O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Dos Arquétipos do Ideal Português às Instâncias da Realização de Si - I

Introdução

Publicou António Quadros em 1967, em O Espírito da Cultura Portuguesa, um ensaio onde, procurando formular o que seria o “ideal português”, na linha das preocupações da Renascença Portuguesa, enuncia “um grupo de dez palavras ou cifras, cujo sentido ideal e simbólico se desdobrou na nossa cultura em vários planos significativos, desde o literal ao simbólico, do poético ao artístico e mesmo ao filosófico”. Diz serem “arquétipos” [...] cuja conjugação desenha porventura [...] o ideal português” e que seriam tónicas profundas do “nosso modo de filosofar” ou “palavras-mães” “que nos soam tão familiares [...] que nem reparamos na originalidade das meditações que nos sugerem”. Ilustra-o com sintéticos mas fecundos desenvolvimentos da premência na história, na cultura e no pensamento português, bem como das sugestões filosóficas e universais, das palavras nesta ordem apresentadas: “Mar, Nau, Viagem, Descobrimento, Demanda, Oriente, Amor, Império, Saudade, Encoberto”.
Não pretendemos fazer aqui uma avaliação crítica desta proposta, da qual indicamos apenas o seu notável valor sugestivo, e pelo menos representativo de uma dada forma de pensar e vivenciar a história cultural portuguesa, que não se pretende aliás uma enumeração e interpretação fechada, exclusiva de um “alargamento a outras palavras não menos arquetipais”. O nosso objectivo é outro. Em homenagem ao saudoso pensador e Amigo, convictos de que a melhor forma de o fazer é pensar a partir dele, desenvolvendo aquelas que nos parecem as suas mais amplas possibilidades, mesmo se isso nos levar a um salutar afastamento dos seus horizontes mais imediatos – o que é sempre um modo de lhes desvelar insuspeitas amplitudes – , arriscamos aqui uma leitura especulativa e pessoal dos dez vocábulos, que por esse motivo reordenamos, assumindo-os não já como arquétipos e indicadores do “ideal português”, mas antes como instâncias da realização de si, do nosso ser e consciência mais universais e profundos. Pretendemos passar assim da hermenêutica filosófica da cultura portuguesa para, assumindo toda a inspiração que possamos colher de elementos fundamentais dessa cultura e da nossa vivência dela, deles não menos nos expatriarmos no sentido das profundezas do ser universal, anterior e posterior a toda a determinação e representação histórico-cultural. Que isso, todavia, possa constituir-se, retroactivamente, em factor de reformulação, e porventura de enriquecimento, da própria cultura a que não deixamos de pertencer, é natural e grato. Ultrapassar algo, tomando-o como trampolim para ir mais longe, é enriquecê-lo, mostrando limiares onde de outro modo só se experimentariam limites.

