...
O vosso apego à vida de que é preciso amar a todo o custo.
Parecem cães... que lambem tudo o que encontram...
É assim que pensam, não é?
Pois eu não.
Eu exijo tudo.
Tudo imediatamente.
E se não for assim, recuso.
Não quero ser modesta.
Não quero contentar-me com pouco.
Quero ter a certeza de tudo.
Ou então, Morrer!
Grupo de Teatro Honoris Causa
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Ainda no rescaldo do Dia Mundial do Teatro...
Dedico este texto que não escrevi a todos os actores que não o leram.
Mas também a todos os que não o ouviram dizer em voz alta, num palco, com luzes, marcações, com pessoas sentadas à espera da próxima palavra e do próximo gesto.
Não fui ao teatro, comemorei o dia com o visionamento da entrevista que o Ricardo Pais deu na Câmara Clara, RTP 2... Foi uma programa muito interessante, como sempre são as Câmaras Claras da Clara.
Tenho saudades de ir ao teatro. Mesmo muitas. Há uns anos ia ao teatro como quem vai ao cinema. Prefiro o teatro e tenho mais bilhetes guardados do que de cinema. Puff!!! O Teatro é uma paixão para mim. Nunca fiz teatro, nem pretendo vir a fazer, não tenho o mínimo talento. Mas encanta-me. Fico facilmente sentada a ver um espectáculo. E gosto também dos bastidores, do que está por trás das cortinas.
Sobre o teatro já escrevi mais de 100 páginas.
E, na adolescência, defendi uma causa, lutei por ela como sabia lutar... escrevendo o que sentia. Na altura, o Parque Mayer estava para ser demolido, a Maria João Abreu e o José Raposo (entre muitos outros) estavam empenhados em impedir que isso acontecesse.
Eu achava triste demolir aqueles edifícios no centro de Lisboa. Edifícios que eram salas de espectáculo antigas, onde já tantos valores do teatro tinham representado, tinham nascido, tinham crescido. Eu achava triste que os teatros não pudessem ser recuperados para que os actores pudessem voltar a encher aquelas salas. Achava triste companhias e grupos de teatro não terem uma sala para representar em condições e estarem sujeitos a garagens e espaços arrendados, terem que ensaiar em espaços não apropriados.
Achava aquele espaço lindo, cheio de alma e... vazio. Fechado, a cair de podre, em ruínas. Era uma injustiça! Três salas de espectáculo com 'estória' para contar e só uma (e por teimosia) continuava activa, ainda que as condições não fossem, de facto, as melhores.
Nessa altura da minha adolescência, decidi, juntamente com uma grande amiga que sonhava ser actriz, que íamos tentar ajudar. Reunimos um abaixo-assinado para tentar impedir que o Parque Mayer fosse demolido. E escrevemos duas cartas que enviamos ao ministro da cultura e ao presidente da câmara de Lisboa da altura... Mandámos essas cartas semanas a fio. Sempre a mesma carta, todas as semanas.
Depois de ser anunciado um mega projecto, depois de se imaginar um casino e uma feira popular... O Capitólio, o Variedades e o Maria Vitória... continuaram rodeados de estacionamento pago.
Vamos ver o futuro. Mas gostava de imaginar aquele espaço cheio de vida e aquelas três salas cheias de actividade, entregues a companhias e a grupos de teatro (podia até ser por concurso, como o Governo tanto gosta...) Cada teatro podia ter objectivos diferentes, um podia ser experimental, outro podia ser escola ou grupo independente, ou... companhia residente, ou... podiam fazer teatro para a televisão, por exemplo... chegaram a fazer isso no Variedades, salvo erro.
Era maravilhosos. Mas são sonhos meus, já perceberam... se me leram até aqui.
Tenho saudades de ir assistir ao mesmo espectáculo de teatro duas vezes seguidas na mesma noite :)
sábado, 28 de março de 2009
Klompen / Socos
Klompen
Gostava de te dizer como são os meus passos que me afastam de ti.
Como não vivo para ti, nem escrevo para ti.
Como não penso no meu amor, nem te amo em pensamento.
Como não te vejo nos lugares onde nunca estivemos juntos.
Como tu não me pisas quando me obrigas a seguir os teus passos,
ou como não me calcas quando descalças os pés às leonores
que bebem da tua fonte.
Como caminho firme e confiante pelos prados holandeses, entre as vacas e a lama,
e me afasto cada vez mais de ti.
Como os meus passos se afastam dos teus passos, correndo para longe, longe,
esperando que o mundo seja realmente redondo, e não plano,
e possa, um dia, chegar às tuas costas, tapar os teus olhos e dizer-te
mijn thuisland is niet meer mijn taal.
Socos
Ik wilde je zeggen hoe mijn stappen zijn die mij van je verwijderen.
Hoe ik niet leef voor jou, niet eens schrijf voor jou.
