O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sábado, 18 de outubro de 2008

Palas Atena


















Narra o mito que a Sabedoria e a Justiça, personificadas pela deusa grega Athena, é fruto de Métis (a astúcia, a inteligência) com o poderoso Zeus, ordenador do Cosmos.
Após ter sido proferido pelo oráculo que, se Zeus tivesse uma filha, ela se tornaria ainda mais poderosa que ele, Zeus tratou de engolir Métis para impedir o nascimento. Assim, Athena é gerada na cabeça do soberano do Olimpo (por isso, a deusa é associada ao lógos).
Findado o período de gestação, o supremo deus começou a sentir terríveis dores de cabeça, pois enquanto a Justiça não nasce, elas são inevitáveis.
Desesperado e no limite, Zeus ordena ao ferreiro divino Hefestos (Vulcano) que lhe abra a cabeça. Mesmo a contragosto, com técnica e precisão, desferra-lhe o machado de ouro certeiro e todos se surpreendem ao verem surgir, imponente e armada, pronta para a guerra, a deusa Palas Athena.
Palas significa "a donzela", pois a poderosa filha pede ao pai para manter-se sempre virgem e, desta forma, impor-se com a autoridade de quem não se deixa seduzir ou corromper.
Sua principal característica física é o porte altivo. Invocando a proteção de Athena sobre todo e qualquer embate, tem-se a vitória como certa, uma vez que Palas Athena é sempre acompanhada por Niké (a vitória).


Com a espada de ouro em punho ou lança resplandescente (numa imagem mais arcaica), que fora presente do deus da techné Hefestos, Athena já nasce fortemente armada, pronta para a guerra. Mas o combate da deusa grega é diferente da guerra do bélico deus Ares.
Na mitologia grega, Ares, é o cruel deus da guerra, da carnificina. Individualista, não titubeia em impor sua caprichosa vontade a quem quer que seja. Enaltecido pelos Romanos, impulsivo, Ares é um deus de caráter epimetéico: primeiro age, depois pensa.
Pensar é atividade da mente, do elemento Ar, este sim, distingue os homens das bestas. Daí a prudente razoabilidade de Athena ser tão necessária à manutenção da ordem (Cosmos) e à evolução do espírito humano.
De gosto pelo desafio da conquista, Ares é acompanhado de Éris (a Discórdia), que com seu archote em chamas acende o furor no coração dos soldados e seus filhos, Deimos (terror) e Phóbos (medo), também servidores fiéis desse funesto deus.
O espetáculo hediondo da carnificina causa horror a deusa Athena. Os gregos sempre preferiram a sábia, justa guerreira Palas Athena, filha da razão do soberano do Olimpo. Athena é também patrona da guerra, mas trata-se do combate feito com inteligência e astúcia, motivado por um ideal honroso, guerra somente enquanto último recurso, quando torna-se insuficiente a lúcida resolução diplomática e pacífica de qualquer polémica. Uma batalha também pode ser encarada como última e importante argumentação na defesa da justiça quando todas as outras falharam.
Sempre às turras com seu inimigo Ares, pois nem sempre encontram-se do mesmo lado na batalha, Palas (a donzela) será a única mulher a imiscuir-se aos homens, sendo sempre respeitada por eles. Antes do começo da batalha, eles sentem sua presença inspiradora e com isso anseiam mostrar seu heroísmo. “Sacudindo a terrível égide, a deusa brada e corre veloz entre as fileiras convocadas à batalha. Um momento atrás, esses homens haviam aplaudido com júbilo a ideia de voltar para sua pátria; agora a esquecem por completo: o espírito da deusa faz agitar todos os corações com ardor bélico”.
Renomados heróis como Tideu, Hércules, Ulisses e Aquiles dobram-se aos seus sábios conselhos.
Quanto ao herói Tideu, Athena foi sua fiel companheira de batalha, até quis torná-lo imortal. Aproximou-se do herói ferido de morte trazendo na mão a bebida da imortalidade. Mas ele estava a ponto de fender violentamente o crânio do adversário morto para sugar-lhe o cérebro. Horrorizada, a deusa retrocedeu e o protegido para quem ela cogitava o mais elevado destino mergulhou na morte comum, pois tinha desonrado a si mesmo.
“Athena seria mulher porque os orgulhosos heróis que se deixaram conduzir por ela não se submeteriam tão facilmente a um varão, mesmo que fosse um deus”.
Quando em fúria cega Aquiles está prestes a liquidar Agamémnon, Athena toca seu ombro e o aconselha a dominar-se, contentando-se em ofender o Atrida somente com palavras. O herói prontamente guarda a espada já desembainhada.
Refletindo sobre a máxima de Heráclito: “A Guerra é Pai de todas as coisas”, é pela espada de Athena que se impõe a Justiça.

