Fotografia por VT in www.banhosdecinza.blogspot.com
terça-feira, 30 de setembro de 2008
sem título aparente
Fotografia por VT in www.banhosdecinza.blogspot.com
longe
na noite em que os beirais das casas sem gente por dentro
são repletos de andorinhas e sonhos desfeitos cobertos de musgo e líquenes esmeralda
a presença da desolação
faz com que os vidros que separam as coisas de estarem no fim
fiquem embaciados
e é possível desenhar neles com os dedos letras de ausência e incompletude
porque um dia passou por lá
quem estava de partida
lá onde o chão tem pedras do tamanho de romãs
algumas são pesadas e fazem doer a pele das mãos
outras apenas marginam o sítio onde se está
mas nem pegadas
nem restos de insatisfação
fica suspenso tudo o que não houve
no estendal da espera quando o vento é rubro e tem uma voz áspera
mas nem pegadas
só ervas e poucos sinais de ter havido um tempo que apontava para depois
Pastorinha
Pela estrada da minha imperfeição.
Seguia-a, como um gesto de perdão,
O seu rebanho, a saudade minha...
«Em longes terras hás-de ser rainha»
Um dia lhe disseram, mas em vão...
Seu vulto perde-se na escuridão...
Só sua sombra ante meus pés caminha...
Deus te dê lírios em vez desta hora,
E em terras longe do que eu hoje sinto
Serás, rainha não, mas só pastora -
Só sempre a mesma pastorinha a ir,
E eu serei teu regresso, esse indistinto
Abismo entre o meu sonho e o meu porvir...
//
Emissário de um rei desconhecido
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anómalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me o desdém
Por este humano povo entre quem lido...
Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...
Mas há! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...
//
...
Quero poder nos campos prolongados
Meu ser abandonar
Aos seus verdes silêncios afastados,
Que amo só de os olhar.
...
Quero poder mudar o universo
De um para outro lado
Como quem junta o seu viver disperso
E o ata com o fado.
Quero, por fim, ser coroado rei
Do nada a quem enfim vou.
Será minha coroa o que serei,
E o ceptro o que sou.
//
Sim, vem um canto na noite.
Não lhe conheço a intenção,
Não sei que palavras são.
É um canto desligado
De tudo o que o canto tem.
É algum canto de alguém.
Vem na noite independente
Do que diz bem ou mal.
Vem absurdo e natural.
Já não me lembro que penso.
Outro; é um canto a pairar
Como o vento sobre o mar."
Fernando Pessoa
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
caríssim@s serpenti@s
«Filosofia é trabalhos do pensar»
«Filosofia, Criatividade & meia dúzia de chapéus às cores»
Visitem aqui:
Abertamente
E pensar, ou ler...
Este estar, este ver.
Sentir? Porque não?
Serena... mais leve...
Tenho a pena na mão.
Ao escrever, acorda
o vento do agora...
de nunca querer acreditar.
Bucólicas
O rebanho voltou ao pasto, desta vez com o pastor (que segura ao colo a cria mais nova). Tudo não tinha passado de uma interpretação "trocada" dos sinais do céu. O vento amainou num instante. e o convívio interrompido retomou o seu curso. Mudou de direcção o "vento" da conversa... porque era sábado, ficámos mais um pouco.
A excentricidade
Um Viva aos serpentinos excêntricos!
domingo, 28 de setembro de 2008
Arte
113
Como num bloco de mármore ou num dicionário ou no espectro solar ou numa série de sons, há em ti uma obra de arte ou do pensar adormecida. Tu não sabes qual seja e às vezes já não tens tempo de o saber. Mas que um artista ou um pensador crie essa obra e tu reconhecerás que a criou em ti. Toda a obra tem de existir em nós para existir. Porque toda a obra é impossível se ninguém a reconhece. Ela está em ti, no traçado invisível que lhe delimita o contorno, no submerso da sua latência, e é o artista que a faz vir à superfície, lhe define a visibilidade, mesmo do que lhe será sempre invisível. O artista ou o pensador criam a sua obra. Mas é em ti que eles a desenham para existir. Como Deus, aliás, que também.
Vergílio Ferreira, Pensar
Munde é fete pa vivé
Mãe Velha
Dibaxo-di bo foguera
Bô cria nôs desse manera
Kbô saia prete kbô lincim
Bô mostrá nôs oké ke nôs
Oh mãe oh mãe oh mãe oh mãe
oh mãe velha oih
Mãe velha oih mãe velha
Tcham cantope esse cançao
Pa legrope bô coraçao
Mãe velha mostra nõs
Munde é fete pa vive
Tambem ele é fete pa morré
Pa ama e sofre
Munde é fete pa vivé
Munde é fete pa morre
Munde é fete pa ama
Tambem pa sofre
Cesaria Evora
_________Ilha de Santiago
(refrão)
Ilha de Santiago
tem corpinho de algodón
saia de chita cu cordón
um par de brinco roda pión.
Na ilha de Santiago
tem nho Mano Mendi, tem Kaká, Nha Nácia Gómi cu Zezé
Nhu Raúl lá di fundo Ruber da Barca
Na Ilha de Santiago
tem Caetaninho, tem Codé Nhu Arique cu Ano Nobo
Nha Bibinha lá di fundo Curral de Baxo
Na Ilha de Santiago
Tem Séma Lópi, tem Catchás, Djirga, Bilocas Ney,
Ntóni Dente d'Oro lá di fundo San Dimingo.
Orlando Pantera
_________
A terra natal, útero de espanto e ancestralidade, é o chão de onde brotam as vidas, os sonhos, as ideias com seiva e saliva a fermentar os interstícios duma Língua de revelar o mundo e as feridas da separatividade. A Fala que se profere das entranhas da Língua Materna, gramática de fogo e perdição, não se esgota na profusão das palavras, posto que ter um filho é perdê-lo e entregá-lo ao sofrimento e à morte prometida, mas também é proferi-lo, com a alma inteira e abençoá-lo, transmitir-lhe a força inominável que irrompe da terra e torna os homens capazes de si.