Hoe ik niet denk aan mijn liefde en je evenmin bemin in gedachten.
Hoe ik je niet zie op de plaatsen waar we nooit samen waren.
Hoe je me niet vertrapt wanneer je me dwingt je stappen te volgen,
of hoe je me niet plet wanneer je de schoenen uittrekt
van de leonoors die drinken uit jouw bron.
Hoe ik ferm en vol vertrouwen door de Nederlandse weiden loop,
tussen koeien en modder, en me steeds verder van je verwijder.
Hoe mijn stappen zich verwijderen van jouw stappen, rennend naar de verre verten,in de hoop dat de wereld werkelijk rond is, en niet plat,
en dat ik op een dag achter je sta, mijn handen op je ogen leg en zeg
a minha pátria já não é a minha língua.
Joana Serrado, Emparedada/ Uit de Muur, Uitgeverij de Passage, 2009, p. 32, 33
milagre da vida
o poeta lambe-lhe a placenta
levanta-o com pequenos toques de cabeça
o poema ensaia
um primeiro passo
tropeça
na luz coada
que vem da madrugada
sexta-feira, 27 de março de 2009
Mensagem do Dia Mundial do Teatro
Todas as sociedades humanas são espectaculares no seu quotidiano, e produzem espectáculos em momentos especiais. São espectaculares como forma de organização social, e produzem espectáculos como este que vocês vieram ver.
Mesmo quando inconscientes, as relações humanas são estruturadas em forma teatral: o uso do espaço, a linguagem do corpo, a escolha das palavras e a modulação das vozes, o confronto de ideias e paixões, tudo que fazemos no palco fazemos sempre em nossas vidas: nós somos teatro!
Não só casamentos e funerais são espectáculos, mas também os rituais quotidianos que, por sua familiaridade, não nos chegam à consciência. Não só pompas, mas também o café da manhã e os bons-dias, tímidos namoros e grandes conflitos passionais, uma sessão do Senado ou uma reunião diplomática – tudo é teatro.
Uma das principais funções da nossa arte é tornar conscientes esses espectáculos da vida diária onde os actores são os próprios espectadores, o palco é a plateia e a plateia, palco. Somos todos artistas: fazendo teatro, aprendemos a ver aquilo que nos salta aos olhos, mas que somos incapazes de ver tão habituados estamos apenas a olhar. O que nos é familiar torna-se invisível: fazer teatro, ao contrário, ilumina o palco da nossa vida quotidiana.
Em Setembro do ano passado fomos surpreendidos por uma revelação teatral: nós, que pensávamos viver em um mundo seguro apesar das guerras, genocídios, hecatombes e torturas que aconteciam, sim, mas longe de nós em países distantes e selvagens, nós vivíamos seguros com nosso dinheiro guardado em um banco respeitável ou nas mãos de um honesto corretor da Bolsa - nós fomos informados de que esse dinheiro não existia, era virtual, feia ficção de alguns economistas que não eram ficção, nem eram seguros, nem respeitáveis. Tudo não passava de mau teatro com triste enredo, onde poucos ganhavam muito e muitos perdiam tudo. Políticos dos países ricos fecharam-se em reuniões secretas e de lá saíram com soluções mágicas. Nós, vítimas de suas decisões, continuamos espectadores sentados na última fila das galerias.
Vinte anos atrás, eu dirigi Fedra de Racine, no Rio de Janeiro. O cenário era pobre; no chão, peles de vaca; em volta, bambus. Antes de começar o espectáculo, eu dizia aos meus actores: “Agora acabou a ficção que fazemos no dia-a-dia. Quando cruzarem esses bambus, lá no palco, nenhum de vocês tem o direito de mentir. Teatro é a Verdade Escondida”.
Vendo o mundo além das aparências, vemos opressores e oprimidos em todas as sociedades, etnias, géneros, classes e castas, vemos o mundo injusto e cruel. Temos a obrigação de inventar outro mundo porque sabemos que outro mundo é possível. Mas cabe a nós construí-lo com nossas mãos entrando em cena, no palco e na vida.
Assistam ao espectáculo que vai começar; depois, em suas casas com seus amigos, façam suas peças vocês mesmos e vejam o que jamais puderam ver: aquilo que salta aos olhos. Teatro não pode ser apenas um evento - é forma de vida!
Actores somos todos nós, e cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a
transforma!
Augusto Boal
quinta-feira, 26 de março de 2009
quarta-feira, 25 de março de 2009
O que é cada um de nós?
- Fernando Pessoa, Carta de 5 de Janeiro de 1914 a Teixeira de Pascoaes, in Correspondência. 1905-1922, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p.107.
