O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dos Arquétipos do Ideal Português às Instâncias da Realização de Si - V

Viagem

Viagem é nascer a cada instante para a eterna novidade de si e de tudo. Ser novo e outro a cada momento e queimar a ilusão do bilhete de identidade. Libertar-se da crença na permanência e na personalidade, ou seja, trocar as voltas ao tempo e à morte. Não ser um ser vivo mas a vida, não ser uma pessoa mas a per-sona através da qual ressoa a trans-pessoal verdade de todas as supostas pessoas e coisas, miríade de máscaras do carnavalesco bailado eterno do rosto único e infinitamente múltiplo de tudo.
Viajar é levar a in-ex-sistência à plenitude do possível a que saudosamente aspira, a experimentar tudo de todas as maneiras, no interior, no exterior e para além da ilusão de os haver. Sempre sem pressupostos, projectos ou planificações. Pois doutro modo não há viagem. Apenas turismo. Que é deslocar-se sem partir, levar as malas bem carregadas de si, simulação de ir a toda a parte sem jamais sair de lado algum.
A verdadeira viagem é a um tempo absolutamente irreversível, pois nunca se repete ou regressa a um único momento do que se vai sendo, e infinitamente reversível, pois a cada momento se reitera o e regressa ao instante sem determinação, ontológica, ôntica ou temporal, que permeia todas as configurações do existir. Livre vacuidade e vacância que tanto é possibilidade de autocriação, decisão e rumo novo, não condicionados pelas opções anteriores, como de arrebatadora suspensão de todo o ser, pensar, criar e agir, inebriada conversão do êxtase da ex-istência no ênstase da in-sistência, trespassando o fado do ser no mundo com plena liberdade de nele se reinscrever ou não.
Porém é da natureza dos opostos que coincidam, aquém ou além do arcanjo de espada flamejante da razão dualista, que só a si mesma impede o regresso ao paraíso de cada instante. A verdade da viagem é assim a verdade da saudosa in-ex-istência que somos: renúncia a tudo que seja menos que tudo e nada, festivo vínculo a todo o possível e ao impossível que o possibilita. Ser e sentir tudo de todas as maneiras, ser uno e múltiplo como o universo e, simultaneamente, fruir a irrealidade de tudo isso. Viajar e viajar-se infinitamente, com o reconhecimento pleno de nunca haver quem parta de, chegue a ou esteja em lado algum.
O que parte sem partir é a Nau.

3 comentários:

Anónimo disse...

A filosofia portuguesa vive de paradoxos?

Anónimo disse...

O que é que eu ando aqui a fazer?!
Como é que eu saio daqui?!

Anónimo disse...

Talvez nunca tenhas entrado.