Athena carrega, no peitoral de sua armadura a cabeça de Medusa, a rainha das Górgonas.
As Górgonas são três irmãs (Medusa, a dominadora; Euríale, a errante e Esteno, a violenta) que simbolizam os inimigos interiores que temos de evitar. São deformações monstruosas da psique nascidas do desvirtuar de três pulsões humanas: sociabilidade (Esteno), sexualidade (Euríale) e espiritualidade (Medusa). Como a perversão espiritual prevalece sobre as outras, Medusa é conhecida como rainha das Górgonas.
A perversão da pulsão espiritual, por excelência, é a vaidade (imaginação exaltada em relação a si mesma) que é simbolizada pela serpente. Em Medusa, inúmeras serpentes coroam sua cabeça.
No frontispício do templo de Apollo (irmão de Athena), deus da harmonia, lêem-se as palavras que resumem toda a verdade oculta dos mitos: “conhece-te a ti mesmo”. A única condição do conhecimento de si mesmo é a confissão das intenções ocultas, que, por serem culpáveis, são habitualmente maquiadas pela vaidade (por uma justiça falsa, pois sem mérito, infundada). A inscrição reveladora significa, portanto: desmascara tua falsa razão, ou, o que dá no mesmo, aniquila tua vaidade. Faz-se necessário a clarividência em relação a si mesmo, o inverso do ofuscamento vaidoso e petrificante.
Ver Medusa significa: reconhecer a vaidade culposa, perceber a nu suas falsas razões, suas intenções ocultas, o que ninguém consegue confessar a si mesmo, da qual ninguém suporta a visão.
A cabeça da Medusa foi presente do herói Perseu, a quem a deusa Athena auxiliou em combate emprestando-o seu escudo, para que não a encarasse de frente e ficasse estagnado. O escudo reluzente de Athena, ao refletir a imagem verídica das coisas e dos seres, permite conhecer a si mesmo: é o espelho da verdade. Neste escudo, o homem se vê tal como é, e não como gosta de imaginar ser.
Athena é a deusa da combatividade espiritual (as três manifestações da elevação espiritual são a verdade, a beleza e a bondade). A sapiência, o amor pela verdade é a condição para ascender ao conhecimento de si e, em consequência, para adentrar na harmonia (Apollo).
Para derrotar a Medusa, foi necessário que o herói a surpreendesse enquanto dormia pois o homem somente é lúcido e apto ao combate espiritual quando a exaltação de sua vaidade não está desperta. Arma muito cobiçada, mesmo morta, a cabeça da Medusa continuou mantendo seu poder de petrificar quem a encarasse de frente.
Contra a culpabilidade advinda da exaltação vaidosa dos desejos, não há senão um único meio de salvaguarda: realizar a justa medida, a harmonia.
A deusa, símbolo da combatividade que inspira o amor à verdade, convida os mortais a reconhecerem-se em Medusa, incitando-os à luta contra a mentira essencial, a mentira subconscientemente desejada, o recalcamento, as falsas razões. A cabeça cortada prova que a Medusa não é invencível.
Antes de merecer o apoio de Athena, todo mortal deve encarar o símbolo da decadência espiritual (a vaidade). Somente assim tem-se certeza de que sua reivindicação não oculta outra intenção, ou seja, não é capricho, teimosia. Ante a imagem da Medusa, quem busca a deusa clamando por justiça tem somente duas possibilidades: contar com sua proteção (vitória certa), se já passou pela prova da Medusa, ou imobilizar-se no pânico e petrificar-se.


As aves, por serem consideradas os seres mais próximos dos deuses, foram, conforme suas características e atribuições, associadas a eles. (...) À atenta coruja coube a companhia da sábia Athena.
Vemos a imagem da coruja, símbolo de uma vigilância constantemente alerta, nas mais antigas moedas atenienses. A coruja, em grego gláuks “brilhante, cintilante”, enxerga nas trevas. Um dos epítetos de Athena é “a de olhos gláucos” (esverdeados).
Em latim é Noctua, “ave da noite”. Noturna, relacionada com a lua, a coruja incorpora o oposto solar. Observem que Atena é irmã de Apollo (Sol). É símbolo da reflexão, do conhecimento racional aliado ao intuitivo que permite dominar as trevas. Apesar de haver uma forte associação desta ave à escuridão e a sentimentos tenebrosos, o que é natural a um ser noturno, o fato de ela ter sido (devido a suas específicas características) atribuída à deusa Athena também a tornou símbolo do conhecimento e da sabedoria para muitos povos.
A coruja é uma excelente conhecedora dos segredos da noite. Enquanto os homens dormem, ela fica acordada, de olhos arregalados, banhada pelos raios da sua inspiradora Lua. Vigiando os cemitérios ou atenta aos cochichos no breu, essa embaixadora das trevas sabe tudo o que se passa, tendo-se tornado em muitas culturas uma profunda e poderosa conhecedora do oculto.
(...) Eis a ave da deusa da Sabedoria e da Justiça: atenta coruja, cujo pescoço gira 360º, possuidora de olhos luminosos que, como Zeus, enxergam “O todo”. Devido a todos esses atributos, a Coruja simboliza também a Filosofia, os Professores e nossa proposta de Conhecimentos Sem Fronteiras: integrar todas as formas de conhecimento com o olhar para O Todo.


