apesar das vistosas asas.
quarta-feira, 31 de dezembro de 2008
Bom 2009 a todos, mesmo ao safado do pedreiro que me "arranjou" o Monte
Isto é, dos primeiros dois segundos, para descontar o adventício - que os homens da Ciência garantem não existe.
De Docta Ignorantia
De Docta Ignorantia
(À memória de Nicolau de Cusa)
Se não soubermos como é nosso o mundo,
e que sabemos dele apenas o que tivermos feito,
e que fazemos só a morte que não foi em vão,
e que não foi em vão quanto nascer de novo
é o muito que sofremos para descobrir
que a descoberta é recordar sem tempo
o tempo exacto qual medido em vidas –
Se não soubermos que a vida é um salto brusco
do inanimado às vidas que se encontram
na quantidade em que a si mesmas se erguem,
até que ter falado é o ser que nunca fomos,
o ser que não seremos, mas o puro
início de lembrar o igual de tudo –
Se não soubermos que os iguais transformam
em único e mortal o que é sinal de um só
que se conhece e conhecendo esquece
como ter visto é terem outros visto
o que, entretanto, em nós se transmutou –
Se não soubermos, como saberemos?
E como criaremos? Qual eternidade
terá sentido, irá como uma seta
ao fim que não acaba, em que se cumpre
o próprio fundamento, a porta, o tecto,
a constelado céu de acasos conquistados?
Se não soubermos, como não saber?
Jorge de Sena
(in “Fidelidade”, 1958)
alado de longe e saudade
saúdo o ano que finda
e guardo o que não findou ainda
para que se cumpra na sua mais plena verdade
o que findou e é pretérito
seja semente de aventura
traga dor alegria fracasso ou mérito
vivido sempre seja com soltura
venha a vida venha a morte
ou o pranto ou a alegria
venha o que vier lançado pela sorte
que seja vivida a vida toda em cada dia
e que os sonhos sejam sempre exaltantes
possam crescer e espraiar-se pelo universo
imensos quimeras de lume vivo extravagantes
incumpridos posto que sonhar é ser diverso
Feliz e Folião Ano Novo no Baile de Máscaras do In-Ex-istir!
Querid@s Amigas e Amigos, sem tempo para ler, comentar e agradecer pessoalmente tudo o que de belo e profundo têm publicado, pois ando em viagem entre várias passagens de ano e várias paisagens exteriores e interiores, aqui vos deixo os meus mais fundos e sem fundo, eloquentes e silentes votos de que todo o tempo se nos ilumine no Sem Tempo e todo o espaço se nos revele a floração sempre nova do Não Lugar que sem ser, não ser, ser e não ser e nem ser nem não ser, em tudo somos!
E que formas, palavras, imagens, pensamentos, sons e silêncios se desvelem Infinito Esplendor!
Saúde!
ângelo monteiro, feridos pelo acaso
À luz e à profecia estão vendados,
Para Emaús nós caminhamos órfãos
E o coração é cinza nesse ocaso.
Mais do que órfãos, estamos todos mortos.
E eis que irreconhecida luz abrasa
A voz do Companheiro que nos volta
Trazido pelo sonho à nossa casa.
De súbito a presença de uma vela
Acende a sua face. E, em torno, à mesa,
Quando em sua inteireza se revela,
Como um clarão se esvai. De novo sós,
Para manter sua memória acesa,
Elevamos em canto a nossa voz.
(Ângelo Monteiro é um poeta nordestino, nascido em Alagoas em 1942 e residente no Recife há várias décadas. Este poema faz parte do livro O exílio de Babel (1983 a 1989) e foi incluído na antologia pessoal Todas as coisas têm língua)
terça-feira, 30 de dezembro de 2008
Zeitgeist: Addendum
Podem encontrar a sua versão integral com legendas em Português em http://www.zeitgeistmovie.com/add_portug_brazil.htm
Variações sobre um mantra
um coração fecha-se e endurece
amordaça-o receio de encontrar.
Se os sonhos advertem e preparam
para os perigos a incorrer,
a desilusão faz-nos ver
Inundado de amor é forte
e nada teme o coração
de vida o seu amplexo.
Saberá o brando e sensível
permanecer incólume
ao desgaste do tempo?
- Busca a flor que abrir depois da tempestade
e não antes...
O.M.A. (in Tempérie)
Nenhuma voz.
antes que haja o que se houver não haverá nem não haverá.
A Pedra no Charco: o Povo
- E. M. Cioran, "Histoire et Utopie", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, pp.1010-1011.
A Corça
Caída, perdida da razão, sem o raio, a estrela e o foco, a leitora, encostando o corpo ao tronco-raíz da árvore, mas com o espírito a uma majestática altura – o que escreveu o poema teve que subir, escreveu a Gabriela, ao cimo da árvore para recolher luz para o poema; a luz, no cimo da árvore, é a sua clorofila; a árvore o lugar da direcção do poeta – procura o Plátano. A leitora sente os pés humedecidos pela via do rio mas procura o desvio para o olhar ruborescido pela luz do poema. Afinal, a leitora, chegada a hora tardia da luz, queda-se porque não deseja partir e prefere ouvir. No poema a luz é uma voz. E ela vem do alto e não cessa, nem à noite a luz do poema deixa de orientar a que olha para o cimo. O imo é o cimo. No cimo do Plátano, os versos são como ramos que rumorejam e as sílabas aves que reluzem. A árvore do poeta é uma pauta e o poema uma orquestra de flautas. A leitora, tocada e tocadora do poema, tem agora um rosto feito de texto e na sua pele estão, sem que o saiba, as folhas que fundam Parasceve. Parasceve, a cidade humana que se funda, depois de descer do Plátano, não é como as outras cidades que se opõem ao campo. Parasceve é a cidade-canto. Agora a leitora abandona a corrente, escuta a voz que a chama da luminosidade em torrente. E o ramo do irreparável, o ramo dourado ou incendiado do Plátano, não sabe e não distingue, traça no vento ou na música, um ritmo, uma rima com a qual ela enfeitiçadamente confraterniza e se internaliza. O ramo tem no corpo o verbo em modulação. A leitora rendida, ainda que não entretida, não entrega o corpo ao Plátano: não sobe; mas entrega-se de vez na voz e delira.
