O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Ocidentalidade: Milagre Ático? Última Parte

Como vimos, a ideia do mundo antigo que se difundiu no Ocidente e que se enraizou no imaginário comum tem a sua origem na chamada «Germanograecia», ou seja, na especialização alemã dos estudos clássicos realizada no século XIX. Essa ideia, o famoso «milagre grego», tem como centro a pólis ateniense do século de Péricles, elevada a modelo universal de política e de cidadania, de liberdade intelectual e espiritual, e de criatividade artística. A característica fundamental da Grécia hegeliana é o seu isolamento em relação a todas as culturas que se encontram à sua volta, sobretudo uma separação bem clara entre a Grécia e o Oriente. Embora estivesse consciente de que alguns elementos fundamentais da cultura grega eram de origem oriental, Hegel pensou a Grécia como um mundo isolado que se explica por si só, defendendo que os gregos teriam eliminado tudo o que fosse estranho à sua própria cultura. Assente na dicotomia gregos/não gregos, ou seja, gregos/bárbaros – uma dicotomia típica da mentalidade grega dos séculos V e IV a.C. – essa ideia da Grécia foi transformada num exemplo de identidade étnica.

Hegel sabe bem que muitos germes da cultura grega provinham da Ásia e do Egipto, mas contra o primado do Oriente reivindicado por Schelling e por outros, ele afirma que os Gregos souberam eliminar tudo o que era estrangeiro na sua origem. Por isso é inútil querer remontar a essas mesmas origens: a Grécia é um mundo que se explica todo por si só. Hegel chama a este comportamento dos Gregos "Geist der Heimatlichket", espírito de afeição e de pertença à pátria, e a Grécia torna-se, desta forma, num modelo completo de forte identidade étnica, nacional e cultural, da qual a filosofia é uma parte constitutiva essencial. (Cambiano: 1988, p 6).

Diversos filósofos alemães da época, como Herder, Schlegel e Boeckh, defenderam a inclusão do estudo das culturas orientais na Ciência da Antiguidade Clássica, apontando inclusivamente a Índia como o «berço da humanidade e o lugar de origem da religião, da filosofia e da poesia» e inaugurando os estudos de sânscrito e da mitologia comparada. (W. Nippel, «La costruzione dell’ “altro”», in Settis (coord.): 2001, p. 194). Não obstante estes esforços, a interpretação da história universal baseada na filosofia da história, a forte afirmação dos nacionalismos e a concepção do período helenístico como uma fase de decadência da cultura grega contribuíram para uma manutenção duradoura das oposições gregos/bárbaros, Ocidente/Oriente, ocidental/não ocidental, «nós»/«outros».

O milagre grego começará, contudo, a perder força quando «a originalidade da experiência dos gregos já não se projectava num esplêndido isolamento, mas sim num quadro histórico comparativo em que as diferenças entre povos e civilizações contemporâneos e paralelos emergiam a partir da traduzibilidade das linguagens e das culturas e na base de analogias». (Iacono, «I Greci e i selvaggi», in Settis: 2001, p. 1381). Karls Jaspers, no final da década de quarenta do século passado, contribuiu para uma mudança na perspectiva histórica, ao introduzir a noção do «período axial» (entre 800 e 200 a.C), em que se verificaram eventos que transformaram profudamente a humanidade.

Nesse período realizaram-se os factos mais extraordinários. Na China viveram Confúcio e Lao-tse, surgiram todas as tendências da filosofia chinesa, meditaram Mo-ti, Chuang-tse, Lieh-tsu e muitos outros. Na Índia apareceram os Upanishades, viveu o Buda e, como na China, exploraram-se todas as possibilidades filosóficas até ao cepticismo e ao materialismo, à sofística e ao nihilismo. Na Pérsia Zaratustra propagou a excitante visão do mundo como a luta entre o bem e o mal. Na Palestina fizeram a sua aparição os profetas, de Elias a Isaías e Geremias, até ao Segundo Isaías. A Grécia viu Homero, os filósofos Parménides, Heraclito e Platão, os poetas trágicos, Tucídides e Arquimedes. Tudo o que tais nomes implicam tomou a sua forma naqueles poucos séculos quase contemporaneamente na China, na Índia e no Ocidente, sem que alguma dessas regiões tivesse conhecimento das outras. (K.Jaspers: 1494, a partir da tradução italiana, Milão, 1982, p. 20).

