“Partir. Partir novamente. (…) Pois afinal não somos donos de nada. O que criamos separa-se logo de nós. As nossas obras ignoram-nos, os nossos filhos não são nossos filhos. Aliás, nada criamos. Nada de nada. Os seus dias estão para o homem assim como as peles estão para a serpente. Reluzem por momentos ao sol e depois desprendem-se dele. Deves então partir uma segunda vez, afastar-te ao teu primeiro afastamento. O mundo quer o sono.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 103
Encontraste esta pena e deixaste-a ante um qualquer olhar. Caiu também no meu. O meu olhar esvaziado de rostos presentes. Chorei. Na humidade das pestanas molhadas estavam contidas gotículas guardadas de outros olhares, de outras águas onde permanecem, como sons retinidos pelas cordas de um violino envelhecido, rostos que são pura vibração. As lágrimas são fontes por onde correm rostos desaparecidos e outros, pelo canto da saudade, por nós recuperados. Nas lágrimas há uma imagem, um reflexo em espelho, dos antepassados. Esta pena escreveu Um Deus à Flor da Terra e na humidade das suas pontas estão as lágrimas de Francisco de Assis, o santo que não se perdeu da infância do tempo nem da minha infância fora do tempo. A infância do tempo comunga com a origem, e uma certa forma de dizer e escrever, – há um escrever que é apenas dizer, uma passagem pelo sentido sem nele ficar para nele residir como morador, mas para ser apenas um hóspede na linguagem que dela se desaloja e parte – o abandono da alma. Em alguns seres, como Francisco de Assis, a alma é uma pena enterrada e desenterrada, uma vida emplumada e uma morte desemplumada. A alma de um santo, como a de um louco, não conhece a opção, apenas a conjunção. Um santo é um homem e um deus. E se não é Deus com maiúscula é porque nele a humildade nunca o leva a escrever o seu nome, a assinar um papel que em que ela se identifique com a narrativa do mundo. A pena que me corre nas lágrimas, a pena que escreveu o livro, a pena que é a alma de Francisco de Assis: eis esta fotografia. A fotossíntese. Mesmo a pena que escreveu não constituiu uma grafia, uma escrita, o livro de Christian Bobin está escondido na areia do deserto. Só nessa areia, feita da cinza de todo o papel queimado na dor que é alegria e na alegria que é combustão do fogo ardente de estar vivo, a palavra guarda, em permanência e sem interrupção, o sol das auroras e das almas que choram por serem infância e sem tempo. Infância do tempo. As lágrimas, como as penas, são as peles das almas que sofrem. Caem e renovam-nos. Os que sofrem, como sabia Deus – e por isso parece não ter temido matar o seu filho, por isso os cristãos parecem não ter, como Weil, medo de sofrer –, sabem que as lágrimas são, como as penas, a ante-figuração, ou o rasto do anjo que marca o trajecto da imortalidade. E, Platão, esse infante da Filosofia, não percebeu também ele, que uma alma imortal está mais próxima da infância do tempo, a eternidade? Escreveu-o com uma pena molhada, e estava cheio de saudades dessa infância; a sua alma, paisagem de areia cheia de trilhos, andava com a pena atrás do pélago ou do abismo em que a alma estrénua se lança esquecendo o som do intenso lamento, de qualquer lamento. Enterrada a pena de escrever, enterrada a pena do sofrer, a alma partiria o vidro da campânula que a prendeu ao tempo e ao corpo e entregar-se-ia à areia do deserto, a única página onde a luz se inscreve sem a intromissão opacizante do sentido que é uma noite que impede a palavra do porvir e de reluzir, porque o que não perde as penas, como as peles, não passa nas insídias que são as passagens por onde se parte, os lugares para onde a alma viaja.