Não se trata da Pátria desentranhada do coração e da entrega plena à vida, essa abstracção que vive à custa das espadas, dos punhais e do desejo de domínio que torna o mundo inabitável. Essa egolatria derramadora de sangue e tomada pela bebedeira negra do progresso. É a Pátria firmante, que une o mais fundo e o mais alto, o abismo e a exaltação.
Por isso a Mãe nunca morre. Alarga-se, estende-se, torna a vida vivenciável e a morte arável. “Mostra-nos quem nós somos” e mostra-nos que nada que venha ao nosso encontro no mundo é imundo ou rejeitável. Na condição de filhos da Mãe tudo nós merecemos e não merecemos mais do que tudo. Por isso quem nasce no horizonte rasgável da terra natal é da terra toda, em qualquer sítio pode espraiar-se a sua humanidade, comunicável e parturiente.
Na terra natal estão os que foram paridos na nossa abertura a nós e ao mundo, a nossa “época”, essa epochê demiúrgia, os que nunca partirão do nosso coração, os que alimentam a ânsia do regresso, os que falam a Língua dos elevados à condição de eternos, os Mano Mendi, os Kaká, as Nha Nácia Gómi, os que se dão a beber na urdidura das tardes de domingo, os que nos chegam quando a vida nos parece vazia.
Só a Frátria pode trazer o futuro para dentro das vidas insatisfeitas. Só o respeito pela supremacia dos que se fazem ao mar e se desfazem do que não pode ser criado. Pode construir-se um mundo de blocos culturais e políticos, cada qual no seu lugar natural, a possibilidade de vivermos uma vida normalizada, emparedada, colectivizada. Ou pode criar-se um mundo em que o viver seja imprevisível e constantemente parido, na dor e na alegria, na morte e na aflição, mas um mundo tocável e afeito às mãos que se dão em torno e às almas que se entornam, se comunicam e se entregam ao por vir.
E descobrimos que o “munde é fete pa ama”. Essa a verdade insofismável.
(Estava a tentar publicar este texto na NA e veio parar aqui.Talvez seja um sinal.
Ficará, portanto, também aqui).
Terra Nostra
"Quem encontramos é o mesmo que buscava, o labirinto é a própria busca antes que a Saudade, de súbito, a faça reverter para o lar da nossa perpétua infância. Aí vemos que o esquecimento não triunfou, que o Instante onde enraizamos corre imóvel sob o seu reflexo tornado criatura a que chamamos Tempo. A segunda vez, o re-conhecimento que a Saudade manifesta é a verdadeira primeira vez, terra de nascimento e não túmulo. Com profunda justiça foi que Pascoaes lhe chamou Criação..."
Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia
"O verdadeiro nascimento e a verdadeira criação: reconhecimento no que Insta, no que In-sta, no sempiternamente que não se sedimenta no estar, no ex-istir!"
"Portugal só plenamente será quando perceber que a viagem contada nos Lusíadas é a Ilha dos Amores onde divino e humano darão filhos que, sendo, não existam."
Agostinho da Silva
"O corpo sem alma já não é sacrificado.
O dia da morte se transforma em dia do renascimento.
O espírito divino faz a alma feliz quando se vê a Palavra em sua eternidade."
Nostradamus
Um milagre gratuito
- Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações), Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1991, p.41.
sábado, 27 de setembro de 2008
Topázio
O tempo cristal: eterno
A mulher igualar-se-á então ao homem? Não. Espelhará inteiramente o homem, tal como o seu inverso, e só assim a igualdade se pode dar na vida... pois o outro modo de igualdade implicaria sobreposição num só ser-corpo, e disso já Adão o soube quão aborrecido é... :)
"Cada palavra é uma concha milenária onde canta um mar que já não existe"
Muitas vezes me perdi pelo mar.
Como me perco no coração de alguns meninos.
Porque as rosas buscam em frente uma dura paisagem de osso e as mãos do homem não têm mais sentido do que imitar as raízes sobre a terra.
Como me perco no coração de alguns meninos.
E perdi-me muitas vezes pelo mar.
Ignorante da água, vou buscando uma morte de luz que me consuma.
Frederico Garcia Lorca.
sexta-feira, 26 de setembro de 2008
Com-e-unicar
Porque a comida não fala comigo, é-me... e é assim que me dá vida.
Tudo o resto, o que não me é - ou o que disso se esqueceu, é nada: adormece-me... mata-me.
Tal como a comida, as palavras deveriam-nos ligar à vida, ligar-nos entre nós e ao mundo. Deveriam alimentar a nossa alma ao conectá-la com a sua Fonte, à união primordial, permitindo que cada um permaneça a ser o que é, renascendo sem cessar do Todo a que pertence.
O que entra, e que alimenta o corpo, deveria, da mesma maneira, ser reproduzido, saindo, alimentando-se a si e aos outros.
Poucas são as palavras saciantes, rara a comunicação que nos reconhece como sua, que nos completa como sendo também nossa, nós. Que nos é.
Faminta anda a alma humana de e por si mesma.
E falar palavras que -nos- vivam? Mas como? Se o Homem se esqueceu que vive. Que analisar a vida é decompô-la... e leva o seu tempo para que regenere: para que se re-genere o Ser-Universo.
CRIME, disse ele ...
quinta-feira, 25 de setembro de 2008
CHUVA DE ÁFRICA
reboando a galope
vestida de trovões
e de sedas azuis
sobre o matope
não é
esta chuvinha fina
que se deixa cair como cristais
sobre todas as faces
e
não tem a força
dos grandes densos matos
em que se grita EPULA
e em que se ri
com o corpo molhado
NOTA - este lindo poema é da minha grande amiga Glória de Sant´Ana, de quem me perdera há mais de 30 anos
Não é
Ou... como se foge de si mesmo? Dum si mesmo que não há?
Ó noite, ó sono, ó vazio...
ó
ó o que seja que não exista em mim.
Ó sentimento madrasto, que me fazes sentir a ser apenas quando me não sou a mim!
Ó mim que não há... que só existes por nada do que para ti existe tu és. Para que te pensas tu?? Porquê esta voz? A voz do que nada é... Para que pessoa me achei sendo? Se nunca isso é ser-me.
Viver não pode ser este assistir ao que nunca é.
Não, não pode ser. Não é.
Ahh que inútil vontade de não ser o nada que sempre fui. E que sempre serei.
