sexta-feira, 17 de outubro de 2008
Ulisíada
Fascinante e actualíssimo texto...
"(...) a associação do nome latino da cidade de Lisboa com o do herói grego Ulisses tem uma longa tradição: erudita em André de Resende, literária em Luís de Camões, criativa em Fernando Pessoa. Os momentos intermédios ou anteriores não são de ter menos em conta, pois, se os mais conhecidos reflectem um ponto cimeiro, eles são resultado de um processo alargado em que as formas da linguagem têm função determinante e a cativação de títulos de glória para uma cidade é motivação evidente. Por equivalências sucessivas de Olisipo ao epónimo grego, mediante a correspondência com a forma grega Odysseia, André de Resende tenta evitar recriminações formuladas um século antes por Lorenzo Valla; simultaneamente, assenta argumentos de glória para a cidade do Tejo que, ao tempo, se agiganta perante a Europa com o comércio desencadeado pelos feitos marítimos dos homens que dela partiam para o mundo inteiro (...). Não bastava que os novos feitos superassem os dos antigos (...) tornava-se necessário que a glória dos antigos se prolongasse nos novos heróis e assim se garantisse glória definitiva – que o seria tanto mais quanto se pudesse provar que nada era fruto do acaso, mas tudo se integrava em projecto de uma divindade que zela pelo Mundo com sabedoria harmoniosa. Tal factor de engrandecimento sobreleva em Camões, com a particularidade de avinculação com a antiguidade permitir integração que assegura facúndia épica por parte de uma divindade tutelar, Palas Atena, cuja protecção foi decisiva para o herói primitivo sair vencedor de todos os perigos; o testemunho dessa protecção, aliás, estaria concretizado pelo altar votivo que o herói ao chegar a Olisipo não teria deixado de aí erguer. Em F. Pessoa, o nome do fundador alarga-se, só por si, em mito – um «nada que é tudo», porque, mesmo que lhe falte fundamentação histórica, fornece o impulso necessário para o projecto (mais do que para a gesta) de uma nação inteira em tempo de plenitude que cumpre a utopia e «conquista a Distância / Do mar ou outra». O recurso à memória do passado dá amplitude ao enobrecimento da cidade. A forma envolve complexidade poética, pois o processo contempla projecção especular de modo a transferir para a cidade do extremo ocidente a glória que a preservação da cidade do oriente, onde o herói lutara, teria mantido pelos tempos fora. Olisipo é a nova Tróia; o mito recupera, em projecção especular, e amplia para o futuro o que fora negado no ponto de partida à infaustosa cidade que não foi poupada ao incêndio e à destruição. Efectivamente, Lisboa contrapõe-se a Tróia na figuração de Camões e de Pessoa; não é apenas o legado de um herói de passagem que lhe confere atributos, mas sim a imagem recuperada que a relança no futuro. (...) Por seu lado, o herói não se define pelo que destrói, mas pelo que resgata e repõe na harmonia do universo, alguma vez violada. Lugar antigo tinha de ser Lisboa; os títulos de glória que os tempos recentes, no séc. XVI, lhe traziam, tinham de advir de um fundador, mais que de um conquistador, por muito insigne que ele fosse, pois a sua acção buscara legitimidade na reintegração do lugar naquilo de que andara afastado; se há transposição, ela é obra de um fundador: como tal, cabem ao novo local as prerrogativas do antigo. Lugar extremo é também Lisboa: local longínquo (no fim do mundo – ponta da Europa), serve para erguer ao máximo o esforço do herói; local dos confins ocidentais é lugar propício para contraponto com cidade de partida (Tróia); é, por isso mesmo a Nova Roma e o seu herói não será o de um vencido, mas o de um triunfador da História (ardiloso para encontrar os estratagemas da vitória) e de um vencedor da Natureza (superando as adversidades da viagem pelo mar). Lugar distante, Lisboa é mais que lugar de passagem Lisboa (ainda que também o seja), porque é lugar de radicação – traço significativo são as relações familiares que tornam o local propício para transmissão hereditária. É por isso lugar de retorno: como regresso e como recuperação; lugar de regresso, porque o herói das aventuras por mar só no centro, em Ítaca (ou na Ilha dos Amores, em Camões), poderá concluir as suas façanhas e obter o canto que imortalize o herói e lhe confirme ter atingido a Sabedoria (...); lugar de recuperação se tornará quando o exercício da memória integrar os que ficaram a tomar conta do Finisterra. Neste processo cultural, mais do que qualquer elemento material que pudesse certificar a passagem do herói por um lugar, é nobilitante que tenha ficado nome ou descendente – se ele levantou um templo, este só podia ser caduco e deixar para os vindouros testemunho em ruínas (tanto mais que outro culto havia surgido, entretanto). O nome, aliás, é tudo, porque só ele cabe na memória (e no mito) dos homens, aberto ao canto (ode que é logos) do poeta; o descendente instaura laços de sangue e de poder continuado.