Não concordo, embora seja belo. Na verdade, num certo sentido, só publico aquilo com que não concordo. A perfeição nunca é adiada nem adiável. E muito menos para alguém. Muito menos para "Deus". A perfeição é.
terça-feira, 24 de março de 2009
Viagens
Entrevista com David Bohm
segunda-feira, 23 de março de 2009
Curso "Fernando Pessoa" na Galeria Matos Ferreira
25 de Março a 20 de Maio / 2009
A GALERIA MATOS FERREIRA promove em parceria com a ASSOCIAÇÃO AGOSTINHO DA SILVA um Curso sobre FERNANDO PESSOA.
OBJECTIVO
O curso partirá de uma abordagem plural e interdisciplinar, filosófica e literária, a alguns aspectos da obra de Fernando Pessoa. Dividir-se-á em três blocos temáticos, leccionados por Paulo Borges, Renato Epifânio e Duarte Braga. Dois dos módulos serão constituídos por três sessões, sendo o segundo módulo constituído apenas por 2. Com o recital de CARMEN FILOMENA, serão nove sessões ao todo.
PROGRAMA
MÓDULO I - Ilusão e Libertação, por Paulo Borges (25 Março, 1 e 8 Abril):
· Pré-existência e saudade na poesia inglesa;
· O vazio do sujeito e o jogo onírico/i-lusório do mundo (poesia ortónima e Bernardo Soares);
· O “Tratado da Negação” e “O Caminho da Serpente” (Raphael Baldaya).
MÓDULO II - Pessoa, o filósofo do outro, por Renato Epifânio (15, 22 Abril):
· Pessoa, o filósofo do "outro" do pensar;
· Pessoa, o filósofo do "outro" de todo o ser;
· Pessoa, o filósofo do "outro" de si próprio;
· Pessoa, o filósofo do "outro" de nós mesmos.
RECITAL DE POESIA DE FERNANDO PESSOA, por CARMEN FILOMENA (29 Abril).
MÓDULO III – Projecto poético e heteronímia, Duarte Braga (6, 13 e 20 Maio):
· A questão da Nova Poesia Portuguesa, a profecia do supra-Camões/supra-Portugal e as Índias Espirituais;
· Alberto Caeiro: ignorância e revelação; o poema VIII de Guardador de Rebanhos e a leitura agostiniana;
· Álvaro de Campos e o sensacionismo.
HORÁRIO, INSCRIÇÕES E PREÇO
As aulas serão realizadas em período pós-laboral às quartas-feiras, de 25 de Março a 20 de Maio, inclusivé, ou seja nos dias 25 de Março, 1, 8, 15, 22 e 29 de Abril, e ainda nos dias 6, 13, 20 de Maio, das 19h00 às 20h30.
O Curso tem um limite máximo de 20 (vinte) participantes. O seu custo é de EUR 90,00 (noventa euros), podendo ser pago em duas prestações de EUR 45,00 (quarenta e cinco euros) cada. A primeira prestação deve ser paga a 25 de Março e a segunda com cheque pré-datado para 29 de Abril. Inclui material de apoio.
Os interessados podem-se inscrever através do Tel 21 323 00 11, do Tlm 96 295 37 22 e do Email: mfgaleria@netcabo.pt. Em qualquer das opções deverão indicar sempre o número de telemóvel para eventual contacto.
Onde se está antes de lá chegar, onde se permanece depois de sair de lá
"Encaminharam-se para um imenso castelo, no frontispício do qual se lia: 'Não pertenço a ninguém e pertenço a todo o mundo. Vós aí estáveis antes de lá entrar e vós aí estareis ainda quando de lá saireis'"
- Diderot, Jacques le Fataliste et son Maître.
Edmond Jabès: Deixei uma terra que não era a minha
pour une autre qui, non plus, ne l'est pas.
Je me suis réfugié dans un vocable d'encre
ayant le livre pour espace ;
parole de nulle part, étant celle obscure du désert.
Je ne me suis pas couvert la nuit.
Je ne me suis point protégé du soleil.
J’ai marché nu.
D'où je venais n'avait plus de sens.
Où j'allais n'inquiétait personne.
Du vent, vous dis-je, du vent.
Et un peu de sable dans le vent…
tendo o livro como espaço;
palavra de lugar nenhum, sendo aquela obscura do deserto.
Não me cobri durante a noite.
Não tentei nunca proteger-me do sol.
Caminhei nu.
De onde eu vinha, não havia mais sentido;
Aonde eu ia não inquietava ninguém.
Vento, digo-lhes, vento.
E um pouco de areia no vento...
domingo, 22 de março de 2009
O Estrangeiro
- Hans Jonas, La Religion Gnostique, Paris, Flammarion, 1978, p.73.
sábado, 21 de março de 2009
sexta-feira, 20 de março de 2009
Do mar e das flores...feliz Primavera!
