O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 20 de outubro de 2008

O Poeta em Lisboa


Para Paulo Borges


Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.

Segue por esta, por aquela rua
Sem pressa de chegar seja onde for
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror

Entra num café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha - numa música secreta, inaudível.

Pede um cigarro. Fuma.
Labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
Espreita-o uma mulher nua, branca, branca.

Fuma mais. Outra vez.
Atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.

Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
Dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.

Sonâmbulo, magnífico
Segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.
Um luar terrífico
Vela o seu passo transtornado.

Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
Da vida proletária, aristocrática, burguesa.

Febre alta, violenta
E dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
A aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.

António José Forte

1 comentário:

Paulo Borges disse...

Grato pelo poema, que é realmente Forte! Também nos apunhala de surpresa.