O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


domingo, 26 de outubro de 2008

Viagem


(O mar rasgou a névoa, para lá de onde a nau havia, estava a ilha a ser. A névoa desfazia-se no horizonte, e o vento arrastava as nuvens, como a nau ceifava no mar. O mar era um caminho largo, as águas balançavam ao som do vento brando em brandas vozes a bramir baixinho ao ouvido das naus. “É Hora, é Hora!” E a viagem prosseguia a contentar as águas, a suave brandura das velas brancas. Mas a viagem não é o caminho nem o viajante; porque a viagem não termina na ilha. Esta apenas oferece do líquido do de Amor, o de que se contentar o marinheiro, no repouso da viagem. A viagem é um caminho mais acima, um caminho para o céu; não o céu dos que o merecem na morte. É antes aquele que dentro da viagem segreda ao marinheiro “Está próxima a ilha, está próxima a ilha! ”Havia a viagem e a Hora para onde o horizonte se abria à ilha e se chegava à nau a ilha que não havia. Havia a demanda, a questa eterna que impele para a viagem, que se cumpre no descobrir do questionar. Esta questa é a eterna saudade a lembrar o cais de partida; a lembrar o esquecimento insistente do mar sem princípio nem fim, por dentro da viagem. É um mar rumoroso e tenebroso de desconhecido e ausente palpitar. “É aí! É aí.”Aí onde não está o fim da viagem, nem o princípio se acha nesse aproximar. A viagem é antes do início e termina para lá do fim. È infinita e ilimitada. A ilha só surge quando o rei se avistar. E só acolhe, se for afortunada a alma de quem reina, ou reinou, ou deixou de reinar. A viagem é uma roda gigante a andar sobre a terra e sobre o mar. E o império continua para além do imperador. E o fim de qualquer viagem é a busca do sem fim. O ser da viagem só existe, não para castigar os inocentes, nem aos culpados engana, por maldade ou prazer. A sorte antes avisa os afortunados que a viagem é breve e atribulada e que os tempos empurram outros tempos, mas a roda da viagem não teme o mar e os perigos, a roda não vinga o imperador ou o beneficia o futuro rei. Cada alma é uma viagem sedenta dessa mesma viagem, mas a roda não oferece a escada para o céu. O viajante só repousa quando os olhos perseguem a ilha e o céu parece clarear. Mas é tão só o eco, a reminiscente voz que traz afortunado o que a ouve: é a Hora, é a Hora. E a ilha surge no centro do horizonte da mesma viagem.)

P.S. É a minha forma de agradecer ao Paulo, viagem que me fez fazer e que não termina na visão da ilha.

5 comentários:

Anónimo disse...

Exausta. Muito exausta...
Ainda assim...
Vou continuando ... ...

Anónimo disse...

Acelera, que então pararás.

Anónimo disse...

A Ilha surge na derrota do buscá-la.

Unknown disse...

Viagem

"Naquele tempo era o Kaos
E as palavras do poema não irrompiam já como palmeiras

Por isso abandonou a cidade - o país natal
País perdendo dia a dia o seu rosto:
A pintura a cair das paredes - cães
Farejando o lixo -
Brutais os gestos - obscenas as palavras
De cada coisa a beleza destroçada

Por isso se evadiu e para Oriente
Navegou e de noite e lentamente

E um novo dia se abriu em sua frente

E era um país de tigres e palmeiras
Como em longínquo cismar adolescente"
Sophia

Anónimo disse...

Saudades,
a tua viagem consegue ser antes da recta começar. A viagem que aqui está é a Origem. É ela que faz e desfaz a Ilha, a Hora, o Poema, as Vozes. Eu devo andar algures entre o vento que sopra na majestade ígnea da vossa visão. E vou. Mas não vou atrás, nem à frente. Nem antes, nem depois. Vou dentro. Eis a minha segunda viagem no vórtice, depois de Poe.