Ao longe, um sussurro de mar em jeito de prece. E assim conta a lenda que o mar amava as flores e que as ondas eram a sua tentativa para as beijar. Contudo, não as alcançava e daí que o marulhar fosse a sua canção de embalar. Secretamente, escutam-na as flores que de mil e uma cores, escondem as suas dores. No entanto, choram quando sentem que a água de sua raízes tem o sal de uma lágrima de mar, corres-lhe a nostalgia de um amor perdido, vasto, tão imenso que lhes (en)canta.
É por isso que em orvalho, de amanhacer e anoitecer, as flores se banham e purificam em toque cristalino de reflexo arco-íris; porque se projectam , em sonho, e abraçam o mar. As mais ousadas, soltam as suas pétalas e voam, livres, no vento. Fazem-se mágico momento. Sonham, fundem-se e são...fragmento de amor que se superou para além da dor.
Por vezes, temos de soltar as nossas pétalas para que possamos também voar e o nosso amor alcançar. Ainda que pareça tão longe, impossível e ingénuo, tudo é possível quando é Primavera em nós, em processo de renascimento e reflorescimento contínuos.
quinta-feira, 19 de março de 2009
Contemplação
Contemplação
Vejo passar o tempo, o rio calmo
Onde se afoga o desespero humano;
Imagino-lhe a foz, no trágico oceano
Da morte;
E a nenhum Sul ou Norte
Consciente
Consigo vislumbrar-lhe a lírica nascente.
Já caudaloso em cada latitude,
Em vão procuro a fonte
Que lhe dê começo:
A madrugada duma telha de água,
Hesitante
Antes do grande dia
Que toda a madrugada principia.
Ganges sagrado do desassossego,
Vem dos confins do nada
Em direcção ao grande mar vazio...
E à tona da barrenta omnipotência
Leva a cega inocência
Naufragada
De cada vida nele purificada.
Miguel Torga, Câmara Ardente.
"...tudo tem a Vertigem por essência"
- Raul Leal (Henoch), Sodoma Divinizada. Leves reflexões teometafísicas sobre um artigo, in Sodoma Divinizada, organização, introdução e croologia de Aníbal Fernandes, Lisboa, Hiena Editora, 1989, p.75.
Em homenagem a este imenso desconhecido do pensamento português, amigo próximo de Fernando Pessoa, que o defendeu perante o moralismo da "canalha", desigando-o como "alto génio especulativo e metafísico, lustre, que será, da nossa grande raça" - Ibid., p.125.
A Pessoa
e apesar disso sou um exilado da terra e do mar
sem falar do céu, com pés inchados.
Não falo nenhuma língua e não tenho nenhuma língua
somente um músculo sangrento e inchado
tanto de tentar falar e chupar a essência das coisas
todas perdidas como eu no espaço e no tempo
e no espaço do tempo que chamamos a vida.
Não, não falo nenhuma língua suficiente
pois sou incapaz de natureza e cheio do orgulho amargo
das minhas próteses e não falo a língua do ódio
pois a minha raiva é uma onda sem espuma
que não quebra as rochas da terra … Ai! Ai! Ai!
Veja as ondas do mar serena, raiva imortal da água e da lua.
Não, sou nada, nem um grau de areia
pedra incluído no ciclo eterno e esplendoroso das coisas
sou nada pois não sou nem coisa nem espectro
sou exilado como o vento mas somente no vento
uma pluma preta com a cor do asfalto e com o cheiro do alheio
do estrangeiro inimigo dos costumes quotidianos
que causa o medo nas ruas escuras das cidades
angustia tenho também, neste caminho sem fim.
Não, sou nada e não tenho nada
pois tudo é dono de mim, sou escravo da minha liberdade
e prisioneiro de uma ética duvidosa da verdade fugitiva
da tolerância cheia de crueldade com dentes e olhos
com palavras antropófagos e corpos carnívoros
com o fome das almas que se escondem e que se recusam
para o canto mais distante da larva mortal.
Palavras e palavrões destinados para confundir os povos
para sempre, para poder sobreviver como parasitas
para se multiplicar nas bocas humanas com mal cheiros.
Não, sou nada e apesar disso não falo nenhuma língua
pois as línguas falarão de me e me falam e me abrasam
não falo a língua do amor mas a minha carência de querer amor
é como um remoinho, um buraco preto, um querer que destrua tudo
o próprio ser e tudo que é e que quer ser, mesmo aqui e agora mesmo.
Não, sou nada e o nada que sou é como o nada
e o que eu sou, sendo nada, sou eu mesmo…Ai! Ai! Ai!
Lisboa 22.01.09
Seminário "O que é a vacuidade?"
Sede da União Budista Portuguesa
por Paulo Borges
O seminário visa introduzir à compreensão do que se designa como "vacuidade" (shunyata), noção-experiência fundamental e específica da tradição budista. Sujeita a muitos mal-entendidos, inconfundível com o mero "vazio" ou o "nada", a visão budista considera-a expressão da própria natureza primordial e última da mente e dos fenómenos, do indivíduo e do mundo. A sua compreensão e experiência conduz à extinção das causas do sofrimento - conceitos, emoções perturbadoras, karma - , à visão das coisas como são e ao desabrochar de uma sensibilidade, amor e compaixão incondicionais. Ou seja, ao Despertar.
