O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Anabelle

As chamas consomem-me... Sinto labaredas por todo o corpo que, de tão mutilidado que já está, desentranha a minha alma. É como um motim de prisão: depois de muitos anos de prisão solitária, finalmente a alma pode respirar a brisa do crepúsculo marítimo. O fogo purifica a merda acumulada durante anos a fio. Merda que se formou a partir do medo... medo de me esventrar em ripas e fundir-me no tudo que é nada... medo de esfaquiar o casulo egótico que me envolve e me adormece em lençóis de seda... Não! Basta lençóis de seda!! Basta o ópio aburguesado que adormece os meus sentidos... Basta as palavras eu, me, conjugações na primeira pessoa, nomes, ... Basta!!

As chamas queimam-te e põem-te louco... Libertas-te do teu cadáver e voas... Voas... VOAS... És omnisciente e saboreias o mundo aí de cima. Vês a relatividade que reina no grande cárcere que nos empareda e sentes compaixão. Vês os muros que delimitam a relatividade de cada ser senciente e sentes compaixão. Vês as muralhas que definem os vários determinados tipos de culturas, religiões, raças, cores, cheiros, vozes, sabores e sentes compaixão... Sentes compaixão pois a tua sabedoria diz-te que os muros e muralhas que definem são pontes que interligam o vário. Sentes compaixão pois os seres, cegos na sua relatividade não vêem as pontes. E cais...

Vi-te. Disseste-me que te chamavas Anabelle. Disseste-me que precisavas de dinheiro para pagar as contas da casa. Que não almoçavas nem jantavas há muito tempo... Que nem te lembravas da tua última seia... Que o teu filho era um drogado que te espanca e te rouba dinheiro... Que o teu marido fugiu para o Brasil  com um travesti e morreu de sida... Que não tens pai nem mãe... Anabelle, que vida miserável tu tens! Mas eu que, tal como tu, vendo a alma para alimentar o corpo, tenho uma vida menos miserável que a tua? Tal como tu, prostituo-me para pagar as contas; como o teu filho, sou viciado em prazeres que me fazem sofrer; travesteio-me no trabalho, na família, com os amigos dos copos, com a amante... De tanto travestiar vivo em esquecimento e morro daquela sida que corrói as máscaras do bailado travestiano que foi a vida; corrói as máscaras e o mascarado - e é aí, Anabelle, que se encontra a miséria da vida: viver, viver e viver e não reconhecer o mascarado que há por detrás das máscaras... Morrer, morrer e morrer e não saber renunciar as máscaras que travesteiam.

Vem, Anabelle, vamos fundir os nossos corpos; esqueçamo-nos um no outro como num bailado infernal para lembrar os deuses que fomos e esperar que um dia o sejamos para todo o sempre. Ámen!



1 comentário:

João de Castro Nunes disse...

Que metafórica tragédia, senhor KUNZANG! Mas... agradável de se ler. Maldita a prisão... que nos encarcera a alma! Que ânsia de planar... entre as estrelas, sem peso nem formato! Como deuses... entre os deuses! Voltar ao começo... e não voltar a começar!. Quem dera, senhor KUNZANG!
JCN