A partir deste quadro comparativo, Arnaldo Momigliano virá pôr em causa, nos anos setenta, a filosofia da história elaborada por Hegel, que até então continuara a exercer uma influência determinante nos filólogos e historiadores ocidentais. Ao colocar em relação, metodológica e historiograficamente, a cultura grega com outras civilizações, Momigliano reflecte sobre a contemporaneidade de determinados eventos e as suas consequências não só para o lugar central da Grécia mas também para a universalidade de outras tradições culturais.

Confúcio, Buda, Zoroastro, Isaías, Eraclito ou Ésquilo. A lista teria provavelmente chocado o meu avô e a sua geração. Hoje em dia tem um sentido: é o símbolo da mudança ocorrida na nossa perspectiva histórica. Nós estamos em condições de encarar, mais ou menos do mesmo ponto de vista, culturas que pareciam muito distantes umas das outras, e de descobrir algo de comum entre elas. Numa linha sincrónica, aqueles nomes estão para uma existência mais «espiritual», para uma ordem melhor, para uma reinterpretação da relação homem-deus, para uma crítica dos valores tradicionais das respectivas sociedades. Estes homens não se conheceram entre si. Nenhum factor externo claramente identificável liga o aparecimento de figuras investidas de tanta autoridade em culturas diferentes entre, digamos, o VIII e o V século a.C. Notamos, todavia, que descobrimos um denominador comum que os torna a todos – para repetir uma expressão que está na moda - «actuais». Todos eles foram homens que, afirmando e ilustrando as suas crenças religiosas pessoais, deram um novo sentido à vida humana e provocaram profundas transformações nas sociedades a que pertenceram. (A. Momigliano: 1975, p.175).

Esta perspectiva, que veio descentrar o mundo grego e religá-lo às culturas mediterrânicas e orientais, abriu novos caminhos científicos para os estudos clássicos os quais, infelizmente, ainda não penetraram na cultura geral. Uma concepção sustentada pela crítica histórica, antropológica e etnográfica, mostra-nos um mundo antigo bem mais complexo e, sobretudo, bem mais vasto e dinâmico do que a tradicional imagem isolada, cristalina, uniforme e atemporal da Grécia antiga. Estudos recentes, segundo Wilfried Nippel, evidenciaram «fortes influxos orientais na religião, na ciência, na literatura, na arte e na cultura material nos Gregos mesmo em época arcaica», influxos esses de que os próprios Gregos estavam bem cientes. Salvatore Settis coordenou recentemente uma obra magistral em seis volumes, com o auxílio de dezenas de colaboradores, em que a cultura grega é estudada numa perspectiva claramente inter e transcultural: «os Gregos e os povos da Anatólia», «Gregos e Persas, confrontos e conflitos», «A imagem grega da cultura egípcia», «Gregos e Hebreus, hebraísmo e helenismo», «A Síria e o mundo grego», «Árabes, Arábias e Gregos, contactos e formas de percepção», «Filosofia grega e filosofia árabe», «Na Índia e além: Gregos, Indianos e Indo-gregos», «Duas antiguidades em confronto: ciência grega e ciência chinesa», etc.

É sob este pano de fundo que o conhecimento da cultura grega pode ter hoje uma função vital em, pelo menos, dois sentidos. Em primeiro lugar, se renuciarmos à artificiosa e moribunda «classicidade», podemos aprender a reconhecer a cultura grega como estranha e familiar ao mesmo tempo. Aprender a reconhecer como estranho (porque frequentemente de origem não-grega) o que nela se nos apresenta como familiar pode revelar-se extraordinariamente profundo: precisamente porque essa íntima mistura de estranho e de familiar revela uma visão da cultura grega não como um reservatório de arquétipos imóveis, mas como um laboratório de potencialidades, por vezes nunca exploradas em profundidade; frequentemente partilhadas com outras culturas.

Os Gregos que nos podem ajudar não só a compreender o passado mas também a construir o futuro, não são os portadores (fictícios) de uma abstracta, isolacionista, eurocêntrica «classicidade», mas os (verdadeiros) que emergem desta sua história muito mais complicada, muito mais interessante. Uma história que convida a aprender com os «outros» (no tempo e no espaço) pelo menos o que os próprios Gregos souberam aprender com outras culturas.

[É] necessário que os estudiosos da Antiguidade renunciem para sempre à passiva reverência perante uma cristalina e imutável «classicidade» . (Settis: 2001, p. xxxv, xxxviii).