Local: União Budista Portuguesa, Calçada da Ajuda, 246, 1.º dt.º, Lisboa
Contacto e inscrições: 21 3634363 (das 15h-21h); tlm 918728979 (deixar p. f. a mensagem com o nome e o contacto)
Email: sede@uniaobudista.pt
Indicações:Autocarros Carris 732, 729, Eléctrico 18 - sair em frente ao Jardim Botânico da Ajuda.
10º Encontro Inter-Religioso de Meditação
Centro de Estudos da Ordem do Carmo - R. St. Isabel, 128-130 (ao Rato)
É com muita alegria e empenho que a Comunidade Mundial de Meditação Cristã anuncia a realização do próximo Encontro Inter-religioso de Meditação.
Assim, convidamos todos os membros da CMMC, bem como os membros de outras tradições religiosas a virem viver de novo a experiência de procurarmos, no silêncio, e em profunda comunhão entre todos, o encontro com o mais sagrado e o mais pleno.
"Aprender a dizer o nosso mantra deixando para trás todas as outras palavras, imagens e fantasias, é aprender a entrar na presença do Espírito que nos habita em amor." John Main
A sessão iniciar-se-á às 19,30h, com breves leituras de textos espirituais de cada tradição, intervaladas por 2 min. de silêncio, seguindo-se 25 minutos de meditação silenciosa. Terminaremos com uma pequena prece colectiva pela paz e pela união entre todos.
A Comunidade Mundial de Meditação Cristã
Email: mcristinags@netcabo.pt ; manuel.lancastre@gmail.com
Tel: 218488259/Tm: 9194505775
http://meditacaocrista.weebly.com/index.html
O sol O muro O mar
destroçado pelas fúrias.
Pequenas cidades: muros caiados e recaiados para
manter intacto o alvoroço do início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento
azul sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência
intensa como o arfar de um toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos
pátios dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e
atentos: silêncio vigiando
o clamor do sol sobre as pedras da calçada.
Diz-se que para que um segredo não nos devore é
preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço
ou de um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para
o exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas
ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte,
os seus hábitos, o seu violento azul, o espesso
amarelo, a veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa -- tinta que
se despinta -- porta aberta para o pátio de chão
verde: soleira do quotidiano onde a roupa seca e
espaço de teatro. Mas também pórtico solene aberto
para a vida sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de
manchas nebulosas e sonhadoras.
A porta desenha sua forma perfeita à medida do
homem: as cores do cortinado de fitas contam a
nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do
homem.
No promontório o muro nada fecha ou cerca.
Longo muro branco entre a sombra do rochedo e
as lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto
de escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do
lugar sagrado.
Sophia de Mello Breyner Andresen
Ilhas, 1989
de Obra Poética III, Caminho, 2ª edição; 1996
João Aguardela despede-se da Música Portuguesa...
Uma perda de quem foi um ganho para a Música Portuguesa!!!
Um bem-haja, e até sempre.
Obrigada, João Aguardela.
quarta-feira, 18 de março de 2009
O Sal das Lágrimas
Parábola do professor
Filósofos e poetas ao poder
Filósofos e poetas ao poder
Segundo os impulsionadores do Movimento Internacional Lusófono (MIL) em Barcelos, apresentado na noite da passada segunda-feira na biblioteca, chegou o tempo do poder político ser constituído por filósofos e poetas. A razão? Simples: “Foram eles que deram os grandes passos da Humanidade. Já não são os proletários de todo o mundo que se têm de unir, mas os filósofos de todo o mundo!”. As palavras são de José Lourenço, que se propõe influenciar a sociedade civil com as teses de Agostinho Silva, Platão ou Thomas More, em substituição dos deputados, “que são uma classe completamente destituída”, e, por isso, o MIL tentará fazer chegar as suas ideias à Assembleia da República… embora a criação de um partido político seja, como o próprio reconheceu, a morte do próprio movimento. Mas não deixou de assumir que o movimento quer “mexer com estes partidinhos que andam a chatear”. Não podemos aceitar que sejamos governados por uma maioria absoluta de apenas 15 por cento da população”.
“Estamos a ficar fartos!”, avisou Lourenço, defendendo, ainda que, ao contrário do que aconteceu nas recentes convulsões sociais na Grécia e França, não se deve “queimar pneus e fazer revoluções… devemos é queimar quem nos anda a queimar!”.