O que escreve, e o que escreve tem no corpo um manto e na voz um mantra, mais não faz do que cobrir e difundir. O que escreve difunde, quer dizer, permanece à espera de quem escreva com ele, em desejo libidinal, esperando a criação, isto é, cobre a leitora de prazer e formas. Cantar é outra forma de difundir e expandir desejo e prazer. Rejubilar. A Gabriela repete estas palavras quando passa perto, por dentro da leitora nua para a cobrir e revestir com os outros textos. A leitora tem uns na alma e outros no corpo: camadas de húmus desejante e fertilizante revestem-na. Nela o húmus não vem do solo, mas do sol, não se forma pela decomposição, mas pela composição. Por isso, dentro dela, como dentro de quem lê, não há senão o avanço da luminosidade livre em torrente e da memória em estado ardente.
Na leitora, o estado de compreensão do texto a que se eleva, do texto para além do contexto, condu-la a um contacto unificante. Na leitura compreensiva há uma unidade indiferenciada da leitora com o texto. O texto é um outro que não se procura como território para possuir, mas para se fruir e fluir. A unidade da leitora com o texto é a continuidade prometida do poema como criação e a continuidade do poema com o mundo. O poema é igualmente o rio a que uma alma pertence. Ipseidade e alteridade não são conceitos ou outras fixações, são evasões, libertações, modulações, propagações. A leitura não é um acto, é um pacto. Um pacto apaixonante e contagiante. A leitora abala as raízes do corpo sentido mas abala, depois do corpo lido, florida e rejuvenescida. A leitura é um toque de amor perpetuante. Por isso a visão do amor despertada pelo texto é um abalo originante e fecundante. Ler não é senão um canto operante e transformante. Em breve, como os filhos do ancião na Cantata Profana, a leitora se tornará em corça que não abandonará as profundezas do bosque. E, como as corças, responderá aos meramente humanos que Parasceve é uma cidade bosque, uma cidade canto e uma cidade pranto que se espalha por todas as criaturas. A cidade dos que, lendo o poema, procuraram o Ensaio para prolongar a voz do poema mais do que a do seu autor. A Gabriela afastou-se, mas decerto só a esta comunidade retornaria. Ela escreveu, todas as forças da natureza que o poema suscitava, comentava e ensinava a ser, se coligavam para estrangular a voz. Entre a voz e o poema, escolheria a voz. Parasceve não é uma comum cidade humana, é uma incomum cidade de cantores, leitores cantores, uma comunidade para os que, amando o espírito do poema, lhe emprestam a voz e a voz é o seu corpo vivo, a sua matéria inflamável, como no enlace do poema com o olhar da leitora. Do poema e de tudo que, viva e ardentemente, toca o olhar do cantor-legente, também a natureza em estado de poema. A leitora torna-se em tudo aquilo que é tocado pela palavra que sai do poema, é uma estátua meta e polimórfica que se deixa tocar pelo que se aproxima do alto e de dentro. Esta noite a leitora vai com as corças porque ela não pode voltar a ser humana nem doar o poema aos que apenas o são. Com as corças, os veados, as gazelas, o que for, ela aprendeu a responder: quem bebe a água que brota da Fonte Pura não bebe nem pela boca nem pelo copo em que bebem os humanos. O poema bebe-o e brinda-o o espírito em estado puro. Parasceve não é um estado político, é um estado de alma. E a alma é uma folha com asas e é por isso que as estátuas parecem cantar e encantar. Quem as olha torna-se no que olhar, porque ler não é só cantar e religar, é também profanar. As corças de Bartók sabiam-no e por isso não regressaram. Como elas, a leitora olha-nos de uma forma não mais somente humana.
Agradeço a imagem que foi incitante à Ana Moreira. Porque a Ana olha-nos como a leitora, mas agradeço, após um ano, a todos os que se constituíram, de forma velada ou desvelada, una e múltipla, ortónima e heterónima, como comunidade de leitores. A "Serpente" fundou uma comunidade de leitores que, umas vezes mais do que outras, nos direcciona para o deserto, o lugar onde o espírito ultrapassa todos os limites. Bom ano e obrigada pelas vozes a que chamei, há muito, cantografia. Ao Paulo, e porque esta é a sua casa, entrego o texto. E a todos oiço com a folha deixada em branco pelos Anjos de Rilke.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2008
Do Alexandre
E se fôssemos rir,
Rir de tudo, tanto,
Que à força de rir
Nos tornássemos pranto,
Pranto colector
Do que em nós sobeja?
No riso, na dor,
Que o homem se veja.
Se veja disforme,
Se disforme for.
Um horror enorme?
Há outro maior...
E se não houver,
O horror é nosso.
Põe o dente a roer,
Leva o dente ao osso!
Alexandre O'Neill
Instantes....
Na próxima trataria de cometer mais erros.
Não tentaria ser tão perfeito, relaxaria mais.