Até que seja finalmente tudo o que há em mim.
Da Vida encoberta na suposta normalidade - II
- Margaret Prescott Montague, Twenty Minutes of Reality, citado em W. T. Stace, Mysticism and Philosophy, Londres, Macmillan, 1960, pp.83-84 e republicado em Michel Hulin, La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l'esprit, Paris, PUF, 1993, p.37.
MITO
MITO
eras o meio-dia
o magma em vigília
ardência de frutas ácidas
que desata a saliva
tu o oriente
a anterioridade
a delgada labareda que atingia
com o choque de tua crina
do afago uma águia
do fogo castigo
nas entranhas de prometeu
o resto de todo mito
Marcilio Medeiros
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Cântico Negro
"«Vem por aqui» - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: «vem por aqui»!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha Mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: «vem por aqui»?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe.
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: «vem por aqui»!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí!"
José Régio, João Villaret
Ou nem isso saberei... para onde irei, irei pelos meus pés, e os meus pés apenas caminham.
"Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!
Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegada poesia
quando ela nos envenena.
Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:
De fome já não se fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?
Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?
E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!
Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!"
Ary dos Santos
O que é começar bem?
Padrão
"O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.
E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.
E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar."
Fernando Pessoa
Por vezes há tanta beleza no mundo...
Da Vida encoberta na doença da suposta normalidade - I
- N.M., testemunho oral recolhido em W. T. Stace, Mysticism and Philosophy, Londres, Macmillan, 1960, pp.71-72 e republicado em Michel Hulin, La Mystique Sauvage. Aux antipodes de l'esprit, Paris, PUF, 1993, p.36.
Uma oferta...
terça-feira, 23 de setembro de 2008
Nasci para ser ignorante...
mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.
Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.
Perdi o nome às Estrelas,
aos nossos rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.
Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.
Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.
Conheço mais de mil flores.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.
No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.
O pior é se um director
espreita p'la fechadura:
lá se vai licenciatura
se ouve as lições do doutor.
Lá se vai o ordenado
de tuta-e-meia por mês.
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.
Se me não lograr o fado
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,
enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.
//
Também eu, também eu,
joguei às escondidas, fiz baloiços,
tive bolas, berlindes, papagaios,
automóveis de corda, cavalinhos...
Depois cresci,
tornei-me do tamanho que hoje tenho.
Os brinquedos perdi-os, os meus bibes
deixaram de servir-me.
Mas nem tudo se foi:
ficou-me,
dos tempos de menino,
esta alegria ingénua
perante as coisas novas
e esta vontade de brincar.
Vida!
não me venhas roubar o meu tesoiro:
não te importes que eu ria,
que eu salte como dantes.
E se riscar os muros
ou quebrar algum vidro
ralha, ralha comigo, mas de manso...
(Eu tinha um bibe azul...
Tinha berlindes,
tinha bolas, cavalos, papagaios...
A minha Mãe ralhava assim como quem beija...
E quantas vezes eu, só pra ouvi-la
ralhar, parti os vidros da janela
e desenhei bonecos na parede...)
Vida!, ralha também,
ralha, se eu te fizer maldades, mas de manso,
como se fosse ainda a minha Mãe..."
Sebastião da Gama
Um Jovem actor e uma peça de teatro
Hugo von Hofmannsthal, Carta de Lord Chandos
1. Prelúdio, o actor
Um aluno é, depois do fim, uma visita e um hóspede desejado na alma. Muito antes das chuvas e do frio, recebi o Miguel Raposo numa sala de aula, repleta de luz e do cheiro das uvas vindimadas. O Miguel chegou cheio daquela timidez que os que são de outrora trazem no corpo. Logo na primeira aula escondeu-se nas colunas gregas com que falo. Mas deixou audaz o olhar. E olhava-me e tinha já consigo essa qualidade invulgar que os que ainda são só bons têm de ouvir com os olhos. O Miguel sempre deu formas ao que se ia escutando. Depois percebeu que escutava mesmo quando eu já não falava. Escutava sempre. E, suponho agora, que por ser de uma época antiquíssima e de um reino inexistente, tinha receio de falar. A sua língua rara não tinha falantes nem nomes. O Miguel falava a língua esboçada por Hugo von Hofmannsthal na Carta de Lord Chandos. Essa convicção levou-me a temer não conseguir ser sua interlocutora. E tremi antecipar perceber que não iria escrever, sentir dificuldade em redigir. Não por não saber construir frases ou textos, mas porque no seu reino as palavras já então eram actos que deixavam com que as coisas mudas e os gestos imperceptíveis se manifestassem até à evidência que aclara o espírito com a sua revelação. Viria a confirmar-se o receio. O Miguel estava sempre a expressar-se e os testes tinham textos mínimos e que eu traçava de “incompleto”. Essa mentira doía-me. O Miguel era um dos mais completos seres da aula e eu escondia-lhe isso. Um dia, não sei como, ele percebeu onde é que em mim eu escondia essa verdade. Soube disso porque deixei de sentir essa dor da mentira. O Miguel levou a dor e a mentira dentro de um sorriso. Nesse furto delicioso fui para dentro do seu reino e da sua linguagem. E passámos os dois a falar entre nós das coisas mudas e com gestos imperceptíveis. As paisagens do seu reino único e inexistente são as da memória última das passagens pela Terra da Nostalgia. Ele era o único habitante de um mundo que me perseguia a memória e quando chegava pintava o céu da sala da cor das suas passagens. Terra da Nostalgia. O Miguel chegava e eu sentia-me como uma personagem da Llansol, a rapariga com Nostalgia do Poema. E sabia que ele não escrevia. As não-letras do Miguel, a sua caligrafia aguada, como se fosse aguarela desfeita pelas chuvas do dilúvio original, tinha só cor. Não tinham formas as suas não-letras. Que cor? Essa cor era a cor por haver nos pintores e que vem quando se lê alto os versos da saudade, quando se lê Pascoaes. Foi por causa do Miguel que um dia lhes citei de cor passagens d' O Pobre Tolo. E o Miguel ficou feliz e nesse dia as suas asas azuis saíram fora da camisola. Mas o seu olhar continuou, quando não me olhava, dirigido para o chão. E ele é do Alto.