Saudade

Saudosa é a condição de toda a ex-istência. Ex-istência: ser a partir de e em exposição e abertura a, originária cisão que é intrínseco vínculo ao imo da plenitude primordial e anseio da experiência total aí possível. Como se denuncia na etimologia e na evolução semântica, é inerente à experiência da saudade a singularidade e relativa solidão, bem como a união e aspiração, em memória e desejo, ao pleroma aparentemente abandonado e à fruição de todo o possível, em reminiscência e pressentimento de uma saúde que é salvação, libertação do êxodo ex-istencial que realiza a sua mais ampla possibilidade. A saudade é in-sistência na ex-istência, ser em do que é a partir de, integração do que se cinde. Revela assim a condição in-ex-istente de tudo o que se manifesta ou percepciona como entes e coisas, a sua comum união-cisão, a sua solidária interdependência, ou seja, a sua ausência de realidade substancial e própria, independente do entrançado matricial em que se constelam e entre-são e da consciência que o percepciona, no mesmo entrançado tecida.
Pode a saudade ser predominante ou simultaneamente retrotensa, protensa e intensa. Do passado, do futuro ou do eterno instante. Todavia, sendo do passado ou do futuro, é sempre do eterno instante, mesmo que iludida o recorde e/ou deseje no passado ou no futuro. Pois só os instantes experimentados como eternos, furtando-nos ao comum encadeamento do tempo e à monotonia da sua consciência, nos trazem a glória de que há saudade. A glória dos seres e das coisas surpreendidos no esplendor da sua intemporal origem: um rosto, uma relação, uma paisagem, um cheiro, uma melodia, um sabor, um objecto antes de o ser, sempre um afecto. A afecção pela plenitude sensível, física ou não, de haver algo e simultaneamente o nada, a afecção pela graça e glória do mundo, pela glória que gratuitamente há no mundo. A comunhão primeira, sem quê, nem porquê, nem para quê, anterior ao refúgio do ser e da consciência na sub-jectividade que os agride e auto-lesa pro-jectando o que se lhe ob-jecta, os objectos perante os quais se perfila e sub-ordina, desejando-os ou rejeitando-os na mesma saudade de os não haver.
Saudade do nem sujeito nem objecto. Saudade da Festa e jogo primordial, dança arrebatada e livre dos sentidos-consciência-fenómenos, inocente nudez das delícias anteriores ao exílio do conhecimento do bem e do mal, da memória que é esquecimento, da busca de sentidos e verdades, razões e finalidades, seres, saberes, teres e afazeres. Festa anterior à insegurança, ao medo e à agressão, ao desejo, à aversão e à indiferença de uma consciência privada porque autocentrada num ilusório lugar próprio, constituído por demissão ou esquecimento da irrecusável plenitude. Festa anterior ao haver antes e depois.
Saudade de não haver saudade. Impulso de a matar na inefável Origem anterior a sê-lo. Anterior a ser Oriente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Paulo,

Acho interessantíssimo este seu texto. Sobretudo a parte que se refere à Saudade. Pois sinto-o em total sintonia com os pensamentos e o sentir em mim dessa expriência e espírito saudosos. Claro que me identifico com o que é dito, sem o dizer do mesmo modo, dizendo-o talvez "com mais poesia e menos filosofia". Tem sido um prazer ter encontrado, aqui neste espaço, sentires tão próximos.
Aguardo com ansiedade as reflexões sobre as "palavras/arquétipos" sugeridas por Quadros e que o Paulo se propõe "reinventar" ou delas fazer uma "leitura especulativa". È nestes momentos que me pergunto porque não segui filosofia e percebo por que razão a filosofia está sempre presente nos poetas que mais aprecio. Enfim... Se tivesse tempo, começaria também uma viagem pelos vocábulos sugeridos, e que também (com toda a modéstia)reconheço estarem presentes na minha poesia.
Serei, então uma boa portuguesa, ou antes, ou por isso, um ser in.existente, uma "ausência de realidade substancial e própria" em demanda de uma união, de um "império" que é tecido por esses símbolos desenvlvidos em difrentes planos.
Tenho um poema escrito há muitos anos que termina com os versos:"Que saudades de não ter saudades!" É a essa Festa da anterioridade a tudo, até ao Oriente mais anterior,que as suas reflexões me levam.
Obrigada por este texto.
Com essas palavras relembradas faço uma Festa e construo um navio carregado de todas elas para atirar ao Grande Mar Anterior que nos chama e que nos é alimento universal e transpatriótico, sim.
Talvez o Mar ou a Saudade, o mar saudoso,a nau que é mar de saudade e a Saudade de mar que é Descorimento e Amor traga de volta o Encoberto. Certa de que ele virá para unir, não para separar.
Inspirador este seu belo texto!

Paulo Borges disse...

Saudades, agradeço as generosas mas desmerecidas palavras. Também eu me revejo na sua belíssima poesia e nos aforismos de que gostei muito. Os filósofos mais não fazem do que trazer a uma certa forma de consciência o que os poetas dizem e cantam noutro pulsar do espírito. Gostaria de fundir as duas respirações do ser, poesia e filosofia, numa harmonia musical que nos transportasse ao Antes, Aqui e Agora.