Seria mais tolo ainda do que tenho sido,
Na verdade bem poucas coisas levaria a sério.
Seria menos higiénico.
Correria mais riscos, viajaria mais, contemplaria mais entardeceres,
Subiria mais montanhas, nadaria mais rios.
Iria a lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvete e menos lentilha,
Teria problemas reais e menos problemas imaginários.
Eu fui uma dessas pessoas que viveu a vida sensata e produtivamente cada minuto da sua vida ;
Claro que tive momentos de alegria.
Mas, se pudesse voltar a viver, trataria de ter somente bons momentos.
Porque, se não sabem, disso é feita a vida, só de momentos, não percas o agora.
Eu era um desses que nunca ia a parte alguma sem um termómetro,
Uma bolsa de água quente, um guarda-chuva e um pára-quedas ;
Se voltasse a viver, viajaria mais leve.
Se eu pudesse voltar a viver, começaria a andar descalço no começo da Primavera,
E continuaria assim até o fim do Outono.
Daria mais voltas na minha rua,
Contemplaria mais amanheceres e brincaria com mais crianças,
Se tivesse outra vez uma vida pela frente...
Mas , já viram, tenho 85 anos e sei que estou a morrer.
(Autor desconhecido)
Pedra de encanto
Canto e cantaria a pedra?
Feitiço para encantar as pedras.
"Ainda terás alento e pedra de canto" (Vitorino Nemésio)
pedra de canto
encantada pedra
pedra de perfil sereno
pedra velha
pedra febril em pedra fina
e pedra na parede
em roxa pedra
pedra do poema
pedra!
catedral de pedra
pedra do funil
fumo de pedra
pedra da noite
longa noite de pedra
pedraria do amor
amor de pedra
toque de pedra
em pedra arrefecida
pedra de pão
pedra de sexo
pedra do poema
pedra de chama
e pedra do sentido
vivo sonho de pedra
pétrea petra derruída
pedra negra
empedrada vida
pedra!
carne de pedra
pedra diluída
pedra no meio do caminho
pedra entre as pedras
pedra de alcanfor
e pedra fria
pedra que se levanta
pedra que caminha
pedra que se inquieta
pedra de coração
pedra nativa
pedra de luz
pedra perdida
pedra desperta
e pedra adormecida
pedra!
pedra sonâmbula
pedra prometida
pedra figurada
e pedra no caminho
pedra literal
e pedra do destino
pedra de moisés
pedra divina
pedra anómima
pedra da marinha
pedra do rei
pedra da farinha
pedra!
pedra sem fim
pedra definida
pedra arcaica
pedra da memória
pedra minha
pedra em carne viva
pedra da palavra
pedra ressuscitada
rosa de pedra
pedra amada
pedra de espinhos
pedra de flor
rosa empedrada
pedra encoberta
rosa viva
pedra!
http://navegare--preciso.blogspot.com/
Salto sem rede
- E. M. Cioran, "Le Crépuscule des Pensées", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.439.
domingo, 28 de dezembro de 2008
Sete Rosas para Rilke ou o Remorso de não sermos Deus
Vivemos do que inexiste. Nisso somos humanos às cavalitas de deus.
Rosas de luz são corpetes dos anjos, que as enchemos nós, com o nosso corpo!
Em silêncio, oramos, em luz, oramos. Desse cálice deixai que se espalhe o delicado aroma.
Aqui vos entrego a alma, para que a limpeis com vossos dourados raios.
Rosas sois, de muito abrir e maior fenecer.
Quanto à tranparência, vós o sabeis, Senhor, nem para pó do vosso manto servimos.
Resposta a Cioran
fernando pessoa e o burrinho de belém...
Salto sem rede
- E. M. Cioran, "Le Livre des Leurres", in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.212.
Do silêncio, das cores
O silêncio dum antes, dum depois, durante o tempo da nossa eternidade, coexistência de espaços percorridos a dois, em cumplicidade, e transparência.
sábado, 27 de dezembro de 2008
obrigada
Conhecer-se a si próprio é esquecer-se de si mesmo.
Esquecer-se de si mesmo é ser iluminado por tudo o que existe no mundo.
Dogen (monge budista japonês do séc. XIII)
Murmúrio
Foi numa noite de Inverno, em que eu fui, serei, lembrado, imaginado, não interessa, crendo em mim, crendo que sou eu, não, não vale a pena, dado que há os outros, onde, no mundo dos outros longos percursos mortais, sob o céu, com uma voz, não, não vale a pena, e com que mexer, de vez em quando, também não, dado que os outros passam, os autênticos, mas sobre a terra, certamente sobre a terra, o tempo de uma nova morte, dum novo despertar, esperando que aqui isto mude, que qualquer coisa mude, que faça nascer mais adiante, ou então ressuscitar, no fundo de fora deste murmúrio de memória e de sonho.