2. Os estúdios do encenador divino
“Nenhum rosto vivo facilmente se revela, e contudo basta um pequeno esforço para descobrir-lhe o significado. Penso – arrisco eu –, penso que o importante é isolá-lo. Só quando o meu olhar o destaca de tudo em redor, só quando o meu olhar (a minha atenção) impede esse rosto de se confundir com o resto do mundo evadindo-se numa infinitude de significações cada vez mais vagas, exteriores a si, ou quando, pelo contrário, obtenho a necessária solidão pela qual o meu olhar o recorta do mundo, então somente o significado desse rosto – pessoa, ser ou fenómeno – afluirá, condensando-se.”
Jean Genet, O Estúdio de Alberto Giacometti
Desconheço os estúdios em que as suas potencialidades divinas se foram abrindo ao presente. Não os conheço. Mas esses estúdios, pelo que são, devem ser inacessíveis às multidões. Esses estúdios são grutas. Grutas – onde o belo se torna mais belo e a bondade é o pulsar do coração – que não devem ser perturbadas e invadidas pelo nosso ruidoso e ruinoso respirar. Esses são os estúdios da acção superior: da acção que reinicia a cada instante o que fazemos desaparecer no mundo, que restaura os gestos universais da nossa pertença a todos os seres e estados. Esses estúdios são as escolas verdadeiras que não se desligam nem das origens de uma tradição e/ ou de todas e fazem da atenção o único método e a melhor pedagogia para salvar o indivíduo do tempo e do grupo. Mas essas mãos que o trouxeram ao aqui e ao agora sem que ele perdesse a sua matéria antiga, o seu espírito em fogo, deixaram, num certo sentido, de ser invisíveis. Dessas mãos e desses espíritos que o mantiveram intacto, deixando que a sua voz, o seu corpo e o seu rosto nos falem das coisas mudas e dos gestos imperceptíveis só posso dizer que são como as de Giacometti nos estúdios. Essas mãos que o recolheram como matéria incandescente e deixaram que a sua solidão (quem olha o Miguel lembra-se sempre daquele verso do António Gedeão, como um astro perdido, que [não] arrefece…) vibrasse no mais afastado recanto da alma de quem o vê e o ouve, essas mãos digo e sinto-o, são criadoras e educadoras no mais autêntico sentido do termo. O Miguel foi tocado por mãos de deuses, não sei se divinos ou não. Mas agora já não olha para o chão. Ou já não olha quando se expressa. O Miguel olha o Alto e fica tão bem a olhar para lá! Ouve-se na peça: Por que é que o caminho para casa é o mais bonito? / Porque é o único!
Não sei se conseguirei dizer-vos com palavras, e sem verem os meus olhos tremeluzir de água comovida, a alegria embriagante de o ver um aluno trepar por entre os sarmentos das vinhas (como diria a Saudades do Futuro) a caminho da sua morada e ser no seu lugar, na sua imobilidade última, a sua mais radical verdade, ser um ser irradiando a sua luz própria ilimitadamente. O Miguel é um sol a formar-se no cosmos! Olhar o Miguel no palco a representar foi como se o palco fosse o lugar Grego onde Diónisos se consagrava na sua dor e no seu grito de morte renascida. O Miguel e os outros dois actores – Carlos Malvarez e Sílvia Almeida – chegam ao palco do Teatro Bocage, na Graça, depois de terem improvisado, durante um mês, gestos para um conto recolhido por Teófilo Braga: Pedro das Malas-Artes. Mas improviso quer dizer experimentar o estado original do homem quando era todos os seres e por isso ser de gestos e expressões que são tentativas e tentações fabulosas que a humanidade atravessou até ser como é: mecânica, previsível, anti-poética, desengraçada e desasada. Os três jovens actores são uma matéria primitiva que experimenta e está entre os seres que morrem e os que renascem, entre os seres que andam e os que voam, entre os que dialogam e os que fazem silêncio, entre os que agonizam e entre os que exultam. Naquele palco, a vida é um esboço e uma aprendizagem que procura um ter sido em que dizer era tocar e ser tocado por todo o tipo de presenças e de formas. Naquele palco, três jovens actores moem as palavras que tomamos como única matéria que mata a fome do espírito e conseguem, pelo chamamento da Seara antiga, o pão do céu. O pão do céu é aquele que o corpo coze quando o silêncio ardente das palavras alastra pelos membros, pelos músculos e pela matéria, transformando a força em gesto. Expressão entusiasmada do que no homem é divino: Eros e a Bondade.
3. Convite
“É necessário moer muito tempo as palavras e morrer em silêncio para cozer o pão do céu.”
Christian Bobin, La Présence Pure et Autres Textes
Explorar os caminhos mais fundos da alma: Pedro das Malas-Artes é uma possibilidade de chegarmos a esse estado em que uma voz guardada e aguardada nos pede pra esquecer o nome e sermos como o Parvo, Ninguém. E, então, retomarmos ao único caminho. A casa. Antes disso, se conseguirem, passem pelo Teatro Bocage. O azeite – e este é o Teatro do Azeite – liga tão bem com o pão! O pão do céu que não sendo feito de palavras intactas é, o único que mata a fome do espírito…Afinal, o homem pode tocar-se sem, antes e depois, de trocar palavras. O Homem pode tocar-se sem se trocar…O abraço que recebi redime a dor, porque o Miguel é feito do silêncio que transforma a nossa força em gesto puro. Tinha chovido e estava ensopada, mas pela primeira vez desde há muito não senti frio e o Outono não tinha começado. As suas asas azuis pintaram-me o espírito de um azul celeste. Ele é do Alto.
Nota: o Carlos Malvarez e a Sílvia Almeida são igualmente pássaros brilhantes…desses que nenhuma ciência saberá sequer o nome.
Isto tornou-se um vicio;-) ...
Primeiro que tudo
Alegre desistencia
Por vezes sinto a vontade de deitar tudo fora, tudo o que ja realizei, tudo o que realizo agora, calar-me para sempre, nao escrever mais nada, nao produzir mais nada, viver numa doce imbecilidade.
Por vezes tenho a vontade de fazer as maiores figuras de imbecil que me possam passar pela cabeca, desiludir tudo e todos, irritar tudo e todos.
