O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


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domingo, 29 de março de 2009

A oiro a Primavera de Klimt



Klimt virá porque terá de vir, e sobre o ouro dos vestidos derramará o pó de estrela com que vestiremos anjos que, saídos da jarra onde estiveram a secar as asas, vieram do jardim para outro jardim. Nele vêem-se os que em vigília são sentinelas. Sentinelas de pé no alto da torre, a receber o vento nas faces; a brisa nas pálpebras. No jardim que não há vêem-se no alto das quatro torres, anjos gigantes a devolver o grito mudo ao som do horizonte, a soltar as suas plumas no pano azul da seda deste céu e deste véu. Na torre as damas de preto são sons ouvidos ao longe, devolvidos em eco ao gesto de uma flor. Uma flor frágil no seu caule estreito. A sua taça de mel para as abelhas e os pássaros, um aclarar na voz calma do poeta.


O olhar de Klimt é como um ramo de rosas de oiro oferecidas ao vento. O vento traz do deserto o coração e a esperança. O Coração que é uma flauta angustiada a ferir a Primvera e os que escutam entre as grutas de pedra e os lagos, que hoje anoitecem mais cedo, entre juncos.Não há distância para a clareira de Deus. E o espírito que adeja sobre as pedras, será o nosso corpo como uma estátua a voar sobre a cabeça partida de uma hera a compor o muro. A folha de palmeiras de luz chama a Senhora da Noite. Ela apaga as lembranças que há na terra e os desenhos que estão no céu e ateia a cor aos frutos. São pombas que nascem das pontas de uma estrela, os olhos mansos da noite. Contavam do rito de um templo de luz sem tempo. Tinham dito que a pedra é uma possibilidade de luz, como um poema, e os vitrais que se abrem para o mar são o espinho e a rosa de uma aria mais alta ecoada na estação do ano em que as pedras dão flores só para quem viu nascer a for do sal entre os cabelos; e o jardim um barco por fora da paisagem das rosas e dos cheiros que embriagam.


Aqui é um lugar onde o tango se dança de olhos fechados. Como a cósmica noite e o eterno espaço perduram para sempre. Aqui é só uma noite e talvez o meu peito seja um só rio de duas margens. É-o, decerto, que o sinto correr desenfreado, cheio de suas águas e do seu amor. E prender essa força que teima em jorrar em palavras torna-se impossível. E uma nostalgia tão funda me entra nas veias que elas bem poderiam ser sal de lágrimas em vez de sangue. Ou será o mar? O mar a quem fechassem as comportas, por dentro do peito de águas a galopar. Oiço. Dentro desse terreno limpo de águas oiço um grito parado no ar. Um grito adormecido debaixo do céu.


Tinha-te dito que uma palavra não chega para salvar uma alma e tivemos que despir mais e mais a nossa nudez; ir até ao osso, à pedra de esmeril; ao toque de um bordado de linho na mesa de uma ceia repetida até ao fogo de um vinho que embriaga o corpo. A dança do último tango milongueiro na clareira da floresta. Mas antes o silêncio envolvera todos os frutos do seu guardar, a cor no brilho de asas, as de sal cobertas, flores silentes entre os dedos.Os pincéis de Klint são folhas que rodam e caem na superfície branca do papel pintado, mas o ouro é sobre a pele e sobre a paisagem. Um espalhar de Fogo cobre as pedras, pó de estrelas a cobrir os canteiros e os astros.