(Escre)ver-me
nunca escrevi
sou
apenas um tradutor de silêncios
a vida tatuou-me nos olhos
janelas
em que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se apaixona
pelo inimigo que vai matar
(citando Mia Couto)
"É Natal, ninguém leva a mal!" - III (fim)
Parece-nos, todavia, que um outro sentido e motivo, mais profundo que o da mera catarse psicossocial, e mais coerente com a radicalização da louca irrisão de si e do mundo, que encontrámos nos loucos por amor de Deus, se encerra tradicionalmente nestas práticas, porventura já inconscientemente vivido ou quiçá dispensador da necessidade da consciência para que seja operativamente eficaz. Conforme apontámos a propósito de Mestre Eckhart, perguntamo-nos se nesta cáustica e caótica violação e suspensão de todos os respeitos, por ocasião e no seio da própria liturgia religiosa, não se tratará de estender ao sagrado e ao divino, às coisas tidas por mais sacrossantas, aquele libertador iconoclasmo do espírito que se recusa a aceitar como digno de veneração e culto tudo o que se lhe depare, quer como exterior e extrínseco, quer como princípio, fundamento e estrutura de uma ordem de formas, determinações, medidas e limites, e que não possa transcender e reintegrar infinitamente na sua própria auto-transcensão como sujeito de um mundo de representações e objectos que, na exacta medida da sua apresentação como sagrados e divinos, se constituem como os mais dissimulados ídolos que acima de tudo importa reconhecer e desconstruir. Quer por via negativa, na inversão e suspensão do mundo religiosa, moral e socialmente correcto, quer por via positiva, na experiência de uma liberdade face a toda a determinação divina, humana ou outra do ser, emergente na possibilidade da carnavalesca mutação das formas e das aparências, e na orgiástica abolição de todas as fronteiras entre sagrado e profano, céu e terra, masculino e feminino, indivíduo e mundo, homem e Deus, aquilo que surge como um sacrilégio pode veicular uma libertação que, noutro sentido, pode ser vista como a mais elevada forma de cumprimento do sentido da religião e de experiência do sagrado, enquanto vivência do Infinito que abole todas as mediações. Isto com a condição de começar e terminar por destituir a idolatria do egocentrismo, não se detendo numa mera prática do irrespeito e da licença por um sujeito que se ria de tudo sem nunca haver rido de si, supondo que no seu iconoclasmo se está efectivamente a libertar de algo que não das suas próprias e ilusórias projecções e representações, a começar pela da sua suposta solidez e autarquia ontológica.
E, se porventura estamos aqui perante uma dessas manifestações da verdade que excede as possibilidades comuns do entendimento e, sobretudo, da vivência, convém declararmos que estas são, antes de mais, e obviamente, as nossas...
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.154-156 (as notas de rodapé foram suprimidas).
sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
quinta-feira, 25 de dezembro de 2008
A Casa
apostamos tudo
às vezes tu levantas-te de manhã da cama e pensas,
não vou fazê-lo, mas ris por dentro
lembrando todas as vezes que te sentiste assim, e
caminhas para a casa de banho, lavas-te, vês essa cara
ao espelho, ai ai ai, mas penteias-te na mesma,
vestes a roupa de sair à rua, dás de comer aos gatos, apanhas
o jornal dos horrores, coloca-lo em cima da mesa da cozinha, beijas
a tua mulher, e recuas o carro para a vida,
como milhões de outros que entram na arena mais uma vez.
agora estás na auto-estrada passando por entre o trânsito,
caminhas ao encontro de algo e de rigorosamente nada enquanto
ligas o rádio e apanhas Mozart, o que é algo, e de alguma maneira
consegues atravessar os dias lentos e os dias cheios de trabalho e os dias
aborrecidos e os dias horríveis e os dias raros, todos ao mesmo tempo bons
e ao mesmo tempo maus porque
somos ao mesmo tempo diferentes e iguais.
encontras a saída, conduzes pela zona mais perigosa
da cidade, sentindo-te momentaneamente bem enquanto Mozart
atravessa o teu cérebro e percorre os teus ossos e
sai pelos teus sapatos.
tem valido a pena lutar esta luta desigual
enquanto todos conduzimos
e apostamos num próximo dia.
(poema de Charles Bukowski)
“Nós não desejamos ser poupados pelos nossos melhores inimigos, nem por aqueles que amamos do fundo do coração. Deixai, pois, que vos diga a verdade.
Guerreiros, meus irmãos, do fundo do coração vos amo. Sou semelhante a vós, sempre o fui. E sou também o vosso melhor inimigo. Deixai, pois, que vos diga a verdade.
(…) Que o vosso amor da vida seja o amor da vossa suprema esperança, e que a vossa suprema esperança seja o supremo pensamento da vida.
(…) Eu não vos poupo, pois vos amo do fundo do coração, guerreiros meus irmãos”
(Friedrich Nietzsche, “Assim falou Zaratustra”)
quarta-feira, 24 de dezembro de 2008
Natal
que agora
de glória e espanto nimbada
no íntimo de cada lar
ergues e iluminas
Tu que
sagrado e primordial
de ti despido
desde sempre e para sempre
Céu e Terra congraças
Em ti
o ouro e a prata eternos brilham
as velas se acendem
fulvas as estrelas cintilam
Em ti circula a seiva das coisas
o Dom
a anónima Alegria que perpassa
abrindo a mão que dá
e a que recebe
Em ti se acende a Luz
que súbita a noite ilumina
e tão mais esplende
quão menos se apercebe
És tu que na gruta do Coração
no Presépio de cada instante eterno nasces
entre o bafo e a adoração do mundo
e os coros celestiais
Tu que trazes o universo no coração
e com ele infante a sorrir brincas
suspenso, irradiante e puro
a girar na palma da mão
Pois em ti
nu, inocente e mudo
o tempo ainda não é
e já finda:
adamantino tudo a florir ressuscita
da ilusão de haver distância
És esplendor, prodígio, maravilha
Promessa, Anúncio, Presença
Festa
Todo o Mundo e Ninguém
Natal
...
Com votos de Feliz Natal e Ano Novo solar, dedico este poema, embora imaturo ainda em forma e conteúdo, a toda a comunidade serpentina emplumada, nomeada, heterónima e anónima, grato pelas vossas/nossas luzes e sombras, harmonias, zizânias e demais folias. Que neste Carnatal (belíssimo achado, Saudades!), agora e sempre, haja Folia!