“Não há amor adulto, maduro e razoável. Não há perante o amor nenhum adulto, apenas crianças, apenas este espírito de infância que é abandono, despreocupação, espírito da perda do espírito. A idade adiciona. A experiência acumula. A razão constrói. O espírito da infância não conta nada, não amontoa nada, não edifica nada. O espírito da infância é sempre novo, retoma sempre aos começos do mundo, aos primeiros passos do amor. (…) O homem da infância é o contrário de um homem adicionado sobre si mesmo: um homem retirado de si, renascendo em todo o nascimento de tudo. Um imbecil que joga à bola. Ou um santo que fala ao seu Deus. Ou ambas as coisas ao mesmo tempo.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 97
A pena tem um ar abandonado que não se acresce ao estar também enterrada. Também os mortos estão mais abandonados do que enterrados. Podemos, aos mortos, desenterrá-los e, todavia, nunca poderemos eliminar o seu modo absoluto de abandono. É esse abandono que faz com que um santo pareça, mesmo vivo, um morto para o mundo e pareça como um louco uma criatura em estado permanente de infância. O abandono une a infância e a santidade à morte. Ser em estado de abandono é ser como a pena, o que cai de um corpo e pode o mais fundo e o mais alto. A pena é o que solta o santo do mundo, a pena é o que liberta a criança do tempo. Só o homem da dor permanente se torna santo porque a dor, quando não é um estado intermitente mas um estado contínuo, só conhece uma direcção, a inversa em relação ao estar aqui e ser com os que estão aqui. O mundo é o corpo de que o santo se solta. O santo caminha para o anti-mundo. Como a infância para o antes do tempo. A infância, como a santidade, não se dirige para o que existe, o inexistente tem na criança que vive o sono da infância, o poder de atracção que nenhum objecto exercerá nela durante a vida adulta, porque a infância é o estado em que a intersecção da culpa com a dor lhe devolve a memória do paraíso, enquanto o Homem a projecta para o futuro, e vive desde aqui a experiência do inferno. A criança que tem uma pena cravada no coração, que tem uma pena perdida na mão, não faz outra coisa senão dar um grito, lembrar-nos com o olhar que há outro lugar sem ser o mundo, há um não-lugar no ventre de Deus que a criança redescobre lendo a pauta musical da memória e da imaginação. Na criança, a primeira visão é uma revisão do rosto de Deus, do rosto do que é sem rosto. É esse rosto que a faz sorrir, quer dizer abrir a rota, o caminho aberto cortando uma floresta, com o presente e com o ausente em simultâneo, é a dupla relação que, quando bem estabelecida entre a criança e os rostos originais, lhe permite para sempre ficar em ligação com o que se abandonou. Naquele em que essa revisão é mais pregnante, o santo, o morto, a criança, também o semblante traz inscrito um Ausente ou uma perda. Esse rosto Ausente que acompanha o seu, na criança, no santo e no morto, confere ao que o tem gravado dentro do seu o poder de perder o tempo. O tempo é uma pena, a única, que nos enterra mas nós podemos abandonar. A criança lembra-se disso quando nasce, imagina isso quando é ferida e conhece em silêncio a perdição.
“A criança caminha para o adulto, e o adulto caminha para a sua morte. Eis a tese do mundo. Eis o seu pensamento miserando e vivo: um clarão que tremula na sua aurora e já não sabe senão declinar. É esta tese que importa inverter. Partir uma segunda vez e que esta vez seja ainda mais nova do que a primeira, mais radicalmente nova, mais amorosamente nova.”Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, p. 104
Recolho esta pena de Ícaro só com o olhar. Ele não caiu por se ter aproximado muito do sol, caiu porque a gravidade também afecta os inocentes e os que sonham. Recolho-a para escrever, me lembrar, para imaginar e vos confessar o sentido da pena daquele que escreve. O que escreve não pode prometer nem voltar nem não-voltar, ou voltar apenas uma segunda vez, pode até ser a terceira, pode até não haver vez. Como o cego, o que escreve, apoiado nas palavras brancas, as suas bengalas, nunca sabe de onde parte, nem como voltar. Sabe que a pena da escrita é o regresso infinito e desorientado. Uma pena arrancada a frio do corpo da Vida deixa-o atordoado, perdido. Com uma pena destas na mão, o que escreve sente a dor, mas não pode deixar de confessar que ela é como a visão da beleza, a alegria. “Quereis saber o que é a alegria, quereis saber realmente o que ela é? (…) A alegria é nunca mais estar em sua casa, mas sempre cá fora, enfraquecido de tudo, faminto de tudo, por toda a parte do lado de fora do mundo como no ventre de Deus.” Christian Bobin, Um Deus à Flor da Terra, pp. 105-106
O escritor tem na mão essa pena cuja tinta que escorre vem de um mundo fora deste, e na sua mão enfraquecida, desenha nomes e nomes de nomes de um rosto antigo, cria sons e sons de sons de uma voz distorcida pela distância. O escritor tenta escrever com a pena de Deus , ou de um pássaro não ferido, o Amor. Mas o Amor seca, antes dos movimentos que formam signos estarem concluídos, e fica nos espaços entre as letras desenhadas e entre os sons pronunciados. O Amor é invisível e inaudível. Por isso o escritor só o é, verdadeiramente, como e quando imita a criança que finge escrever e tem uma pena segura entre os dedos na fragilidade suprema da sua mão. E o Amor é a folha em branco que se derrama do seu olho, aurora absoluta, sobre aquele que é olhado.
Ao Anónimo a quem, com esta pena na mão, chamo irmã/ão e ao Vergílio.