Isto para depois me poder juntar alegremente, com leveza, sem culpas, ao Manuelinho, na Tasca do Tize, e transformar-me numa tosca, liberrima e alegremente ignorante companheira de copos e de "figuras tristes".
Como e doce e sabio nos permitirmos o ridiculo ...
Testemunhos? Opinioes? Criticas? Mandatos a merda ou a outros sitios ainda mais interesantes?
(Um) Outono
O Sol cruzou hoje o plano do equador celeste, naquele que é o seu movimento anual (aparentemente elíptico) e a esse instante do Universo chama-se Equinócio de Outono.
Dia e noite demoram o mesmo tempo a passar. Dia e noite iguais, no hemisfério norte.
É linda esta Igualdade, é linda a Natureza e é lindo todo o Universo.
A harmonia entre dia e noite, luz e breu, Sol e Lua, claro e escuro.
Chego a esta altura do ano e começo a sentir saudades do futuro.
Espero pelos dois meses mais difíceis do ano, Outubro e Novembro.
Espero por eles a pensar neles e sentir falta deles em mim. Porque eles sempre me despertam para mim mesma, para a minha essência, para o que sou, para o que fui e para o que me tornei.
Nestes dois meses de Outono, olho-me no espelho, olho-me nos meus olhos e explico-me a mim mesma tudo aquilo que me quero dizer e não me entendo, não me reconheço.
Paro muito, recuo muito, avanço e volto a trás. Tudo isto em suspensão.
É uma altura de poucas palavras, de muito silêncio.
O Outono trás de volta a minha alma, o meu passado e o meu futuro. Traz-me de mim, recupera-me o "Ser".
Vem Outono!
Vem sem pressa, que eu não tenho tempo a perder com pressas e o meu passado e o meu futuro em ti se unem, em mim mesma.
Chegaste, Outono!
E Cheguei eu! Ou parti, é a mesma coisa.
Fechei os olhos, fiquei em silêncio e ouvi o som que tanto precisava ouvir:
o bater do coração.
Renasci e Morri de mim.
Preciso acender uma vela laranja, uma dourada, uma amarela.
Este Outono vai ser maravilhoso*
*excerto de texto publicado originalmente no blog da Sereia*
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Para um bom entendedor... racional
Migalhas e sementes
in www.banhosdecinza.blogspot.com
VT
O mais perigoso no Homem é ser animal racional, sem fronteiras para ser uma coisa de cada vez. Assim é-se animal na racionalidade como se é racional na animalidade. Porque tem a razão a racionar-lhe o animal e o animal a animalizar-lhe a razão. E aí não é possível distinguir-lhe um coice de um silogismo.
Vergílio Ferreira
Para um bom entendedor... instantâneo
domingo, 21 de setembro de 2008
Expressão de um Desejo sem Expressão
O chumbo dos céus pinga na sementeira de astros que é a boca fechada, a semente presa; o gesto inclinado sobre o instante impresso na paragem. Para onde vai a luz sem passagem para as horas? A espera que convém ao tempo? O tempo inchado de uma lua que se imagina débil e pálida no petróleo dos céus. Parada imagem na alma do momento. Para onde vais esquecimento? Quem levanta do pasmo os meses do sono que chegaram mais cedo. Nada se move debaixo dos céus. Nem a renda do vestido nem a rama espessa das árvores. É uma paisagem de saudade suspensa sem gesto que lhe siga. Um abandono doce à amarga antevisão da vinha a entrelaçar os sarmentos, a pentear cabelos que crescem até depois da morte e para além dela. Os limões a amarelecerem, antes que o sol da manhã os ilumine. Profundas, as raízes na sombra. É Outono. É tempo de guardar os vestidos e fechar a arca. E a barca e o barqueiro? E as pedras do castelo?
"Para escrever tenho que me colocar no vazio"
[...]
Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto - e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que existo intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue"
- Clarice Lispector, Um Sopro de Vida (Pulsações), Rio de Janeiro, Francisco Alves Editora, 1991, 9ª edição, pp.17 e 19.
sábado, 20 de setembro de 2008
Civilização, barbárie, grande homem, homem médio
En una época bárbara la grandeza, para afirmarse, tiene que rechazar lo que el hombre medio representa y es.
En una época civilizada el gran hombre es representativo; en una época bárbara el hombre representativo es el hombre medio"
- Nicolás Gómez Dávila [18.5.1913,Cajicá - 17.5.1994, Bogotá], Notas [1954], prólogo de Franco Volpi, Bogotá, Villegas Editores, 2003, 2ª edição, p.193.
Arriscamo-nos cada vez mais a que hoje seja representativo o homem medíocre ou pequeno, que surge como norma e modelo de normalidade... Claro que importa definir o critério do que é um homem grande: arrisco ser aquele que mais vive na tensão para se auto-transcender no cultivo das suas potencialidades mais fundas, amplas e universalmente benéficas.
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Ser essencial a cada instante
- E. Cioran, Le Livre des Leurres, in Oeuvres, Paris, Gallimard, 1995, p.182.
LÍNGUA DE FOLIA, BÁTEGAS DE FULIGEM NA ABÓBADA DA NOITE
por alturas da bruma.
desse rosto nada sei além de sabê-lo de saboreá-lo
vivo ao redor do êxtase da boca a tactear a sede
rente à casa da língua desalinhada
em que crescem sintaxes amotinadas
iguais às águas desaguadas
nos escuros desertos.
a noite em que os braços me diziam
como barcos sonâmbulos num tumulto de ilhas
que a bruma faria de mim um náufrago
se os sentidos abandonara para sulcar
em tua boca as bátegas de estrelas
os rumores da fuligem.
a noite da folia a cantar beijos como figos
quando a língua já lascada e submersa
só no duro chão dos teus lábios
entorna o fogo
a fuligem da nova língua na boca retomada
para que órfãos os nomes ergam a noite
em que partem os navios do desejo
das estelares bátegas
dos incomensuráveis desertos.
luís filipe pereira
Anitónima
"Il faut longtemps moudre les mots et mourir en silence pour faire cuire le pain du ciel"
- Christian Bobin, La Présence pure et autres textes, Paris, Gallimard, 2008, p.192.
