O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


terça-feira, 16 de setembro de 2008

Uma peça de teatro para pensar a vida e a Europa

No início ela está sentada e diz: ainda não estão todos. Podem falar ainda. Depois não vos deixarei. Ela é Beatriz Batarda e é seguramente uma das poucas pessoas com quem fico apaziguada por me mandar calar. Ela está sentada à beira do palco a ver-nos chegar. Como se nos esperasse. O texto que irá representar talvez justifique o que faz quando nos recebe. Uma perna vai para a frente e para trás, como um pêndulo que procura o ritmo ou como um ritmo que a sustém vindo das profundezas do texto. Depois tem os braços em torno da outra perna curvada e vai-nos olhando nos olhos. Um a um, à medida que entramos. O cenário é simples: uma mão gigante desenhada no chão, numa fina alcatifa cinzenta, ou um grande pé, para o caminho que durante 50 anos esta mulher, vestida de homem e de todos os personagens, tem que percorrer para sobreviver.
A peça é um monólogo e Ella Gerricke faz de homem quase desde o início dos vinte e seis quadros que compõem o texto. Ela, Ella Gerricke, faz de homem, o marido que morreu de cancro, porque tem que sobreviver, porque já era pobre, porque a História interrompeu o seu sonho interminável de ser a Branca de Neve. Desde cedo, e para ter trabalho, esta mulher aprende a imitar os gestos masculinos que a tornam controladora de uma grua. Mas não é apenas no trabalho que ela tem que ser homem: na taberna, na rua, entre as crianças, depois com a subida de Hitler ao poder, ela tem que o ser na trincheira, na fábrica, escapar às inspecções e, entre os soldados, escapar ao desassossego das perseguições e excessos de uma sexualidade tão desenfreada e violenta como a da guerra. Prostitui-se, rouba, trabalha nos campos e nas fábricas de plástico que têm sucesso. Ela, Ella Gerricke, tem que matar, tem que sofrer e sofrer e continuar a sofrer sem redenção durante cinquenta anos. Entre certos quadros, Ella, não sabe quem é. E isso enfraquece-a. No texto de Manfred Karge ela está dilacerada e infeliz. Esse enfraquecimento não é do coração. A personagem diz mesmo, para mostrar o carácter orgânico do desconforto, que lhe dói “ali” e “ali” é o estômago. Ela tem fome da vida plena. A vida não saciou a sua vontade de viver e ser. Nesses instantes de consciência de si, Ella evoca a Branca de Neve. Essa evocação é uma invocação de uma dupla infância: a sua e a da Europa de Outrora. Ela não se reconhece nem no fascismo, nem no comunismo, quando trabalha na URSS, nem no capitalismo. Ella não se reconhece na Europa. A limite o texto mostra que não é apenas Ella Gerricke que não tem identidade, é a Europa que perdeu aquela que nasceu na Grécia e vinha insuflada pelo oriente. A dupla evocação é a dupla perda: a da infância de um ser humano, a infância cultural de um continente, a Europa, que se perdeu do mito e das bodas de Cadmo e Harmonia.
Sendo teatro difícil, político e difícil como o são as peças da Cornucópia, penso que essa é a mais fina e subtil relação analógica que o texto nos deixa para pensar: não é só Ella Gerricke que procura a sua infância que não teve. A Europa actual também só se pode rever numa infância que já não faz parte sequer do currículo das disciplinas. A escola já não é o mundo à parte onde as origens se pensavam e ofereciam ao ser de cada um. Da escola podemos dizer, como Nietzsche do teatro de Eurípides, que tem a vida banal do aluno no palco. Os tachos e as panelas, como ridicularizava Aristófanes nas Rãs. No “palco” da sala, como sabemos, não pode nem estar a vida do professor nem a do aluno. Na sala tem que estar o texto. O Outro com quem aprendemos a troca e a humildade, a ética, o diálogo, a verdade, o bem, o belo, muito para além de cada um e da nossa pobres vida. A escola não pode ser o prolongamento da vida que nos torna infelizes: a escola tem que ser a interrupção dessa vida, a emergência da outra, mais alta e sublime, mais elevada e suprema que os autores vislumbraram do pélago que os assombrou.



5 comentários:

Ana Margarida Esteves disse...

Excelente analise Isabel.

Por acaso conheces o escritor Frances Michel Houellebecq e a sua fria e controversa analise do esvasiamento de sentido e de humanidade que a Europa tem sofrido nas ultimas decadas?