(...)
Mesmo que a crítica histórica obrigue a reconhecer que as origens não são certas e que o mito transborda para fora do quadro geográfico e histórico primitivo, havemos de reconhecer que em Olisipo / Ulixbona se constitui uma comunidade de homens que a si mesmos se reconhecem no suposto epónimo da sua cidade e lhe dão continuidade de viajantes – que ostentam a marca de descobridores até aos confins do mundo, de onde sempre pretendem regressar. Ultrapassam eles a personagem mítica, que nunca pretendeu descobrir nada nem recolher nada e na distância escondeu o nome próprio («Sou Ninguém» – responde ele ao Polifemo), que apenas desejou regressar ao seio da família tradicional e recupera a própria identidade no canto do aedo no palácio de Alcíno. A esta memória passiva contrapõe-se uma memória activa – de reconhecimento de novos horizontes na recuperação do passado. Na audácia dos novos cometimentos, aqueles que evocam o fundador soltam amarras sobre um Novo Mundo e nessa atitude mostram a diferença: o protagonista de 'Os Lusíadas' será o primeiro a contar a história do seu país e a reivindicar uma missão de descoberta – «Os Portugueses somos do Ocidente / imos buscando as terras do Oriente». O Mediterrâneo deixa de ser um Mare Clausum para se prolongar num Mare Infinitum, a que preside o próprio Atlas que sustenta o mundo. Ulisses terá, no sulcar dos mares, mais que um sucessor, um contraponto que é Hitlodeu, a figura, por certo desconhecida e faladora mas sem artimanhas, que Tomás Moro foi buscar à terra portuguesa para escrutinar a Utopia que os Descobrimentos colocaram à admiração da Europa. Às aventuras do mar sucede, não o mistério, mas o deslumbramento. O horizonte não é já apenas o mar sem fim, tenebroso e tremendo, mas um Mundo Novo em que os homens espalhados pelo orbe inteiro passam a estar ligados pelo mar oceano, em vontade de novo convívio e com a possibilidade de acolher as experiências dos povos mais longínquos, em admiração mútua e em confiança recíproca. A Europa ganha nova dimensão, o mundo assume também nova espessura e o Homem assegura novas capacidades: a maior delas será a de admiração frente aos outros, depois de se ter convencido da dignidade própria. A Europa regressa a si mesma, no dramatismo de reconhecer as suas próprias limitações, mas algo mais segura de que o mundo não termina no Finisterra euro-asiático. Na Utopia que se lhe abre (e que lhe traça Tomás Moro, mas Fernando Pessoa caracteriza), «os olhos com que vê são gregos»; «o rosto com que fita é Portugal». (...)"
Aires Nascimento
"Vês outro que do Tejo a terra pisa,
De[s]pois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica.