Not A Pretty Girl - Ani Difranco
"I am not a pretty girl
that is not what I do
I ain't no damsel in distess
and I don't need to be rescued
so put me down punk
maybe you'd prefer a maiden fair
isn't there a kitten stuck up a tree somewhere
I am not an angry girl
but it seems like I've got everyone fooled
every time I say something they find hard to hear
they chalk it up to my anger
and never to their own fear
and imagine you're a girl
just trying to finally come clean
knowing full well they'd prefer you
were dirty and smiling
and I am sorry
I am not a maiden fair
and I am not a kitten stuck up a tree somewhere
and generally my generation
wouldn't be caught dead working for the man
and generally I agree with them
trouble is you gotta have youself an alternate plan
and I have earned my disillusionment
I have been working all of my life
and I am a patriot
I have been fighting the good fight
and what if there are no damsels in distress
what if I knew that and I called your bluff?
don't you think every kitten figures out how to get down
whether or not you ever show up
I am not a pretty girl
I don't want to be a pretty girl,
no I want to be more than a pretty girl."
Anónimo
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Ser sem Viver
Fosse Eu apenas, não sei onde ou como,
Uma cousa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo...
Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola com Ter
A árvore do meu uso o único pomo...
Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,
Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas...
Fernando Pessoa
Ficções do Interlúdio
Ser sem Viver, Morrer sem amanhecer-se.
E assomar-se, antes e/ou depois de escrever-se.
Alma fadada*
Coração*
O meu coração podia ter o aspecto e a forma deste azulejo.
Não sendo rijo de barro, de cerâmica. Mas, sendo rijo de uma resistência que é inerente aos corações líquidos, nomeadamente o meu que é de Sereia*
Um coração tão forte e tão azul como a água.
Líquido, maleável, mole, que se entranha, que molha e tudo contagia 'líquidamente'
No fundo, o que eu queria era que o meu coração fosse assim... redondo, azulado, com gotas azuis em molduras amarelas à saída da sua forma circular. Gotas de um azul que unisse o interior do coração, de cor verde, ao exterior - o universo. O todo e cada parte e partícula, feita de todo o material, com toda forma e cor
E poder ver, como quem sente dentro do coração, que todo o universo é também da cor verde. A mesma cor desse centro que seria o meu coração...
E como que num sonho, todo o universo cabia dentro deste azulejo.
Num espelho mágico, descoberto num momento mágico, o azul podia ser o veículo, o modo de transporte do verde de dentro para fora e de fora para dentro
Num movimento lindo de Dar e Receber.
Num movimento contínuo que os corações têm quando batem, quando vibram*
FOLIA, Tu És Isso!
A Lua cheia estava baixa e o céu ainda azul.
Foi escurecendo, aos poucos. E a Lua foi subindo.
Cheguei e juntei-me à multidão.
Todos à espera de qualquer coisa que não sabiam o que era. Só imaginavam, como eu, o que poderia ser.
Uma voz feminina e forte chama por um nome: SEBASTIÃO!
As luzes acendem, as caras surgem e, com elas, as palavras que a multidão esperava ouvir.
Palavras.
Palavras de luz. Palavras largadas em noite de lua cheia. Uma noite fantástica de Pentecostes.
Todos estavam ali, em plena serra de Sintra, num dos locais mais fascinantes e que mais 'estórias' tem para contar: a Regaleira. Todos estavam ali para festejar um mistério, para vislumbrar a luz que deveria descer sob a forma de línguas... a qualquer instante, sobre as nossas cabeças duras. Todos haveriam de formar uma Irmandade depois de renunciarem aos apegos e aos vícios de vidas que não são mais que "cadáveres adiados".
Todos haviam de passar os cinco níveis de libertação e chegar à luz do páteo para assistir à coroação do Imperador do Quinto Império.
Fui ungida com uma tinta braca na testa e encaminhada para junto de outras Ninfas e Deusas, assim apelidadas, como eu.
Sei que a coroação se deu e que todos comemos pão e azeitonas e bebemos água e vinho. Um bodo com tudo o que é sagrado e tudo o que é profano.
Fazia frio e a lua cheia estava cada vez mais alta.
As gaitas de foles tocavam, os tambores soavam, no peito batia também qualquer música que não soube identificar. Não era importante identificar e dar nomes às coisas que sentia. Era importante senti-las e sentir a vibração.
E, então, dancei.
Uma dança viva. Uma roda, um par, uns passos...
16 passos para lá, mais 16 passos para cá,
depois 8 com o pé direito e mais 8 com pé esquerdo,
depois 3 meias voltas...
Dancei vezes sem conta!
Numa alegria contagiante, num rodopiar de vida e de FOLIA!
Nessa noite, com o meu renascimento chamei-me Camila. Um nome que nunca deveria pronunciar... E acho que consegui identificar palavras que conhecia dentro de mim mesma, mas distantes de mim, de onde estou e sou agora.
Que pena!
Queria tanto viver AQUELA FOLIA toda a minha vida!
AQUELA FOLIA! Não uma folia qualquer. AQUELA!
SAÚDE IRMÃOS!
Renascidos depois de se terem abandonado, ainda que por breves instantes.
Foi LINDO!
P.s:
Caro Paulo Borges, A FOLIA é linda!
Não posso deixar de dizer que é LINDA!
E Linda é a palavra que para mim significa o meu gosto por qualquer coisa que me faz ver como eu gostaría de ser ou estar.
Quando sinto Saudades do meu Futuro, é assim que me imagino.
Foi mesmo o teatro da minha vida, das nossas vidas!
Porque ainda vai (sempre) a tempo...
Algumas das letras-músicas que me chamam, entre muitas...
"Breathe
Breathe, breathe in the air.
Don't be afraid to care.
Leave, don't leave me.
Look around and choose your own ground.
Long you live and high you fly
smiles you'll give and tears you'll cry
all you touch and all you see
Is all your life will ever be.
Run, rabbit run.
Dig that hole, forget the sun,
And when at last the work is done
Don't sit down it's time to dig another one.
For long you live and high you fly
But only if you ride the tide
And balanced on the biggest wave
You race towards an early grave.