Tendo em conta todo este panorama, perguntamos que futuro poderá ter A Ideia da Europa (2004) de George Steiner, de que transcrevemos um breve excerto:

A «ciência-filosofia», como Husserl desastradamente lhe chama, originou-se na Grécia Antiga. É o milagre ático, ter entendido que as ideias «de uma forma maravilhosamente nova, segregam em si próprias infinidades intencionais» (...) Outras culturas e comunidades fizeram descobertas científicas e intelectuais. Mas só na Grécia antiga se desenvolve a dedicação à teoria, ao pensamento especulativo desinteressado à luz de possibilidades infinitas. Além disso, apenas na Grécia antiga, e na sua herança europeia, o teórico se aplica ao prático sob a forma de uma crítica universal de toda a vida e seus objectivos. Há uma distinção marcada entre esta fenomenologia e o tecido «prático-mítico» dos modelos do Extremo Oriente e da Índia. (...) Daí, em última análise, o avanço da ciência e da tecnologia europeia, e depois americana, sobre todas as outras culturas. (p. 46)

A estas palavras, e para terminar, propomos o seguinte ponto de vista:

Com que obstinada presunção poderíamos alguma vez pedir aos chineses ou aos indianos que se reconheçam nos gregos e nos romanos, implicando, com isso, uma identidade com um «nós» totalmente europeu, sem oferecer em troca o desejo de nos identificarmos, nós, na antiguidade deles? Se essa é a nossa imagem dos Antigos, se é esse o papel deles na «história universal» que queremos construir, reduzindo a história universal à história europeia, então os Antigos são (ou arriscam-se a ser) o protótipo de uma cultura destinada a sucumbir (...). É necessário, portanto, ter bem clara a distinção entre os valores da antiguidade «clássica» tal como foram elaborados pelos gregos e pelos romanos, e o uso que deles se fez (e ainda se faz), nas últimas gerações, para legitimar a hegemonia do Ocidente sobre o resto do mundo. (Settis: 2004, pp. 15-16)

A «cultura corrente» (se é que existe alguma coisa que se possa chamar como tal) e a «ciência da antiguidade» viajam a duas velocidades completamente diferentes. A primeira ainda prefere aquela Grécia «redondamente clássica, perfeita e sem incertezas, e até brinca com isso: é precisamente porque se ri do milagre que ainda o leva a sério. A segunda, pelo menos nas suas pontas mais avançadas, começou há já algum tempo a percorrer outras estradas, e com os instrumentos da comparação e da antropologia histórica está determinada, e com grande energia, a construir os "Grecs sans miracle" vaticinados por Louis Gernet. E os gregos sem milagre, está a descobrir-se agora, conheceram a incerteza e foram por ela dilacerados; nem sempre alçaram monumentos e pronunciaram ditos memoráveis, nem estiveram atarefados a fundar a consciência da Europa moderna pela distinção com o Oriente mas, muito pelo contrário, para o Oriente se dirigiram com alegria e desenvoltura e ânsia de descoberta, procurando mercadorias e mitos e sabedoria, aprendendo e ensinando (...). Sempre abertos a influxos e desejosos em se confrontarem, sempre prontos para se «hibridarem» com as civilizações e com os povos que encontravam, colocando e recebendo perguntas, criando objectos culturais tão pouco «clássicos». O gregos sem milagre, está agora a descobrir-se, são muito mais interessantes do que os gregos do «milagre». (Settis: 2001, p. xxx).

6 comentários:

Anónimo disse...

Antes de mais obrigada pelo que recebi e aprendi.
Depois dizer que para além das qualidades óbvias de todos dos textos, o que esta reflexão me leva a fazer é deslocar a minha visão sempre tão Steineriana para outros pontos de vista [nunca tinha interpretado a posição dele, contextualizando-a com estes outros autores, mas será que ele o faz assim para reduzir os outros a pouco e nós a tudo? Quando penso nos outros textos de Steiner não me parece que ele reduza os outros povos e culturas a quase nada... mas devo ser eu a ter dificuldade em desfazer-me da ideia de um autor que salvaguarda, mesmo ao nível das línguas e da sua diversidade, a especificdade cultural de outros povos. ]Mas também, João, Nietzsche sabia bem destas influências e anda por ali, perto de Hegel: ele sabia que a influência dionísiaca é estranha à cidade. O próprio Eurípedes, para quem leu as tragédias, sabe isso. Steiner também sabe isso, na "Morte da Tragédia", ele sabe bem isso. Por que razão se cristalizou ou se distorceu então esta conciência? Por necessidade de nos centrarmos no velho continente? Ou quererá isto dizer que sempre, e desde há muito, tivémos dificuldade em eticamente reconhecer o outro no nosso seio? E, nesse sentido, o problema ou limite da democracia ateniense ainda se mantém, de forma mais disfarçada? As nossas formas de exclusão são mais subtis? Mas permanecem?
Se calhar eu própria sei responder a isto e não o quero fazer...dói-me interiormente. Não sei...
Muito obrigada mais uma vez. Já não pensava há muito, está tudo muito mecanizado. Belíssimos os textos.