"É Natal, ninguém leva a mal!" - II
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.151-154 (as notas de rodapé foram suprimidas).
co.Naître
Já Amanhecia
antes,
muito antes da manhã preceder a Noite que a procria,
e assim no escuro, tão obscuro
claro me parecia tudo o que não via.
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
http://lishbuna.blogspot.com/2008/12/notcias-de-inspirao-crist-iv-outras.html
´"É Natal, ninguém leva a mal!" - I
Intitulado com um dito de um mascarado de Trás-os-Montes inicio aqui a publicação da parte final de um estudo já editado, em homenagem ao espírito arcaico, esquecido e encoberto desta época natalícia, o da Folia caósmica e metamórfica, hoje transformado no da folia consumista, festiva e desvairada emergência ainda da Festa da liberdade primordial e da saudade de tudo-nada ser.
...
É a mais que divina transgressão do divino, a trans-religiosa transgressão do religioso, a transcendência do transcendente, que encontramos, já não no contexto da cultura erudita, mas no da cultura popular, na arcaica tradição ritual e festiva que desponta, em pleno seio do medievo cristão e nas camadas mais baixas do clero, nas Festas dos Loucos, do Burro e dos Inocentes. Parecem constituir-se estas como novas formas das arcaicas e cíclicas festas de renovação e fecundação cósmica, por recriação do Caos primordial ou da originária Idade de Ouro, nos períodos de fim e início do Ano, nesse intervalo de doze dias, por vezes prolongados, que se crê não terem lugar no calendário temporal. Neles se suspende a ordem cósmica, reemergindo a liberdade primordial, anterior à constituição do universo das determinações, com a aparente solidez das diferenciações e formas ônticas, instituídas, funcionalizadas e hierarquizadas em supostos lugares naturais, e com a lei que estabelece as suas medidas e relações no plano cósmico e social. Tais festividades consistem assim na vivência do “sagrado de transgressão” que, neste período, se substitui à do “sagrado de respeito”, violando os interditos e as regras que normalmente asseguram a conservação da ordem do mundo e das mentes, mas que agora importa ultrapassar e destituir para que a realidade se recrie na a-cósmica liberdade do Infinito primordial. É que a diferenciação, determinação e fixação dos entes em seus limites implica uma privação, quer da primordial liberdade da ausência de forma, quer da plasticidade e imprevisibilidade das metamorfoses criadoras, transitando-se do tudo ser simultaneamente possível para o confinamento das possibilidades à sua actualização apenas parcial, exclusiva e sucessiva, com o inevitável sacrifício e aprisionamento do excesso de energia vital na ordem de um mundo de formas que, também inevitavelmente, acabam por temporalmente se desgastar e sucumbir no processo da sua cristalização e erosão recíproca, na imanente tensão em que se inter-dissolvem reintegrando-se no infinito primordial, como o sugere o conhecido fragmento de Anaximandro. Nas festas a que nos referimos emerge então a sacralidade da subversão e inversão de todas as formas supostamente normais de ser, pensar e agir, traduzida na religiosa vivência do riso, da paródia, da blasfémia, do sacrilégio, da desmesura e do intercâmbio, metamorfose, fusão e indistinção das formas, por via do mascaramento, do travestimento, do jogo, da fantasia, da licença e do excesso sexual e alimentar, da inversão e suspensão das funções sociais, num paroxismo orgiástico que faz da loucura a regra num autêntico e carnavalesco mundo às avessas.
Celebrações como a dos Loucos, do Burro ou dos Inocentes, moldando a exaltação evangélica da divina loucura de um Deus e de um Reino às avessas da normalidade mundana à continuidade da tradição pagã das celebrações do solstício de Inverno, das Crónia gregas, das Saturnalia romanas e das Calendas de Janeiro, entre outras, fazem do período que se estende da segunda metade de Dezembro até à Epifania, a 6 de Janeiro, “um contínuo carnaval”, tradicionalmente designado como a “libertas Decembrica” e vivido num singular misto de elementos pagãos e cristãos. “Mascarada” que, como diz Jean-Paul, “sem nenhuma intenção impura, interverte o temporal e o espiritual e transtorna a ordem social e os costumes, na grande igualdade e liberdade da alegria”. Vejamos as mais significativas características e simbolismo desses festejos cuja descrição se imortalizou literariamente nalgumas páginas célebres de Victor Hugo e, mais recentemente, no cinema, com o Corcunda de Notre-Dame, da Walt Disney.
- "Da Loucura da Cruz à Festa dos Loucos. Loucura, sabedoria e santidade no cristianismo", in Paulo Borges, Do Finistérreo Pensar, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2001, pp.148-151 (as notas de rodapé foram suprimidas).
segunda-feira, 22 de dezembro de 2008
Natal
NATAL (Fernando Pessoa)
Nem veio nem se foi: o Erro mudou.
Temos agora uma outra Eternidade,
E era sempre melhor o que passou.
Cega, a Ciência inútil gleba lavra.
Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.
Um novo deus é só uma palavra.
Não procures nem creias: tudo é oculto.
Voz dos párias, divina voz
[Um vagabundo hirsuto a rir-se com uma cerveja na mão, hoje, em Lisboa, às 10.04]
domingo, 21 de dezembro de 2008
Universo em festa*
Eram grãos de areia que nunca mais acabavam
Eram gotas de água salgada que nunca mais adoçavam
Eram estrelas que luziam e nunca mais se apagavam
Eram corações que pareciam que nunca mais batiam
E, logo ao lado, outros tantos em forma de coração que só amavam, só sentiam
Eram braços que só envolviam e confortavam
Eram olhos que só brilhavam e, ao longe, pareciam aquelas estrelas que luziam
Eram pés assentes na terra quente com as cabeças bem soltas nas nuvens
E as almas, essas, estavam vivas entre tudo e todos.