//
Breathe Reprise
Home, home again
I like to be here when I can
when I come home cold and tired
it's good to warm my bones beside the fire
far away across the field
the tolling of the iron bell
calls the faithful to their knees
to hear the softly spoken magic spells
//
Shine On You Crazy Diamond
Remember when you were young, you shone like the sun.
Shine on you crazy diamond.
Now there's a look in your eyes, like black holes in the sky.
Shine on you crazy diamond.
You were caught on the crossfire of childhood and stardom,
blown on the steel breeze.
Come on you target for faraway laughter,
come on you stranger, you legend, you martyr, and shine!
You reached for the secret too soon, you cried for the moon.
Shine on you crazy diamond.
Threatened by shadows at night, and exposed in the light.
Shine on you crazy diamond.
Well you wore out your welcome with random precision,
rode on the steel breeze.
Come on you raver, you seer of visions,
come on you painter, you piper, you prisoner, and shine!"
Pink Floyd
Viver (apenas) na mente... é o mais de-primente
saber viver é não saber.
Canticos do Cisne Europa: III - Estrela da Tarde (Jose Carlos Ary dos Santos/ Fernando Tordo, interpretado por Carlos do Carmo)
Canticos do Cisne Europa: II - Moonlight Shadow (Mike Oldfield)
So sei que, embora esta musica tenha sido editada ainda eu andava de fraldas, cada vez que a oico e vejo este video lembro-me de forma muito viva dos dias deliciosos passados em Novembro de 2007 na Irlanda, em casa dos meus amigos Ciara O'Connor e Laurence Cox, e da tarde fantastica que passamos a correr que nem umas cabritinhas no milenar Tara Valley ...
Canticos do Cisne Europa: I - I Like Chopin (Gazebo)
A cultura popular das ultimas decadas transmite com frequencia a nostalgia que acompanha o fim de um ciclo ...
Compro um doce neste Natal a quem ousar interpretar este video (nao estou a brincar, ha muito que tenho a fantasia de organizar uma sessao de Pasteis de Belem la ao pe dos Jeronimos com voces todos, em pleno Dezembro, com o brilho das luzes de Natal e o cheirinho das castanhas assadas a entrar pela porta adentro;-) ... Quem se dispoe a fazer a marcacao das mesas;-)?).
Remember that piano
So delightful unusual
That classic sensation
Sentimental confusion
BRIDGE:
Used to say
I like Chopin
Love me now and again
CHORUS:
Rainy days never say goodbye
To desire when we are together
Rainy days growing in your eyes
Tell me where's my way
Imagine your face
In a sunshine reflection
A vision of blue skies
Forever distractions
BRIDGE.
CHORUS.
terça-feira, 16 de setembro de 2008
Meu Amor, meu Amor
Meu corpo em movimento,
Minha voz à procura,
Do seu próprio lamento.
Meu limão de amargura,
Meu punhal a escrever*,
Nós parámos o tempo,
Não sabemos morrer.
E nascemos, nascemos,
Do nosso entristecer.
Meu amor, meu amor
Meu pássaro cinzento,
A chorar a lonjura,
Do nosso afastamento.
Meu amor, meu amor,
Meu nó de sofrimento,
Minha mó de ternura,
Minha nau de tormento.
Este mar não tem cura,
Este céu não tem ar,
Nós parámos o vento,
Não sabemos nadar.
E morremos, morremos
Devagar, devagar"
Ary dos Santos, Amália Rodrigues
|*e/ou crescer...|
Uma peça de teatro para pensar a vida e a Europa
A peça é um monólogo e Ella Gerricke faz de homem quase desde o início dos vinte e seis quadros que compõem o texto. Ela, Ella Gerricke, faz de homem, o marido que morreu de cancro, porque tem que sobreviver, porque já era pobre, porque a História interrompeu o seu sonho interminável de ser a Branca de Neve. Desde cedo, e para ter trabalho, esta mulher aprende a imitar os gestos masculinos que a tornam controladora de uma grua. Mas não é apenas no trabalho que ela tem que ser homem: na taberna, na rua, entre as crianças, depois com a subida de Hitler ao poder, ela tem que o ser na trincheira, na fábrica, escapar às inspecções e, entre os soldados, escapar ao desassossego das perseguições e excessos de uma sexualidade tão desenfreada e violenta como a da guerra. Prostitui-se, rouba, trabalha nos campos e nas fábricas de plástico que têm sucesso. Ela, Ella Gerricke, tem que matar, tem que sofrer e sofrer e continuar a sofrer sem redenção durante cinquenta anos. Entre certos quadros, Ella, não sabe quem é. E isso enfraquece-a. No texto de Manfred Karge ela está dilacerada e infeliz. Esse enfraquecimento não é do coração. A personagem diz mesmo, para mostrar o carácter orgânico do desconforto, que lhe dói “ali” e “ali” é o estômago. Ela tem fome da vida plena. A vida não saciou a sua vontade de viver e ser. Nesses instantes de consciência de si, Ella evoca a Branca de Neve. Essa evocação é uma invocação de uma dupla infância: a sua e a da Europa de Outrora. Ela não se reconhece nem no fascismo, nem no comunismo, quando trabalha na URSS, nem no capitalismo. Ella não se reconhece na Europa. A limite o texto mostra que não é apenas Ella Gerricke que não tem identidade, é a Europa que perdeu aquela que nasceu na Grécia e vinha insuflada pelo oriente. A dupla evocação é a dupla perda: a da infância de um ser humano, a infância cultural de um continente, a Europa, que se perdeu do mito e das bodas de Cadmo e Harmonia.
Sendo teatro difícil, político e difícil como o são as peças da Cornucópia, penso que essa é a mais fina e subtil relação analógica que o texto nos deixa para pensar: não é só Ella Gerricke que procura a sua infância que não teve. A Europa actual também só se pode rever numa infância que já não faz parte sequer do currículo das disciplinas. A escola já não é o mundo à parte onde as origens se pensavam e ofereciam ao ser de cada um. Da escola podemos dizer, como Nietzsche do teatro de Eurípides, que tem a vida banal do aluno no palco. Os tachos e as panelas, como ridicularizava Aristófanes nas Rãs. No “palco” da sala, como sabemos, não pode nem estar a vida do professor nem a do aluno. Na sala tem que estar o texto. O Outro com quem aprendemos a troca e a humildade, a ética, o diálogo, a verdade, o bem, o belo, muito para além de cada um e da nossa pobres vida. A escola não pode ser o prolongamento da vida que nos torna infelizes: a escola tem que ser a interrupção dessa vida, a emergência da outra, mais alta e sublime, mais elevada e suprema que os autores vislumbraram do pélago que os assombrou.
