O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 10 de outubro de 2008

SOBREVOANDO O ATLÂNTICO

Há uma parte de teu sonho, Amiga,
de que não te lembraste: viste sair do mumificado coração
de uma Menina egípcia — filha de Nefertiti — a mandala de folhas verdes.
Houve quem amasse as pequeninas folhas,
elas cresceram e à sua sombra lançou Sócrates
a ideia geral (disse Platão) de que o corpo
é a face visível do espírito e o espírito
a invisível do corpo; e ao lugar onde tudo assim reina
designou misteriosamente ou misticamente por 324.
E quando agregou a si os que talharam o mármore,
os que dispuseram as linhas e os que compunham palavras,
a todo o conjunto chamou ele Talhamar.
E outra vez, do mumificado coração de uma Menina grega
surgiram folhas verdes que tiveram quem as amasse:
aí houve engenharia e direito e administração
e agudo senso do concreto — e a tudo isso se chamou Roma.
Só que faltava mundo ao mundo e de novo
do mumificado coração de uma Menina —
filha de pai romano e de mãe bárbara, à sombra
se chamou Catedral e nela houve complexa música
e poetas de variadas línguas nela escreveram Poemas
e se lançaram matemáticos a distantes regiões
de que nem Euclides tivera ideia. Viste agora, Amiga,
nascer outra mandala — e as amamos nós, às suas folhas
e elas vão ser a plena liberdade do homem
e a imaginação imperando no mundo e o Paraíso reconquistado
e tão absoluto Amor que todas as filosofias
lhe serão apenas achas de fogo e nele, por Deus, nos consumiremos.

- George Agostinho da Silva, Cadernos Rioarte [1985], in Dispersos, p.787.

4 comentários:

Anónimo disse...

Ai as folhas verdes do bosque...
Ai os vitrais da catedral...
Ai a liberdade que nasce do verde e se escreve no vidro, dos que têm mãos de vidro e olhos transparentes e têm lágrimas que escrevem...

Obrigada, Paulo, por o ler isto sentir que por mim correm arrepios do coração mumificado de uma Menina grega. Mas agradeço ter amigos que os recebem e me lembram outros movimentos espirituais cuja beleza é a morada para esse Rosto em que deixarei o meu beijo mais sagrado, guardado no fundo mais fundo, no abismo da alma.

Anónimo disse...

Poderão falar mais neste blog do abismo da alma?

Anónimo disse...

Olha-te e olha tudo mais fundo que o que tens por fundo e talvez o/te encontres.

Anónimo disse...

Em mim tenho o mundo inteiro
e mais que tudo as estrelas
é procurá-las no céu
o que me impede de vê-las

– Agostinho da Silva, "Quadras Inéditas", p.39.