Ulisses é o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa
Cá na Europa Lisboa ingente funda”
"Os Lusíadas", Canto VIII
"(...) a associação do nome latino da cidade de Lisboa com o do herói grego Ulisses tem uma longa tradição: erudita em André de Resende, literária em Luís de Camões, criativa em Fernando Pessoa. Os momentos intermédios ou anteriores não são de ter menos em conta, pois, se os mais conhecidos reflectem um ponto cimeiro, eles são resultado de um processo alargado em que as formas da linguagem têm função determinante e a cativação de títulos de glória para uma cidade é motivação evidente. Por equivalências sucessivas de Olisipo ao epónimo grego, mediante a correspondência com a forma grega Odysseia, André de Resende tenta evitar recriminações formuladas um século antes por Lorenzo Valla; simultaneamente, assenta argumentos de glória para a cidade do Tejo que, ao tempo, se agiganta perante a Europa com o comércio desencadeado pelos feitos marítimos dos homens que dela partiam para o mundo inteiro (...). Não bastava que os novos feitos superassem os dos antigos (...) tornava-se necessário que a glória dos antigos se prolongasse nos novos heróis e assim se garantisse glória definitiva – que o seria tanto mais quanto se pudesse provar que nada era fruto do acaso, mas tudo se integrava em projecto de uma divindade que zela pelo Mundo com sabedoria harmoniosa. Tal factor de engrandecimento sobreleva em Camões, com a particularidade de avinculação com a antiguidade permitir integração que assegura facúndia épica por parte de uma divindade tutelar, Palas Atena, cuja protecção foi decisiva para o herói primitivo sair vencedor de todos os perigos; o testemunho dessa protecção, aliás, estaria concretizado pelo altar votivo que o herói ao chegar a Olisipo não teria deixado de aí erguer. Em F. Pessoa, o nome do fundador alarga-se, só por si, em mito – um «nada que é tudo», porque, mesmo que lhe falte fundamentação histórica, fornece o impulso necessário para o projecto (mais do que para a gesta) de uma nação inteira em tempo de plenitude que cumpre a utopia e «conquista a Distância / Do mar ou outra». O recurso à memória do passado dá amplitude ao enobrecimento da cidade. A forma envolve complexidade poética, pois o processo contempla projecção especular de modo a transferir para a cidade do extremo ocidente a glória que a preservação da cidade do oriente, onde o herói lutara, teria mantido pelos tempos fora. Olisipo é a nova Tróia; o mito recupera, em projecção especular, e amplia para o futuro o que fora negado no ponto de partida à infaustosa cidade que não foi poupada ao incêndio e à destruição. Efectivamente, Lisboa contrapõe-se a Tróia na figuração de Camões e de Pessoa; não é apenas o legado de um herói de passagem que lhe confere atributos, mas sim a imagem recuperada que a relança no futuro. (...) Por seu lado, o herói não se define pelo que destrói, mas pelo que resgata e repõe na harmonia do universo, alguma vez violada. Lugar antigo tinha de ser Lisboa; os títulos de glória que os tempos recentes, no séc. XVI, lhe traziam, tinham de advir de um fundador, mais que de um conquistador, por muito insigne que ele fosse, pois a sua acção buscara legitimidade na reintegração do lugar naquilo de que andara afastado; se há transposição, ela é obra de um fundador: como tal, cabem ao novo local as prerrogativas do antigo. Lugar extremo é também Lisboa: local longínquo (no fim do mundo – ponta da Europa), serve para erguer ao máximo o esforço do herói; local dos confins ocidentais é lugar propício para contraponto com cidade de partida (Tróia); é, por isso mesmo a Nova Roma e o seu herói não será o de um vencido, mas o de um triunfador da História (ardiloso para encontrar os estratagemas da vitória) e de um vencedor da Natureza (superando as adversidades da viagem pelo mar). Lugar distante, Lisboa é mais que lugar de passagem Lisboa (ainda que também o seja), porque é lugar de radicação – traço significativo são as relações familiares que tornam o local propício para transmissão hereditária. É por isso lugar de retorno: como regresso e como recuperação; lugar de regresso, porque o herói das aventuras por mar só no centro, em Ítaca (ou na Ilha dos Amores, em Camões), poderá concluir as suas façanhas e obter o canto que imortalize o herói e lhe confirme ter atingido a Sabedoria (...); lugar de recuperação se tornará quando o exercício da memória integrar os que ficaram a tomar conta do Finisterra. Neste processo cultural, mais do que qualquer elemento material que pudesse certificar a passagem do herói por um lugar, é nobilitante que tenha ficado nome ou descendente – se ele levantou um templo, este só podia ser caduco e deixar para os vindouros testemunho em ruínas (tanto mais que outro culto havia surgido, entretanto). O nome, aliás, é tudo, porque só ele cabe na memória (e no mito) dos homens, aberto ao canto (ode que é logos) do poeta; o descendente instaura laços de sangue e de poder continuado.