Era uma vez...
Ela reconhece-se numa infância que não teve. Como é que alguém se reconhece no que não viveu, mas disso se recorda? No texto que foi distribuído ao público Beatriz Batarda e Carlos Aladro, o encenador, perguntam-nos: “será que acreditar na Branca de Neve é sinónimo de estupidez ou de capacidade de confiar no Homem?”Ella não é estúpida. Os alunos também não. Durante cinquenta anos engana os outros e nunca se engana a si. Mas também não me parece que confie no Homem. Não sei se os alunos confiam nos seus professores. Em alguns, pontualmente. Não sei. Ella Gerricke nem sequer confia nas crianças com que se cruza na vida. Eles, os alunos, nunca foram crianças e também não sabem o que é ser adulto. E, então de novo pergunto-me: que fazia a Beatriz Batarda sentada no palco a ver-nos entrar? Ela espera. Ela, Ella Gerricke, confia no Homem que há-de vir. Essa humanidade, após a Queda do Muro, será a que somos desde já? Ella não espera por Deus. Ella não espera por nenhum Ele transcendente, ou por um Messias redentor. Ella é clara a esse respeito. Já quase no final Ella diz, a olhar para o céu: ao sétimo dia até Ele descansa e olha para o seu mundo de plástico e vê como nos arranjamos. Também Ella resolve descansar e esperar pela Branca de Neve. Neste momento da peça não pude deixar de me perguntar se Ella não era Ele (?). Como nas boas narrativas judaicas. E, caso o fosse, de que estaria Ella à espera? E Ele? Senti que esperavam pelo Homem. Como se afinal não fizesse qualquer sentido falar-se de pós-modernismo, porque não creio que tenha havido qualquer humanismo para morrer, porque o humanismo me parece o movimento por haver, por nascer. A vida é o sétimo dia. Nada garante que Deus, como Ella, depois de terem trabalhado tanto, tenham tido força para continuar. Mas talvez seja nesse descanso dos que sofrem que estes que ficam encontrem a coragem da sua infância para além do tempo e para além do cansaço. Porque a nossa identidade é qualquer coisa que está no Outrora como a Branca de Neve. Amanhã quando receber os alunos estenderei a mão e farei com eles o caminho. Contarei a Branca de Neve e prometo a mim mesma levá-los aos jardins onde as narrativas estancam as nossas dores de “aqui”. Porque é preciso que percebam que quando alguém nos pede silêncio, não nos está a mandar calar, está a construir a paisagem para que muitos possam chegar às nossas vidas famintas e connosco poderem caminhar e cantar o refrão entusiástico de estarmos vivos, depois do sétimo dia. O que só pode querer dizer que cada um pode ser Ele e Ela. Ella Gerricke ensina-nos também isto: há monólogos que são o mais veemente encontro e diálogo. Não ouviu a Beatriz e não o ouvirão os meus alunos, mas quando sentada os vir chegar sentirei que na Terra foram esperados e é por isso que parecerá que descanso e às vezes não os deixarei falar e outras não serei nada para os ouvir quase a gritar “aqui!”. Amanhã vou começar a fazer de professora e, como a Beatriz Batarda ou Ella Gerricke, também espero o Homem e o Humanismo que há-de vir. Porque outra vez quer dizer, ainda e para sempre, era uma vez...
A melhor das mensagens
- aforismo alterado de A Cada Instante Estamos a Tempo de Nunca Haver Nascido, Sintra, Zéfiro, 2008, p.151.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Cada Homem fala a Sua língua própria
A música, essa, fala uma língua universal, pois não remete ao pensamento, mas directamente ao sentimento. No Brasil, o povo, caracteristicamente, fala dum modo que supera a compreensão mental, a alma brasileira fala mesmo a cantar (na Bahia então...), praticamente não é necessário pensar no que se ouve, para entender as palavras daquela gente basta usar os sentidos, basta senti-las, pois elas nascem do coração, mantêm-se originais.
As palavras ligam-nos entre nós, mas o que nos liga às palavras somos nós mesmos. São a ponte que nos liga, mas quem percorre a ponte somos nós, quando nos desentendemos a falar, não é a ponte que deixa de lá estar, nós é que a deixámos de cruzar. Quando deixamos de ser as palavras que falamos a ponte desaparece, pois elas só existem em nós, ao serem o próprio corpo da nossa alma.
7º Encontro Inter-Religioso de Meditação
UBP - Calçada da Ajuda 246-1º Dtº, Lisboa
É com alegria que a União Budista Portuguesa anuncia o próximo Encontro Inter-Religioso de Meditação nas instalações da sua sede em Lisboa. Convocamos assim toda a comunidade budista e não budista a associar-se a este encontro de praticantes de diferentes tradições e religiões para vivermos, em silêncio meditativo, a experiência da presença em comum perante o que para cada um for mais sagrado.
Lembramos que este encontro - cuja feliz iniciativa partiu da Comunidade Mundial para a Meditação Cristã e que foi por todas as principais comunidades religiosas portuguesas entusiasticamente recebida - corresponde plenamente ao compromisso que a União Budista Portuguesa recentemente assumiu com Sua Santidade o Dalai Lama de tudo fazer para promover a harmonia inter-religiosa em Portugal, um dos próprios empenhos fundamentais de Sua Santidade.
Começaremos com breves leituras de textos representativos da espiritualidade de cada tradição, intervalados por três minutos de meditação sobre cada um, seguindo-se 25 minutos de meditação em silêncio. No final haverá a possibilidade dos participantes partilharem a sua experiência.
Contamos com a vossa presença e divulgação desta experiência pioneira em Portugal.
Para que o diálogo inter-religioso se enraíze no silêncio inter-religioso e na experiência da Paz profunda.