Eram almas soltas que nunca mais deixaram de sonhar
E o sonho?
O sonho.
O sonho tinha tantas cores como as do arco-íris vezes sete
Eram gotas de água, eram grãos de areia, eram estrelas.
Era um praia onde tudo e todos chegavam a cada instante e de lá saíam, em grande algazarra, sem saber para onde ir a seguir. Riam, dançavam, soltavam areia no ar, corriam, cantavam e sentavam-se à conversa com outro qualquer.
Era o mar a dizer-lhes que ficassem.
Eram as ondas a rebentar pelas costuras do mar
E de tanto tentarem alcançar a areia, as rochas, os pés secos
De tanto irem e virem
As ondas e o mar já iam e vinham como se não soubessem que nome tinham
Era o mar sem dar nome às coisas e a dizer que ficassem perto dele.
Eram grãos de areia que nunca mais acabavam
Eram gotas de água salgada que nunca mais adoçavam
Eram estrelas que luziam e nunca mais se apagavam
O universo em festa*
*
O texto foi publicado originalmente no meu blog pessoal.
Perdoem-me a partilha póstuma.
É este o meu desejo para todos os serpenteados e todos os emplumados,
para o Ano Novo que caminha até nós com os passos do tempo.
Ao qual acrescento com o coração:
Saúde!
Festa eterna na alegoria, no sonho e na manhã seguinte!
Fechem os olhos e deliciem-se com a festa de luz e cor que cada um tem em si mesmo!
Gargalhadas vindas do útero da alegria que todos trazemos cá dentro!
Saltos no infinito de tudo o que não somos.
Porque o que somos sempre deixamos de ser a cada momento, a cada passo do Universo.
E o Universo não se engana. O tempo passa porque é assim que tem que ser.
Raminho de cheiros para a consoada
PS. Uma sugestão: porque não colocar sobre o lugar de cada um na mesa um textinho destes, ou outro? Para vós vai este raminho, embrulhadinho em beijos.
sábado, 20 de dezembro de 2008
“Nós somos o sentido das coisas – há que criar as coisas!” (António Maria Lisboa)
“O que acontece em nós não depende da nossa vontade, da nossa vontade é a adesão incondicional ao que em nós acontece, da nossa vontade é a eliminação dos elementos aberrantes que contraem e desviam disso, da nossa vontade é cumprirmos exactamente isso. O que foi libertação de forças prender-nos-á, será um muro no nosso caminho, uma algema, se não passarmos de novo através das palavras. Criámos o seu novo sentido: há agora que criar a sua nova realidade. As coisas não estão feitas senão assim: nós somos o sentido das coisas – há que criar as coisas! Tudo se cumprirá implacavelmente – e da nossa vontade é isso e o nosso pensamento será isto pois não sairá de nós a não ser quando o nosso pensamento for já ele próprio o que se cumpre implacavelmente.” (António Maria Lisboa, “Exercícios sobre o sono e a vigília de Alfred Jarry”, in “Poesia de António Maria Lisboa”, Assírio & Alvim, 1977)
Quando, na fase inicial da maioria das práticas espirituais, se procura silenciar o fluxo do pensamento, o asceta apercebe-se rapidamente que aquilo que ele até então supunha ter origem em si próprio navega na verdade, e porventura anda atolado, num mar mais vasto e mais impessoal ou supra-pessoal, do que a sua próprio mente.
É quando procura manter-se, persistentemente, como testemunha de tal torrente - feita quer da “materiais” propriamente pensados, mas também dos diversíssimos sentimentos, emoções e memórias de que a mente se constitui local indistinto de armazenamento -, que verifica que é a sua própria adesão a tais “sementes” de “pensamento” que precisamente dá vida e alimenta essa inquieta corrente interna de um “mentar” inferior ancorado e dominador.
Ocorre-me - a propósito do que António Maria Lisboa aqui escreve acerca da criação dum novo sentido, criador de uma outra realidade, que por sua vez crie e re-crie as coisas mesmas -, uma singular demonstração de como linguagem, palavras, sentido e apreensão da realidade estão mais interligados do que talvez, apressadamente, supuséssemos.
“Talvez o filtro genético social mais comummente reconhecido seja o nosso sistema linguístico. Dentro de qualquer sistema linguístico específico, por exemplo, parte da riqueza da nossa experiência está associada a um número de distinções feitas em alguma área das nossas sensações. Em maidu, uma língua indígena americana do norte da Califórnia, apenas três palavras são utilizadas para descrever o espectro de cores. Dividem o espectro como se segue (as palavras em português são as aproximações mais chegadas):
Lak – Vermelho
Tit – Verde-azul
Tulak – Amarelo-laranja-castanho
Enquanto os restantes seres humanos são capazes de fazer 7.5000.000 distinções de cores diferentes no espectro de cores visíveis (Borng, 1957), os falantes nativos de maidu habitualmente agrupam a sua experiência nas três categorias fornecidas pela sua língua. Estas três palavras maidu para cores cobrem a mesma gama de sensação do mundo real que as oito palavras específicas para cores em português. Aqui a questão é que um falante de maidu é caracteristicamente consciente de apenas três categorias de experiência de cor, ao passo que o falante de português tem mais categorias e, portanto, mais distinções perceptivas habituais. Isto significa que, enquanto os falantes de português descreverão a sua experiência de dois objectos diferentes (digamos, um livro amarelo e um livro laranja), os falantes de maidu tipicamente descreverão a sua experiência da situação idêntica do mundo real como sendo a mesma (dois livros tulak).