(...)
Mesmo que a crítica histórica obrigue a reconhecer que as origens não são certas e que o mito transborda para fora do quadro geográfico e histórico primitivo, havemos de reconhecer que em Olisipo / Ulixbona se constitui uma comunidade de homens que a si mesmos se reconhecem no suposto epónimo da sua cidade e lhe dão continuidade de viajantes – que ostentam a marca de descobridores até aos confins do mundo, de onde sempre pretendem regressar. Ultrapassam eles a personagem mítica, que nunca pretendeu descobrir nada nem recolher nada e na distância escondeu o nome próprio («Sou Ninguém» – responde ele ao Polifemo), que apenas desejou regressar ao seio da família tradicional e recupera a própria identidade no canto do aedo no palácio de Alcíno. A esta memória passiva contrapõe-se uma memória activa – de reconhecimento de novos horizontes na recuperação do passado. Na audácia dos novos cometimentos, aqueles que evocam o fundador soltam amarras sobre um Novo Mundo e nessa atitude mostram a diferença: o protagonista de 'Os Lusíadas' será o primeiro a contar a história do seu país e a reivindicar uma missão de descoberta – «Os Portugueses somos do Ocidente / imos buscando as terras do Oriente». O Mediterrâneo deixa de ser um Mare Clausum para se prolongar num Mare Infinitum, a que preside o próprio Atlas que sustenta o mundo. Ulisses terá, no sulcar dos mares, mais que um sucessor, um contraponto que é Hitlodeu, a figura, por certo desconhecida e faladora mas sem artimanhas, que Tomás Moro foi buscar à terra portuguesa para escrutinar a Utopia que os Descobrimentos colocaram à admiração da Europa. Às aventuras do mar sucede, não o mistério, mas o deslumbramento. O horizonte não é já apenas o mar sem fim, tenebroso e tremendo, mas um Mundo Novo em que os homens espalhados pelo orbe inteiro passam a estar ligados pelo mar oceano, em vontade de novo convívio e com a possibilidade de acolher as experiências dos povos mais longínquos, em admiração mútua e em confiança recíproca. A Europa ganha nova dimensão, o mundo assume também nova espessura e o Homem assegura novas capacidades: a maior delas será a de admiração frente aos outros, depois de se ter convencido da dignidade própria. A Europa regressa a si mesma, no dramatismo de reconhecer as suas próprias limitações, mas algo mais segura de que o mundo não termina no Finisterra euro-asiático. Na Utopia que se lhe abre (e que lhe traça Tomás Moro, mas Fernando Pessoa caracteriza), «os olhos com que vê são gregos»; «o rosto com que fita é Portugal». (...)"
Aires Nascimento
"Vês outro que do Tejo a terra pisa,
De[s]pois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica.
Ulisses é o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Que, se lá na Ásia Tróia insigne abrasa
Cá na Europa Lisboa ingente funda”
"Os Lusíadas", Canto VIII
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