O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 19 de março de 2009

O sol O muro O mar

O olhar procura reunir um mundo que foi
destroçado pelas fúrias.
Pequenas cidades: muros caiados e recaiados para
manter intacto o alvoroço do início.
Ruas metade ao sol metade à sombra.
Janelas com as portadas azuis fechadas: violento
azul sem nenhum rosto.
Lugares despovoados, labirinto deserto: ausência
intensa como o arfar de um toiro.
Exterior exposto ao sol, senhor dos muros dos
pátios dos terraços.
Obscuros interiores rente à claridade, secretos e
atentos: silêncio vigiando
o clamor do sol sobre as pedras da calçada.
Diz-se que para que um segredo não nos devore é
preciso dizê-lo em voz alta no sol de um terraço
ou de um pátio.
Essa é a missão do poeta: trazer para a luz e para
o exterior o medo.
Muros sem nenhum rosto morados por densas
ausências.
Não o homem mas os sinais do homem, a sua arte,
os seus hábitos, o seu violento azul, o espesso
amarelo, a veemência da cal.
Muro de taipa que devagar se esboroa -- tinta que
se despinta -- porta aberta para o pátio de chão
verde: soleira do quotidiano onde a roupa seca e
espaço de teatro. Mas também pórtico solene aberto
para a vida sagrada do homem.
Muro branco que se descaia e azula irisado de
manchas nebulosas e sonhadoras.

A porta desenha sua forma perfeita à medida do
homem: as cores do cortinado de fitas contam a
nostalgia de uma festa.
Lá dentro a penumbra é fresca e vagarosa.
Nenhum rosto, nenhum vulto.
As marcas do homem contando a história do
homem.

No promontório o muro nada fecha ou cerca.
Longo muro branco entre a sombra do rochedo e
as lâmpadas das águas.
No quadrado aberto da janela o mar cintila coberto
de escamas e brilhos como na infância.
O mar ergue o seu radioso sorrir de estátua arcaica.
Toda a luz se azula.
Reconhecemos nossa inata alegria: a evidência do
lugar sagrado.


Sophia de Mello Breyner Andresen
Ilhas, 1989
de Obra Poética III, Caminho, 2ª edição; 1996

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