Ao contrário das nossas limitações genéticas neurológicas, as introduzidas pelos filtros genéticos sociais são facilmente superadas. Isso é demonstrado mais claramente pelo facto de que somos capazes de falar mais de uma língua – isto é, somos capazes de utilizar mais de um conjunto de categorias ou filtros sociais linguísticos para organizar a nossa experiência, para servir como nossa representação do mundo. Por exemplo, tomemos a frase comum: O livro é azul. Azul é o nome que nós, como falantes nativos de português, aprendemos a usar para descrever a nossa experiência de uma certa porção do continuum de luz visível. Enganados pela estrutura da nossa língua, chegamos a presumir que azul é uma propriedade do objecto a que nos referimos como sendo um livro, ao invés de ser o nome que damos à nossa sensação.”(Richard Bandler e John Grinder, “A Estrutura da Magia – Um livro sobre linguagem e terapia”, Editora Guanabara Koogan, Rio de Janeiro, 1977)
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
Experiência fácil
Como seria a nossa cultura se ela fosse feita pelos livres, pelos sãos e pelos humildes, em vez dos que sofrem, estão sós e se sentem incompletos?
Muito se tentou no século XX "refundar" a cultura Ocidental, com resultados desastrosos.
De que forma a História nos poderia ensinar a fazê-lo de forma a que não voltássemos a pôr o pluralismo e, acima de tudo, vidas em risco?
De forma a que o maior risco que corrêssemos fosse cair no ridículo?
(desculpem-me tantas perguntas nos meus últimos posts, espero não estar a maçar vocês mais que a conta, mas quanto mais me embrenho nesta aventura, mais pergutnas me surgem, menos respostas, e mais sinto que escrever poemas ou textos em que digo "isto é" ou "isto não é" é algo completamente risível. Cada vez mais ponho em causa a própria pertinência do acto de escrever, ou até de pensar.
Desculpem-me o tom cáustico e a "sinceridade pornográfica" com que muitas vezes tenho escrito. Se não o fizesse, estaria a trair o que vivo e o que sinto.
Desculpem-me qualquer coisinha;-).)
Um grande abraço e desejo que fruam bem da "libertas Decembrica", desta festa extraordinária do "Sol Invictus",
A
Arena Vulgar
Se eu dissesse fechar os olhos. Se sentisse que os olhos se fecham e quando eu pedi para se fecharem sentisse o que teria sentido. Abro os olhos e não mais que meros tempos verbais. Ou não. Lá longe, ou melhor, sentir-Me lá longe, no ainda muito longe, muito para o além longínquo demais infinito, obriga-Me a imaginar. Caminhava pé após pé seguindo o apoio em apoio até ao passo seguinte.
A manhã era clara. Não mais que uma manhã azul, por causa da laranja que lentamente iluminava o imaginário. Não era sede que sentia, mas sim, a falta líquida da frescura. A manhã era clara e com ela o frio que a resumia a singularidade. Sim. Era uma manhã como muitas outras manhãs que sucedem a noite, fria como é normal. Acontecia-Me parar e mesmo assim era o impulso de continuar. Não era o pressuposto de chegar ainda mais longe, não era querer chegar mais além, não era estar longe do ponto de partida. Não houve início. Se sentisse a pergunta, diria que sim. Não tinha razões para negar. Tinha a consciência do estar-Se. Estava somente a andar. Se não sentisse nada, nada diria. Certamente no fim diria não, se não a tivesse imaginado.
A resposta obtida, caminhar sem noção da pergunta. Noção de estar perdida. Não. Não imaginava um deserto. Era demasiado complexo para se resumir a um ponto. Queria desenhar no passado o passo que dava em frente… Imaginava-Me na reticência em pausa. É demais. Avançava pois em frente, avançava de mãos dadas no interior, era coração que assim mo dizia. Não tinha medo, porque nada esperava descobrir. Lembrava-Me a pergunta não a tendo como tal. Faltava-Me a resposta sem ser necessária. Era profundo na minha intimidade. Não existiam esferas que me pudessem rodear. Não havia envolvente porque nem ar respirava. Não era somente ar. Em frente, e nunca o chegar. Era a falta dele que me denunciava na respiração. Agora, que o dia era azul, agora laranja em todo céu, era conforto e calor. Passo a passo era a linha residual que se projectava atrás do andar, linear, por causa do infinito atrás de mim. Recordei-Me neste momento. Não havia infância, não seria senilidade. Consciência e imediatamente passado. Não era recordação. Queria em mim velocidade. Laranja no alvo e uma seta em sua direcção, sempre maior sempre a si direccionada. Dividia-Me em passos que embora sucessivos eram diferentes dos anteriores, cada vez mais em frente, cada vez mais limitados em dimensão e sempre em linha recta. Falava de dentro para mim, noite, dia, liminar e locomoção. Por baixo dos pés não era chão. O ar demasiado que não acredito. Definia-Me inexistente e amplamente infinito. Podia parar por aqui, mas a força que se descarregava sobre os meus ombros impelia-Me em rumo. Não era direcção, essa previamente definida. Seria decisão por que movimentava. Continuava o dia, a meio dia da existência. Na imagem em redor, que aqui descrevo como paisagem, nada havia de novo. Apenas a luz que agora perpendicular eliminava qualquer outro eu em rasto bandeado. A sombra mensurável. O reflexo no espelho. Estaria eu a andar. Nem mais uma pergunta, respondi-Me. Agora, nem laranja nem menos tangerina, somente um céu aberto em todo o seu esplendor, azul, finito em cor, estampado como numa fotografia. No entanto, era o calor que me fazia leve, como qualquer imaginário de leveza em contraste com o meu corpo que de momento se arrastava, como uma pena. Sede, não a via.
