terça-feira, 17 de novembro de 2009
Portugal, Europa e Ocidente: o enigma do “olhar esfíngico e fatal”
- Gustave Moreau, Édipo e a Esfinge.
“A Europa jaz, posta nos cotovelos:
De Oriente a Ocidente jaz, fitando,
E toldam-lhe românticos cabelos
Olhos gregos, lembrando.
O cotovelo esquerdo é recuado;
O direito é em ângulo disposto.
Aquele diz Itália onde é pousado;
Este diz Inglaterra onde, afastado,
A mão sustenta, em que se apoia o rosto.
Fita, com olhar esfíngico e fatal,
O Ocidente, futuro do passado.
O rosto com que fita é Portugal”
- Fernando Pessoa, “O dos Castelos”, Mensagem.
É com este poema que Fernando Pessoa abre a Mensagem, cujo nome cifra o dizer latino: Mens ag(itat) (mol)em – o pensamento/a inteligência/a mente impele/põe em movimento a massa(matéria)/multidão. O presente poema deve pois ser considerado como o primeiro momento disso que todo o livro pretende e anuncia ser: mover e orientar numa determinada direcção a massa passiva e inconsciente das coisas e/ou da mole humana, que tem a potencialidade de deixar de o ser, despertando do sono que a equipara à matéria e pondo-se a caminho de um estado superior àquele em que se encontra.
De quem fala o poema e o que diz? O poema fala da Europa, figurada, de acordo com as sugestões do seu mapa, como um ser, porventura feminino, que “de Oriente a Ocidente” se deita, apoiado “nos cotovelos”, “fitando”, ou seja, olhando fixamente para um alvo diante de si. Um dos cotovelos pousa na Itália e o outro na Inglaterra, sendo este que sustenta a mão “em que se apoia o rosto”, onde a moldura romântica dos cabelos evoca “olhos gregos”. Esse rosto, “o rosto com que fita”, “é Portugal”, o finistérreo extremo-ocidente europeu, voltado para o Oceano.
O que fita esse rosto-Portugal e como o fitam os seus “olhos gregos”? O seu “olhar esfíngico e fatal” fita “o Ocidente, futuro do passado”. Uma esfinge é um monstro, com um corpo misto de vários animais e rosto humano, como no Egipto e na Grécia, enquanto um “olhar esfíngico e fatal” é um olhar que expressa um enigma sempre letal, pois estrangula (sphingo) e devora quem não o decifrar, ao mesmo tempo que se suicida caso a decifração aconteça, como no Édipo Rei, de Sófocles. Portugal é assim a feição humana de um monstro, que se estende de Oriente a Ocidente contemplando fixamente o Ocidente/Oceano. O Ocidente, do latim occidens, entis, é o particípio presente do verbo occidere, o qual, se for intransitivo, significa morrer e, se for transitivo, significa matar. O Ocidente é assim o lugar onde se morre ou se é morto, como acontece com o sol que aparentemente aí declina e desaparece. Esse lugar é também o Oceano, o Okeanos que os gregos visionavam como o grande rio caótico e turbilhonante que corria circularmente em torno do mundo. Em qualquer dos casos, o Ocidente e o Oceano, para além da sua determinação geográfica, assinalam o aparente limite da terra firme do conhecimento e da vida, figurado na linha igualmente aparente do horizonte, cuja etimologia grega (orizón) designa “o que limita”. É isso o “futuro do passado” e é isso que a Europa-Esfinge, que “jaz […] / De Oriente a Ocidente”, “fita” com o rosto-Portugal.
Este confronto configura uma situação-limite, na qual uma das instâncias do confronto – Portugal, rosto da Europa, e o Ocidente/Oceano, “futuro do passado” – não pode sobreviver. O rosto-Portugal fita, ou seja, foca unidireccionadamente, concentrando toda a energia do desejo numa visão intensa, isso que está diante de si, esse Ocidente/Oceano/Horizonte ignoto que é o “futuro” desse “passado”-Europa a que Portugal ainda pertence, porém já na condição anfíbia de finistérrea ponta extrema, lançada para o alvo da alteridade absoluta, irredutível a qualquer identidade europeia, ocidental ou outra. Rosto humano da monstruosa Esfinge-Europa, que aqui pode figurar todo o próprio “passado” euroasiático da história do mundo, ou tudo o que ela mesma aspira a ultra-passar em si, Portugal figura o descentramento da história, da vida e da consciência europeia, e/ou da própria consciência, para o desenlace crucial do morrer ou matar que no Oceano/Ocidente se simboliza.
Não esqueçamos que nesta descrição da Europa se destacam explícita e implicitamente os quatro momentos-figuras histórico-civilizacionais que Pessoa identifica nos quatro impérios “passados” e perecíveis cuja superação o Quinto Império simboliza: “E assim, passados os quatro / Tempos do ser que sonhou, / A terra será teatro / Do dia claro, que no atro / Da erma noite começou. // Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / para onde vai toda idade. / Quem vem viver a verdade / Que morreu D. Sebastião?” (“O Quinto Império”). No poema inaugural da Mensagem, a Grécia está representada pelos “olhos gregos”, Roma e a Cristandade pela Itália e a Europa por si mesma e pela Inglaterra, que personifica o quarto império noutros textos, em prosa, de Pessoa.