João Beato disse...

Isabel Santiago,

agradeço-lhe as suas palavras. Estive a pensar nelas nestes dias e lembrei-me de um texto que escrevi há uns tempos, precisamente sobre a "Morte da Tragédia" de Steiner e o universo dionisíaco: na altura concluí que Eduardo Lourenço tinha uma compreensão mais vasta sobre o trágico e a tragédia...
As suas interrogações vão directamente ao cerne da questão, e ainda bem que as faz, são um excelente sinal...

Paulo Borges disse...

Quanto perdemos no predomínio da sombra hegeliana sobre a obscura luz dos filósofos românticos que apontaram o reencontro do Oriente como condição de possibilidade de um verdadeiro renascimento ocidental, frustrado no italiano!? Quanto padecemos ainda desse identitarismo nacional e ocidental forjado na falsa imagem do "milagre grego"!? Como esquecemos Alexandria e seu paradigma! E como tardamos em ver que o mais fundo sentido da aventura portuguesa, retomado na Renascença de Pascoaes, foi e é o de levar a todo o mundo esse voltar a respirar com os dois pulmões do planeta!

Sobre o esquecimento da Índia aconselho, entre muitas outras obras, a leitura de Roger-Pol Droit, "L'Oubli de l'Inde. Une amnésie philosophique", e de Guy Bugault, "L'Inde pense-t-elle?". Para o diálogo entre paradigmas culturais e civilizacionais é hoje incontornável toda a obra de François Jullien, que critica e repensa, a partir do tradicional pensamento chinês, todos os mais enraízados pressupostos do pensamento ocidental, desde a religião à política, passando pela filosofia e pela arte.

Não posso esquecer que algumas das mais belas peças da escultura universal surgiram na arte greco-indiana de Gandhara, no actual Afeganistão...

Isabel Santiago disse...

E eu lembro, modestamente, que Orhan Pamuck mostra muito bem o quanto é uma "tontice" os turcos quererem ser ocidentais e, numa obra fascinante, "Os Jardins da Memória", salientar os dois aspectos que não podemos esquecer: o quanto a cultura islâmica tem aspectos similares aos ocidentais e os desvaloriza por complexo tonto, e por outro lado, nos mostra como os autores ocidentais do século XIX, viajaram muito e com interesse até ao Oriente e às outras culturas, procurando uma visão mais ampla e alargada da vida e das raízes culturais da civilização ocidental. Diz em "Istambul", o quanto o "tédio" nem sequer é apenas um sentimento ocidental, mas um sentimento muito turco, também. Eis um belíssimo autor com o duplo ponto de vista: leu os ocidentais e é uma amante poético do seu mundo. É exemplarmente uma síntese que raramente o espírito humano consegue. Se calhar porque as paisagens ajudam a pensar o que somos. E Istambul é, a este respeito, paradigmática. Devímaos escolher paisagens para pensar melhor...

João,
não me podendo alongar, visto que estou na hora de fazer burocracias (mas não resisti a pensar e encontrar-me convosco "aqui"), venho só dizer que não penso que a obra de Steiner sobre a tragédia seja, daquelas que conheço, a que melhor e mais profundamente a compreende. Mas irei, quando não for administrativa e voltar a ter tempo de ler, ler a obra de Eduardo Lourenço. Obrigada também por ter pensado comigo. O mundo fica menos fechado.
Paulo,

não tenho tempo para ler tanto livro belo...assim definho de tristura...

Paulo Borges disse...

Sim, Isabel, o livro que tão generosamente me ofereceu e que lamentavelmente acabei por ainda não ler... Há uma exposição de fotos sobre Istambul e Lisboa no claustro dos Jerónimos que dá vontade de partir para lá, ou seja, para onde estamos: entre Ocidente e Oriente.

Anónimo disse...

Regresso de boa vontade a Istambul. Oh...se regresso. Claro que vou sem malas. Lá a pele veste-se de cheiros e pensamos como olhar duplamente direccionado...as gravuras de outros tempos acompanham a alma e estão por detrás das paisagens. O corpo esconde-se na fundura escura do Bósforo e ali sim...é possível escrever na encruzilhada da origem.