Muito menos vontade de saber o que era. Vontade somente. Esse meu trilho que não desaparece, que cresce na sombra da minha existência. Cada vez maior ou qualquer outro sinónimo que defina crescente em todo o seu sentido. Óbvio, não é. Cada vez maior prendeu-Me a atenção. Não me lembro de ter parado. Acho que continuei a andar, não sei. Sim. Não. Não continuei a andar. Imobilizei-Me. Parado a primeira e última vez, o suficiente para descrever a infinita linha por mim impressa. Num chão, que não o era. Mas, subitamente desviando o olhar sabia perfeitamente enquadrar-Me entre início e fim. Ontem e amanhã, passado e ultrapassado. Por mim, em pegadas de alegoria. Só azul em frente, tomando-o como rumo. Atrás, laranja cada vez mais forte. Sabia-o e nem por um instante senti curiosidade em aprová-lo. Comprovação de estado, era supérflua. De dentro, apenas uma luz fantasiada de ideia. Ou um céu, aberto em seu interior. Como isso não fosse suficiente. Por fora, apenas a tarde. Tangerina com reflexos de limão. Cada vez mais quente, no breve calor que agora aquecia o meu corpo lançando no horizonte uma silhueta, do meu eu. Grande, como qualquer sombra projectada em fim de tarde. Durante algumas horas foi esta mesma sombra que me mantinha consciente, nunca ilusão, muito menos miragem. Absorvê-la, na geometria casual, mutável e ao mesmo tempo para mim, simples. Simbólica. O que foi pontual e referido como sombra inexistente, por mim, a algumas horas de distância, ou dias não me lembro, era uma linha esticada em fundo, sem volume aparente, que fugia com o chegar do fim da tarde.No tempo, onde o estar-Se não existe, um tempo onde o tempo não o é, um tempo e um espaço imaginados, longínquos como qualquer outra nuance de infinito. Era noite, ou o dia que se fechava. Desejei ouvir música. Vezes sem conta, e esta voz interior que me diz tanto e com razão. Ritmo apenas o resultante do contínuo bombear do coração, do meu, embora não o sentisse. Talvez apenas um pulsar das mãos que teimosamente permaneciam imóveis, adjacentes aos braços sempre estirados pela gravidade que pouco a pouco parecia devolver-Me. Tentei lembrar-me de uma música e nunca as minhas orelhas se abriram a qualquer harmonia, apenas andamento. Em contexto de brincadeira. Não era de hoje o problema de surdez. A ausência da fala. Mudez de qualquer palavra era irmã acompanhante do abafado rugido maternal. Deixei três filhos para trás, numa tentativa vã de me ver livre deles. Avô. Porque nem sempre se recordava. Mulher que não tive e o meu último irmão, meu avô também. Nunca fui pai. Vagabundo sem fim, com um brilho nos olhos. Uma trova de tios. Fins de tarde numa casa de campo, e o Sol. Não o via, simplesmente. Palavra, só recordação. Palavras definidas por convenção, não por nós, porque de momento palavra única simboliza-Me, em presença, não sendo para isso necessária qualquer género de explicação, muito menos significado. Denso, não é. Foquei-Me então. Creio apenas por uma única vez ter reparado por breves instantes o que por detrás de mim acontecia. Ou aconteceu, dada a brevidade do acontecimento esporádico, ou um qualquer piscar de olhos. Olhei-Me em frente. O peso na cabeça demasiado. Demasiadamente forte para se contrariar. Gravidade de colapso das primeiras vértebras subjacentes. Enrolaram-se lentamente até que todo o meu corpo respondeu. Não. No chão. Ou base. Superfície imaginada. Amparei-Me em queda antecipando-Me a uma quebra total de sentidos. Tacteei-Me a medo. Tudo estava na mesma. Ouvi-Me em diálogo, um eu interior para o eu que não o era e mais não consegui ver. Apenas uma marca. Noite, ou escuro total. Ainda não. Assumo a primeira paragem. Não, consegui, andar. Imobilizei-Me em passo pendente. A surpresa de sentir na sola do pé esquerdo a forma por mim imposta em início imaginado. Ou não. Recomeçarei tudo outra vez, de apoio em apoio até ao passo seguinte. A noite era negra, qual capa sem pontos de luz. Sempre houve descoberta, moldada na perfeição pela sola dos meus pés. E avancei, porque até agora nunca senti o contrário.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2008
Esta noite sonhei III
Mas quando ela saiu debaixo de água os olhos demoraram na adaptação da luminosidade e da cor. A cor chegou primeiro aos seus olhos salgados, do que o foco.
Mesmo assim, era longe.
Quando chegou mais perto, viu...
Eram Línguas de Fogo do Santo Espírito da Mãe Natureza que ardiam.
Não havia uma foligem no ar, não havia fumo.
Era a Mãe Natureza que brotava de si mesma
e dela saiam línguas vermelhas, a fervilhar, num ardor de Amor
Num Amor que ilumina qualquer par de olhos que o vislubrem, ao longe
Se fechar os olhos, ainda vejo a cor e a luz.
E as labaredas vermelhas a arder*