"Quando a filosofia pinta cinza sobre o grisalho,
uma forma de vida já envelheceu e, com o cinza
sobre cinza não se pode rejuvenescer, apenas reconhecer;
A coruja de Minerva (Atena) alça seu vôo
somente com o início do crepúsculo."
Hegel (1770-1830), "Filosofia do Direito"

4 comentários:

Unknown disse...

Quem não ache aqui os "outros valores mais altos...", mil perdões pela maçada.

Unknown disse...

(E quem diz aqui Filosofia, pode querer dizer Política, Ciência...)

Unknown disse...

"Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos, folheio-os então, como a um livro que se folheia e se torna a folhear sem ler mais que palavras inevitáveis. É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio. Em todos os meus sonhos ou apareces, sonho, ou, realidade falsa, me acompanhas. Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade, o teu corpo essencial descontornado para planície calma e monte de perfil frio em jardim de palácio oculto. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos. Quem sabe se as paisagens dos meus sonhos não são o meu modo de não te sonhar? Eu não sei quem tu és, mas sei ao certo o que sou? Sei eu o que é sonhar para que saiba o que vale o chamar-te o meu sonho? Sei eu se não és uma parte, quem sabe se a parte essencial e real, de mim? E sei eu se não sou eu o sonho e tu a realidade, eu um sonho teu e não tu um Sonho que eu sonhe?
Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Teu perfil? Nunca é o mesmo, mas não muda nunca. E eu digo isto porque sei, ainda que não saiba que o sei. Teu corpo? Nu é o mesmo que vestido, sentado está na mesma atitude do que quando deitado ou de pé. Que significa isto, que não significa nada?
(...)
Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa.
Esplendor do nada, nome do abismo, sossego do Além...
Virgem eterna antes dos deuses e dos pais dos deuses, e dos pais dos pais dos deuses, infecunda de todos os mundos, estéril de todas as almas...
Esplende, ausência de sol; brilha, luar que cessas...

Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas.
(...)
És a mulher anterior à Queda, escultura ainda daquele barro que paraíso.
(...)
Pura só tu, Senhora dos Sonhos, que eu posso conceber amante sem conceber mácula porque és irreal. A ti posso-te conceber mãe, adorando-o, porque nunca te manchaste nem do horror de seres fecundada, nem do horror de parires.
(...)
Quem sabe se sonhando-te eu não te crio, real noutra realidade; se não serás minha ali, num outro e puro mundo, onde sem corpo táctil nos amemos, com outro jeito de abraços e outras atitudes essenciais de posse? Quem sabe mesmo se não existias já e não te criei nem te vi apenas, com outra visão, interior e pura, num outro e perfeito mundo?
(...)
Não sei mesmo já [se] não te amei, num vago onde cuja saudade este meu tédio perene talvez seja. Talvez sejas uma saudade minha, corpo de ausência, presença de Distância, fêmea talvez por outras razões que não as de sê-lo.

Posso pensar-te virgem e também mãe porque não és deste mundo. A criança que tens nos braços nunca foi mais nova para que houvesses de a sujar de a ter no ventre. Nunca foste outra do que és e como não seres virgem portanto? Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Sê o Dia Eterno e que os meus poentes sejam raios do teu sol possuídos em ti.
Sê o Crepúsculo Invisível e que as minhas ânsias e desassossegos sejam as tintas da tua indecisão, as sombras da tua incerteza.
Sê a Noite Total, torna-te a Noite Única e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação...
(...)
Realizadora dos absurdos, Seguidora de frases sem nexo. Que o teu silêncio me embale, que a tua mão me adormeça, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte, ó heráldica do Além, ó imperial de Ausência; Virgem-Mãe de todos os silêncios, Lareira das almas que têm frio, Anjo da Guarda dos abandonados, Paisagem humana e irreal de triste e eterna Perfeição.

Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Porque tenho de te falar com ternura e amoroso sonho, as palavras encontram voz para isso apenas em te tratar como feminina.
Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto.
(...)
Ocupas o intervalo dos meus pensamentos e os interstícios das minhas sensações.
(...)
Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua no meu céu para que o causes(...).

E se acaso falo com alguém longínquo, e se, hoje nuvem de possível, amanhã caíres, chuva de real sobre a terra, não te esqueças nunca da tua divindade original de sonho meu. Sê sempre na vida aquilo que possa ser o sonho de um isolado e nunca o abrigo de um amoroso. Faz o teu dever de mera taça. (...) Ninguém diga de ti o que a alma do rio pode dizer das margens, que existem para o limitar. Antes não correr na vida, antes secar de sonhar.

Que o teu génio seja o ser supérflua, e a tua vida a arte de olhares para ela, de seres a olhada, a nunca idêntica. Não sejas nunca mais nada.
Hoje és apenas o perfil criado deste livro, uma hora carnalizada e separada das outras horas. Se eu tivesse a certeza de que o eras, ergueria uma religião sobre o sonho de amar-te. És o que falta a tudo. És o que a cada coisa falta para a podermos amar sempre. Chave perdida das portas do Templo, caminho encoberto do Palácio, Ilha longínqua que a bruma nunca deixa ver..."
Fernando Pessoa

Anónimo disse...

Mas de quem é o texto do post?