Tu que tanto celebras os estados musicais, sera que partilhas comigo a sensacao de que a unica musica que se adequa a Europa actual e aquela que tenta incorporar a nostalgia e segurar umas poucas malhas de um tecido cultural que se vai desfazendo?

A cancao "I Like Chopin", do Italiano Gazebo, e um bom exemplo:

Gazebo - I Like Chopin LYRICS

Remember that piano
So delightful unusual
That classic sensation
Sentimental confusion

BRIDGE:
Used to say
I like Chopin
Love me now and again

CHORUS:
Rainy days never say goodbye
To desire when we are together
Rainy days growing in your eyes
Tell me where's my way

Imagine your face
In a sunshine reflection
A vision of blue skies
Forever distractions

BRIDGE.

Anónimo disse...

Ana,

estou com muita pressa e ainda a aprender a dar ritmo à multiplicidade do novo e do emergente. Vou sair para reuniões ( marca inconfundível dos tempos: andamos sempre reunidos e cada vez mais desunidos)e depois aulas. Venho tarde. Mas se as dores de cabeça não me impedirem, venho para falar contigo. Espero que tenhas paciência para falar comigo. Ofereço a minha indisponibilidade momentânea à tua generosidade. Um sorriso. Até logo...tarde! Mas vou a cantar Carlos do Carmo e "I Like Chopin". Obrigada.

Anónimo disse...

Ana,

o que conheço desse escritor e nada é o mesmo. Mas atenta como sou já reparei e li o que noutras ocasiões referiste deste autor. Sobre a perda de sentido na Europa, que muito me afecta, porque este é o continente das minhas principais referências vitais, penso, gostando muito dos estados musicais, que se ouve o canto do cisne. Mas não me esqueço que a nostalgia é, desde o berço da Europa, a música que se escuta, ou que os que pensam escutam; penso ainda que há 26 séculos Sócrates já morria a ouvir o canto do cisne. Então, pergunto-me, poderá a Europa ouvir outra música? Que natureza tem a Europa sempre infeliz, como pensa Eduardo Lourenço, em torno da sua identidade (Nós e a Europa e as duas Razões)? Seremos constitutivamente insatisfeitos, e se sim, porquê? É por isso que é urgente, como sempre e desde o início foi, voltar os olhos, a direcção do olhar para o Oriente? O lugar de onde vem o que nasce?
Para além destas reflexões e da tristeza e de na voz ter as mesmas músicas que tu entoas e nos tens posto a entoar, Ana, este é o continente que arromba as janelas da minha alma. E sinto uma tristeza muito funda por andar a fazer de Ella Gerricke e de também eu, como ela, por sermos daqui, não termos quem nos conte uma verdadeira história que alimente o sonho dos dias da desesperança. Porque esta é a "terra desolada". Obrigada por teres tido paciência para me ler e desculpa ter respondido tão tarde, mas cheguei exausta. Tudo de muito bom para ti.

Miguel Raposo disse...

Não tenho tido tempo... Por isso, só li alguns textos seus ainda. Comentei somente o "Pollock para A.", sempre com um ímpeto saudoso de lhe pedir mais, que me conte mais. Eu confio em si. Não só por me ter dado o que deu, mas porque ao ler os seus textos reconheço alguém que possui um pouco do Outrora... Alguém que um dia me fez lograr de um tal pensamento: O Homem pode ir mais longe! - disse-me... A Isabel revolucionou todo o logos que da sua palavra fruía, mas edificou a sua revolução sem armas, fê-lo com amor. Foi tão bonito o tempo que consigo ganhei. Por isso, sim... Ele vem. Porque a crença em algo melhor espalha-se como o amor. Obrigado
Miguel

Anónimo disse...

Miguel, aliás pássaro adamantino que saiu da toca dos raposos:


era preciso um ser bom, que leu comigo textos, para me salvar! Não sei comentar o que escreveu. Ainda não sei falar dos GRANDES e do seu olhar na sala em direcção ao Dito. Quando me ensinar a voar em direcção ao seu reino de beleza e eu puder ficar, faleremos e edifacaremos o TEATRO das almas em estado puro. Porque as almas são um texto infindável que o seu olhar canta e me encanta.

E só voltei aqui porque recebi mil mensagens a dizer um aluno descobriu-te na "Serpente"! Mas o Miguel iria descobrir-me sempre, sabe os lugares em que me escondo, porque é um leitor de almas. E um exagerado delicioso...
Abraço-o com as asas da alma.
A sua muito,
Isabel