Antes da apresentação, os escritores Flávio Lopes da Silva e José Torres deram um toque ainda mais singular à noite. O primeiro emprestando um texto, declamado por Armindo Cerqueira, sobre as “sete mil razões de estar de mal com Portugal”, um país que vive a sonhar com os “craques da bola”. O segundo, criticando o Acordo Ortográfico, dizendo que movimentos como o MIL fazem muito mais pela língua portuguesa, por ser, ao contrário do oficial, um “acordo das diferenças. Quanto mais diversa for a língua mais rica ela é”.
Terminando, de forma optimista e contra miserabilismos em relação ao futuro de Portugal, lembrando Pessoa: “Quem gosta deste país há-de fazê-lo cumprir dia-a-dia”.
Publicado no Jornal:
Barcelos Popular
"Deus, o único ateu perfeito"
terça-feira, 17 de março de 2009
Da rosa e do (a)mar
da orla do silêncio, a companheira noite que nada mais fazia do que render-se à solidão dos tempos, ao vazio do espaço e ao amor, do ser, caminhante.
o quase-tudo em vestígio de nada quedava-se em lágrima, murmúrio, queda de anjo, cujas asas são ondas de mar, calmo e revolto, azul e verde, cuja espuma toca a face de ente perdido.
escuto devaneio...recolho-me em suspiro...e exalo o odor de um perfume de rosa a desabrochar em coração de (a)mar.
Camadas de Fé
segunda-feira, 16 de março de 2009
O Dissipador de Rebanhos
Que vemos nós senão o que ver cremos?
As coisas que não sentimos mas pensamos,
Sobretudo quando só a sentir
Sem pensar nos julgamos?
Pois onde já se viu coisa alguma
Ou alguém que a visse,
Senão pensando haver algo ou alguém
Conforme o crente humano rebanho
Religioso ou não
Unânime sempre o disse?
Pobre de ti que te crês ver
Sem estar a pensar.
Pobre de ti que julgas saber ver quando vês
Enquanto insciente em tudo concebes
O imaginário ente que te crês.
Desperta, desprende-te, desaprende-te!
Não pretendas livrar as partes do todo fazendo um todo de cada parte.
Não suponhas algo existir claramente,
Pois “algo” “existir” “claramente”
É o mais obscuro e místico poetar
Do mais confuso e de-mente do-ente.
Liberta-te de guardar rebanhos.
Desadoece de adoeceres outros por te pretenderes são.
Deixa de te fazer de criança, simples, inocente.
Deixa-te.
Larga-te da mão.
Larga-te da mão.
Pasma-te de te ver a sentir o que pensas.
Arrepia-te de dizer que não sabes o que amas
Mas sim o que é amar.
Abandona o ocultismo de falares de “coisas”, “existência”,
“Fora”, “dentro”.
Desilude-te da “eterna inocência”
De tanto pensando pensares “não pensar”.
Pois, ó intérprete, por isso falso, da natureza que não há,
Ó grande mestre de prestidigitação,
Ó grande ditador de tudo ditando nada pretenderes ditar,
Que és e as coisas que pensando sentes
Senão bolas de sabão
Que sempre instantâneas rebentam antes de as soprar?
Rebentam:
Explodem o ar.
- Fragmento de O Dissipador de Rebanhos.
domingo, 15 de março de 2009
Diálogos II
“Partir. Partir novamente. (…) Pois afinal não somos donos de nada. O que criamos separa-se logo de nós. As nossas obras ignoram-nos, os nossos filhos não são nossos filhos. Aliás, nada criamos. Nada de nada. Os seus dias estão para o homem assim como as peles estão para a serpente. Reluzem por momentos ao sol e depois desprendem-se dele. Deves então partir uma segunda vez, afastar-te ao teu primeiro afastamento. O mundo quer o sono.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 103
Encontraste esta pena e deixaste-a ante um qualquer olhar. Caiu também no meu. O meu olhar esvaziado de rostos presentes. Chorei. Na humidade das pestanas molhadas estavam contidas gotículas guardadas de outros olhares, de outras águas onde permanecem, como sons retinidos pelas cordas de um violino envelhecido, rostos que são pura vibração. As lágrimas são fontes por onde correm rostos desaparecidos e outros, pelo canto da saudade, por nós recuperados. Nas lágrimas há uma imagem, um reflexo em espelho, dos antepassados. Esta pena escreveu Um Deus à Flor da Terra e na humidade das suas pontas estão as lágrimas de Francisco de Assis, o santo que não se perdeu da infância do tempo nem da minha infância fora do tempo. A infância do tempo comunga com a origem, e uma certa forma de dizer e escrever, – há um escrever que é apenas dizer, uma passagem pelo sentido sem nele ficar para nele residir como morador, mas para ser apenas um hóspede na linguagem que dela se desaloja e parte – o abandono da alma. Em alguns seres, como Francisco de Assis, a alma é uma pena enterrada e desenterrada, uma vida emplumada e uma morte desemplumada. A alma de um santo, como a de um louco, não conhece a opção, apenas a conjunção. Um santo é um homem e um deus. E se não é Deus com maiúscula é porque nele a humildade nunca o leva a escrever o seu nome, a assinar um papel que em que ela se identifique com a narrativa do mundo. A pena que me corre nas lágrimas, a pena que escreveu o livro, a pena que é a alma de