O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 22 de março de 2009

O Estrangeiro

"O estrangeiro é o que vem de outro lado e não é daqui. Para aqueles que são daqui, é pois o estranho, o inabitual e o incompreensível; mas o seu mundo, esse, é também completamente incompreensível para o estrangeiro que vem habitar aqui; é como uma terra estranha onde ele se encontra longe do seu país. Suporta então o destino do imigrado; é isolado, não é protegido, não é compreendido e não compreende, tudo isto numa situação plena de perigo. Angústia e saudade da pátria fazem parte da sua sorte"

- Hans Jonas, La Religion Gnostique, Paris, Flammarion, 1978, p.73.

8 comentários:

Anónimo disse...

Paulo,

há os que não saindo do que chamamos a "nossa terra" se sentem estrangeiros. Esses são os saudosos, não só de facto como de direito. Ainda que perceba o contexto e as finalidades do texto de Jonas e dos de Levinas...creio que não podemos esquecer também os que são sem contexto e sem pátria. Beckett nem numa língua se sentia acolhido...

Mas percebo as preocupações éticas subjacentes ao texto e o dever de pensar e agir para com esses; sendo que os que se sentem sem pátria, mesmo na língua, dada a profundidade da compreensão "do ser estrangeiro", poderem estar ainda em melhores condições para acolher o outro que vem não se sabe de onde e não importa de onde. Como morada, ethos, a ética deve ser acolhimento. E nós éticos. Mas a saudade é um sentimento de outra pátria, e nem a ética, a acção ética a preenche. Sentimento da pátria sem nome e sem caminho, sem carta e sem direcção. Qual é a pátria do "Desterrado"? Essa estátua do sem pátria?

Anónimo disse...

Ali, ele era um estrangeiro, veio do outro lado e não era dali. Por isso, ele tinha ainda um olhar novo perante tudo que o envolvia. Por lhe parecer estranha e inabitual, é que o rapaz branco da metrópole fez amizade com a rapariga negra de uma tribo índia. Quando estava com ela sentia-se longe do seu país, mas nunca sentia sonolência pois tudo era sempre novo e pleno de contrastes. Apesar da diferença de cor e de tradições, ao lado dela sentia-se estranhamente compreendido, ao mesmo tempo que vivia uma situação de perigo permanente, o que o deixava cada vez mais atento. Quando regressou à metrópole, sentiu saudade do contraste da pele dela sobre a dele.

Anónimo disse...

Paulo,

Interessantíssima me parece esta citação que remete para uma visão da literatura assinalada por Derrida em Passions e em Che cos' è la poesia. A ideia da liberdade da literatura de ostentar um segredo, uma confidência. E é esse segredo, esse direito de não responder à fala, que o poema se dá o “direito de 'dizer tudo guardando segredo”. Assim, entenderíamos, na esteira de Derrida e da sua literatura sem conceito e sem teoria, naturalmente, o "animal estranho" que é a poesia. Um outro nome do impossivel seria. Contudo, o poeta introduz “um animal singular” que marcando o poema de exemplaridade instauraria, por assim dizer, fazendo-a surgir, a noção de alteridade, impedindo o poeta da sua mesma identificação: consigo, com a língua, com a mesma ideia de literatura, com a pátria... A inquietante estranheza, a resposta que se não dá, o animal que acontece com o poema e de que este marcaria o acontecimento. Paradigmático é também o poema L'Exil de Beaudelaire, onde se elencam quase todos os exílios possíveis, incluindo o “mal du pays”, ou “à jamais”, o luto em vida que não incorpora o outro.
A Saudade, aqui, é luto em vida, lamento infinito, aceno de uma outra pátria... um outro nome do impossível.
P.S. Elucidativo o artigo publicado na Revista de Letras de São Paulo.
Nascimento, E. The foreiggner, the literature – The Severeignty.
Jacques Derrida. Revista de Letras, São Paulo, 44, nº 1, pp.32-44, 2004.

P.S. Interessante também será compreender o romantismo alemão à luz desse gnosticismo de que fala Hans Jonas.

Um abraço ao Paulo, um beijo e um segredo à Isabel.

Anónimo disse...

Este texto dá que pensar... Se por um lado há de facto os estrangeiros que sentem angústia por estarem separados da sua terra, por outro lado há pessoas que sentem o seu interior imbuído de saudade por estarem separadas de algo que não consigo descrever. Acredito que grandes criações artísticas surgiram tendo como base este sentimento de separação, sendo seus criadores incompreendidos e não abertos a uma realidade relativa que os rodeia. A saudade levou-os por caminhos que os conduziram à pátria, onde a palavra pátria deixou de existir e os caminhos desapareceram no ar (se é que existiram mesmo...). Grandes vias religiosas foram descobertas por pessoas como Maomé, Jesus ou Buda que, creio eu, também sentiram angústia e saudade dessa pátria à qual uns deram o nome de Deus, outros não lhe atribuíram nome algum.
Recordo-me de um poema de Agostinho da Silva que diz:
Crente é pouco/Sê-te Deus/E para o nada que é tudo/Inventa caminhos teus. Como seria bom se todos nós inventássemos/descobríssemos caminhos que nos reconduzissem à pátria, esse nada que é tudo. Aí o estrangeiro estaria na sua terra e o da terra seria um estrangeiro e tudo seria nada.

Laura disse...

Caro Pedro,
Creio que seja porque a pátria deles - desses que mencionou - não era deste mundo nem deste tempo. Estrangeiros nasceram e morreram.

Paulo Borges disse...

Madalena, num certo sentido, não seremos nós, ou aqueles que julgam ter um mundo e um tempo, os verdadeiros estrangeiros perante a "pátria" desses que, por não ser deste mundo nem deste tempo, o é de todos e de nenhum? Não é por isso que vivemos ainda em angústia e saudade, quando esses já as transcenderam? Não sei se terão morrido estrangeiros.

Saudações a todos, grato pelos enormes contributos, em que me revejo.

Estranhamente.

Anónimo disse...

Estrangeiro é o que estranha haver realidade num mundo onde se tem isso por normal.

guvidu disse...

Todos nós somos estrangeiros, pela nossa própria imperfeição/finitude...é tão simples mas complicamos porque racionalizamos demasiado a nossa existência em dicotomias, egoísmo e poder.

Filosofar trata-se de questionar-mo-nos mas, em termos ocidentais, isso traduz sempre manipulação, poder sobre e daí que tenhamos, ainda mais, essa sensação de saudade e de vazio - não no sentido de ser potência de tudo, vacuidade - mas um vazio que nos consome numa sensação de desenraizamento abissal, pois não percebemos que as nossas raízes estão ancoradas num coração compassivo; num espírito que dança livre, no vento e num corpo que se quer realinhado energicamente.

É o que me ocorre sobre esta msg...