O mais fundo enigma reside, contudo, no facto de Portugal ser o “rosto”-“olhar esfíngico e fatal” com que a Europa fita o Ocidente. O que quer dizer que o enigma mortal não está propriamente diante, no Ocidente/Oceano, mas antes nesse que os fita. Portugal-rosto da Europa é o próprio esfíngico enigma, que, numa inesperada inversão da situação aparente, é suposto ser também contemplado pelo Ocidente/Oceano. Quem levará quem à morte? Paralisará e devorará Portugal-rosto da Europa o Ocidente/Oceano, caso este não decifre o enigma que transporta? Porá Portugal-rosto da Europa fim à vida, caso o Ocidente-Oceano o decifre? Morrerá o futuro e a alteridade às mãos do passado e do mesmo ou serão antes estes a perecer perante aqueles?
Toda a lógica e intencionalidade da Mensagem e do pensamento pessoano apontam para a segunda possibilidade. E tudo se esclarece se considerarmos que em Portugal se figura a impossível coexistência das duas figuras e a encruzilhada crucial na qual uma tem de ser sacrificada. Talvez seja precisamente esse o enigma. Tudo depende do que vai predominar em Portugal e, a um nível mais fundo, na possibilidade universal do homem e da consciência que Portugal aqui figura (como Israel, a Cristandade ou o Islão nas respectivas culturas): ou a asfixia e deglutição da adveniente alteridade pela monstruosa mesmidade passada ou o autocolapso desta no desentranhamento e desvendamento do secreto fito a que no mais íntimo aspira - morrer e devir, autotranscender-se trespassando a linha do horizonte e revelando a sua mera aparência, converter e revelar o limite como limiar. Ou o quarto ou o Quinto Império.
(texto em elaboração)
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8 comentários:
Geograficamente... assim é. Quanto ao futuro do passado... passa inquestionavelmente por Barak Obama, ficanco Portugal... a chuchar no dedo. Irreversivelmente. Sonhos do V Império: tudo à viola! Por este andar... de marcha atras, às arrecuas. JCN
" onde a Terra acaba e o Mar começa..."
Pessoa vê Portugal como rosto da Europa - virada para o Mar, como fim do Mar, princípio da Terra:
"aqui onde o Mar acaba e a Terra principia"
Mais como cais de chagada, refluxo dos Descobrimentos
cais de chegada
- não sei como corrigir
Olhe que não, senhor Platero, ollhe que não! De resto, há que saber em que altura... isto escreveu. De dia, no escritório? No seu quarto... depois de umas quantas libações?... Antes me quero... com Camões, embora arruaceiro... mas tocado pelo génio. O meu padrão de referência. Cabeça da Europa... ou rabo da Europa?!... Ou ambas as coisas, conforme a posição em que se esteja?!... Metáforas, metáforas, metáforas! E que é a Poesia... sem elas?... Uma sensaboria. JCN
Permita que lhe lembre, meu caro PLATERO, que, na altura em que o "Pessoas escreveu a "Mensagem", Portugal não era ainda, nem pensava sê-lo, um "cais de chegada", mas um cais de embarque para as províncias de além-mar, o tal Império, onde deixámos pedaços da nossa identidade, pedaços de portugalidade, que ainda vão perdurando. Quantos "discípulos" por lá deixei... da cor da minha pele, que era também a cor da sua pele. Fala-se tanto de cor! De qualquer maneira, não distorçam... a mensagem da "Mensagem", um conjunto de poemas de desigual valor e de inspiração nietzscheana e medularmente nacionalista. Portugal só passou a ser cais de embarque depois do regresso a casa com armas e bagagens e com o rabo entre as pernas. Que triste fim de império, que também ajudei a construir e... a desfazer! O "Pessoas" não passou por isso, nem nunca o teria imaginado! Qual "cabeça"... nem qual carapuça! Orla... e viva o velho!
Como o lamento, eu... "neto de heróis, poetas e marujos"! Como vossemecê, como tantos outros como nós! JCN
jcn és um velho colonialista que fugiu com o 'rabo entre as pernas'? bem me parecia.vai tocar 'maracas' és um violinista fugitivo.
Meu caro amigo BAAAL, só não fugiu com "o rabo entre as pernas" quem não tinha pernas para meter o rabo ou nem rabo tinha para entre as pernas meter. O seu caso teria sido... se vossemecê tivesse dado o corpo ao manifesto como qualquer outro português... de fibra! Ora toma lá esta! JCN
combati na batalha do cuíto-cadaval ao lado dos camaradas cubanos(a), médicos, engenheiros, filósofos e não te enxerguei.
à luta
tem tento jcn.
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