O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Meditações sobre a Saudade

Conversa com o Paulo Borges, respondendo ao seu repto, sobre a via da Saudade, o livro que ainda não li.

A Saudade é Origem. A Saudade é o que vem primeiro. Assim sendo, não é verdadeiramente o que se vê nem o que não se vê. Porque, se o que desce à terra se sonha elevado, o que não tem lugar e a todos sustenta é a Saudade do céu que só na terra existe. Por isso, o religioso da saudade não ora a nenhum deus existente, nem é mendigo da terra que não habita. O mesmo é dizer que existe numa forma de reino que não é deste mundo, mas que só nele manifesta as suas possibilidades. E o que faz o tempo? O tempo aproxima, não afasta; o tempo não apaga, o tempo espera e vive. Estamos mais próximos se estamos distantes, não por uma razão de lugar, nem de tempo, mas por uma percepção do lado de dentro da realidade, que não é dentro nem fora, nem se mede em geometrias terrestres. A Saudade é celeste. É a Senhora do Princípio unido ao fim. Ao esbater a realidade para um plano afastado, a mesma saudade cria um espaço de comunhão que vive dessa tensão criativa, dessa visão intemporal. Ora, porque o Homem tem na sua fronte uma estrela comum aos dois mundos, há que caminhar por vias de recriar, integrar e ser, em Saudade, o verbo cheio do vazio que canta. E amar esse Nada, por sabê-lo Origem, princípio e fim de tudo o que, sonhado, é nesse sonho transportado e transformado. O ser procura o Ser e vive a dor de não existir senão na esperança de o recordar.
O drama da Saudade é o drama de toda a existência criadora, a que pensa o criador e vê na terra o traço radioso de uma existência que não é presença nem ausência. Uma profunda e ôntica manifestação da verdade. E a palavra? A palavra poética é a possibilidade de ser sem existir. O mesmo é dizer que cria o Paraíso, não o existente, mas o recordado e o desejado, o vivido, em espírito saudoso.

2 comentários:

Paulo Borges disse...

Grato pelo belo texto, Saudades. Pergunto todavia se a saudade não aspira simultaneamente a matar-se, suprimindo essa mesma distância de que vive.

Anónimo disse...

Uma boa e difícil pergunta, Paulo.
Acho que a saudade, se aspira a anular a distância em e de que vive,é para renascer em saudade, mais além.
A Saudade não se "cansa", pois não procura o querer nem o devir.É-os.A saudade não deseja matar-se nem viver, porque não está viva nem morta. Não há,penso,verdadeira distância entre o espírito saudoso e a realidade.O "esbater da realidade" de que falo, não é um menos, é um mais. Tudo são intermitências...fulgurações do mundo.Resta saber se o mundo existe, ou mesmo se nós existimos...:)

Um abraço