"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".
"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"
- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente
Saúde, Irmãos ! É a Hora !
1 comentário:
Num momento a Sombra existe, tem espaço e corpo,
traço, medida, música,
e tem árvores, seixos, conchas, rosas, livros e rossio,
velas, catedrais e terras santas,
vales, outono e cachos de uvas
e tem-me a mim. Um momento perfeito sem o olhar na perfeição. Paro tudo, então, para perfeitamente abraçar o que logo se dissipa, não do olhar mas da sombra: as rosas tocam flautas, os cachos entornam néctares, as conchas apontam caminhos, as árvores deitam-se ao sol, o outono aquece os vales e os seixos brincam na terra às escondidas, o rossio olha para o relógio e senta-se à espera. Eu acendo uma vela. A música, de silêncio tudo perpassa na Luz que sobe fogo, e desce água torrencial: as rosas flutuam agora numa jangada de livros e almas que entoam rios, encantos e sopros, tudo perfeito, num ondulante templo onde todas as horas e todas as cores se encontram, na transparência e sem reflexos.
Regressa a Sombra,
sem me sentir a mim a mesma ou diferente, nem sua.
Volto à vida ou voltei a morrer? Voltarei aos contrários, isto é, às essências,
enquanto as catálises pela Sombra-Luz forem viagem.
Na rua ouço os passos na pedra da calçada, recônditos,
é a hora da Noite,
despeço-me da Sombra por breves vénias
e abro a janela.
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