Francisco de Assis: eis esta fotografia. A fotossíntese. Mesmo a pena que escreveu não constituiu uma grafia, uma escrita, o livro de Christian Bobin está escondido na areia do deserto. Só nessa areia, feita da cinza de todo o papel queimado na dor que é alegria e na alegria que é combustão do fogo ardente de estar vivo, a palavra guarda, em permanência e sem interrupção, o sol das auroras e das almas que choram por serem infância e sem tempo. Infância do tempo. As lágrimas, como as penas, são as peles das almas que sofrem. Caem e renovam-nos. Os que sofrem, como sabia Deus – e por isso parece não ter temido matar o seu filho, por isso os cristãos parecem não ter, como Weil, medo de sofrer –, sabem que as lágrimas são, como as penas, a ante-figuração, ou o rasto do anjo que marca o trajecto da imortalidade. E, Platão, esse infante da Filosofia, não percebeu também ele, que uma alma imortal está mais próxima da infância do tempo, a eternidade? Escreveu-o com uma pena molhada, e estava cheio de saudades dessa infância; a sua alma, paisagem de areia cheia de trilhos, andava com a pena atrás do pélago ou do abismo em que a alma estrénua se lança esquecendo o som do intenso lamento, de qualquer lamento. Enterrada a pena de escrever, enterrada a pena do sofrer, a alma partiria o vidro da campânula que a prendeu ao tempo e ao corpo e entregar-se-ia à areia do deserto, a única página onde a luz se inscreve sem a intromissão opacizante do sentido que é uma noite que impede a palavra do porvir e de reluzir, porque o que não perde as penas, como as peles, não passa nas insídias que são as passagens por onde se parte, os lugares para onde a alma viaja.
“Não há amor adulto, maduro e razoável. Não há perante o amor nenhum adulto, apenas crianças, apenas este espírito de infância que é abandono, despreocupação, espírito da perda do espírito. A idade adiciona. A experiência acumula. A razão constrói. O espírito da infância não conta nada, não amontoa nada, não edifica nada. O espírito da infância é sempre novo, retoma sempre aos começos do mundo, aos primeiros passos do amor. (…) O homem da infância é o contrário de um homem adicionado sobre si mesmo: um homem retirado de si, renascendo em todo o nascimento de tudo. Um imbecil que joga à bola. Ou um santo que fala ao seu Deus. Ou ambas as coisas ao mesmo tempo.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 97
A pena tem um ar abandonado que não se acresce ao estar também enterrada. Também os mortos estão mais abandonados do que enterrados. Podemos, aos mortos, desenterrá-los e, todavia, nunca poderemos eliminar o seu modo absoluto de abandono. É esse abandono que faz com que um santo pareça, mesmo vivo, um morto para o mundo e pareça como um louco uma criatura em estado permanente de infância. O abandono une a infância e a santidade à morte. Ser em estado de abandono é ser como a pena, o que cai de um corpo e pode o mais fundo e o mais alto. A pena é o que solta o santo do mundo, a pena é o que liberta a criança do tempo. Só o homem da dor permanente se torna santo porque a dor, quando não é um estado intermitente mas um estado contínuo, só conhece uma direcção, a inversa em relação ao estar aqui e ser com os que estão aqui. O mundo é o corpo de que o santo se solta. O santo caminha para o anti-mundo. Como a infância para o antes do tempo. A infância, como a santidade, não se dirige para o que existe, o inexistente tem na criança que vive o sono da infância, o poder de atracção que nenhum objecto exercerá nela durante a vida adulta, porque a infância é o estado em que a intersecção da culpa com a dor lhe devolve a memória do paraíso, enquanto o Homem a projecta para o futuro, e vive desde aqui a experiência do inferno. A criança que tem uma pena cravada no coração, que tem uma pena perdida na mão, não faz outra coisa senão dar um grito, lembrar-nos com o olhar que há outro lugar sem ser o mundo, há um não-lugar no ventre de Deus que a criança redescobre lendo a pauta musical da memória e da imaginação. Na criança, a primeira visão é uma revisão do rosto de Deus, do rosto do que é sem rosto. É esse rosto que a faz sorrir, quer dizer abrir a rota, o caminho aberto cortando uma floresta, com o presente e com o ausente em simultâneo, é a dupla relação que, quando bem estabelecida entre a criança e os rostos originais, lhe permite para sempre ficar em ligação com o que se abandonou. Naquele em que essa revisão é mais pregnante, o santo, o morto, a criança, também o semblante traz inscrito um Ausente ou uma perda. Esse rosto Ausente que acompanha o seu, na criança, no santo e no morto, confere ao que o tem gravado dentro do seu o poder de perder o tempo. O tempo é uma pena, a única, que nos enterra mas nós podemos abandonar. A criança lembra-se disso quando nasce, imagina isso quando é ferida e conhece em silêncio a perdição.
“A criança caminha para o adulto, e o adulto caminha para a sua morte. Eis a tese do mundo. Eis o seu pensamento miserando e vivo: um clarão que tremula na sua aurora e já não sabe senão declinar. É esta tese que importa inverter. Partir uma segunda vez e que esta vez seja ainda mais nova do que a primeira, mais radicalmente nova, mais amorosamente nova.”Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 104
Recolho esta pena de Ícaro só com o olhar. Ele não caiu por se ter aproximado muito do sol, caiu porque a gravidade também afecta os inocentes e os que sonham. Recolho-a para escrever, me lembrar, para imaginar e vos confessar o sentido da pena daquele que escreve. O que escreve não pode prometer nem voltar nem não-voltar, ou voltar apenas uma segunda vez, pode até ser a terceira, pode até não haver vez. Como o cego, o que escreve, apoiado nas palavras brancas, as suas bengalas, nunca sabe de onde parte, nem como voltar. Sabe que a pena da escrita é o regresso infinito e desorientado. Uma pena arrancada a frio do corpo da Vida deixa-o atordoado, perdido. Com uma pena destas na mão, o que escreve sente a dor, mas não pode deixar de confessar que ela é como a visão da beleza, a alegria. “Quereis saber o que é a alegria, quereis saber realmente o que ela é? (…) A alegria é nunca mais estar em sua casa, mas sempre cá fora, enfraquecido de tudo, faminto de tudo, por toda a parte do lado de fora do mundo como no ventre de Deus.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, pp. 105-106
O escritor tem na mão essa pena cuja tinta que escorre vem de um mundo fora deste, e na sua mão enfraquecida, desenha nomes e nomes de nomes de um rosto antigo, cria sons e sons de sons de uma voz distorcida pela distância. O escritor tenta escrever com a pena de Deus , ou de um pássaro não ferido, o Amor. Mas o Amor seca, antes dos movimentos que formam signos estarem concluídos, e fica nos espaços entre as letras desenhadas e entre os sons pronunciados. O Amor é invisível e inaudível. Por isso o escritor só o é, verdadeiramente, como e quando imita a criança que finge escrever e tem uma pena segura entre os dedos na fragilidade suprema da sua mão. E o Amor é a folha em branco que se derrama do seu olho, aurora absoluta, sobre aquele que é olhado.
Ao Anónimo a quem, com esta pena na mão, chamo irmã/ão e ao Vergílio.
Leitura da paisagem em fim de tarde
Estamos sempre na foz. E na foz somos nascente. Bebemos desse caldo do céu que é a vida e nesse intermezzo de uma ópera de despedida das rosas de inverno. Olhamos para dentro do coração de quem lê e ouve uma lacrimozza de nós. Somos nós a secar as poças de água e o musgo das paredes; os troncos ainda nus dos pequenos arbustos a pedirem os vestidos verdes que não lhes são negados, para vestir a paisagem da nossa eternidade em ciclos revisitada nos não estranhe mudados em seu mudado aparecer.
Também a flor do lilaseiro não tardará a crescer sobre a pedra das nossas memórias, e o vento não desviará o seu trajecto, sem que a bailarina solte um som de asas no silêncio adormentado da tarde. A nossa eternidade é a ideia da neve sobre os píncaros da montanha, quando havia tempo para segredar ao vento uma história que nos imaginava: sentados debaixo de uma árvore a ver o universo a actuar, na repetição das coisas que não têm tamanho nem tempo nem duração. São a ilusão dele, tão real, que nos pomos a pensar que deus nos terá desenhado a partir desse nada que nos será fim e início. E nós, humanos, actores esquecidos por um deus cansado, nós perdidos, dentro do abismal universo a ser partículas, fragmentos de uma existência que em pensamento e criação, resolve mais uma das suas equações das rosas, só para a tarde não doer tanto.
Só para sorrir do ninho da cegonha na igreja por onde passo raramente, e onde a cegonha decidiu permanecer e morar até a tarde se pôr nos meus olhos acordados. Quem ama as palavras e as usa para compreender a claridade do dia que, a pouco pouco, inclina mais a cabeça para trás, sabe que a imagem pode ser o pretexto para o texto que nasce imagem que, por sua vez cria imagem, numa rede infinita de conexões que fazem com o que se sonha seja tão ao mais real do que o que se vê apenas. A experiência da Saudade é também tempo, mas a criação é o que faz com que se possa matar a morte e se sintam saudades de ter saudades.