O CAMINHO DA SERPENTE

"Reconhecer a verdade como verdade, e ao mesmo tempo como erro; viver os contrários, não os aceitando; sentir tudo de todas as maneiras, e não ser nada, no fim, senão o entendimento de tudo [...]".

"Ela atravessa todos os mistérios e não chega a conhecer nenhum, pois lhes conhece a ilusão e a lei. Assume formas com que, e em que, se nega, porque, como passa sem rasto recto, pode deixar o que foi, visto que verdadeiramente o não foi. Deixa a Cobra do Éden como pele largada, as formas que assume não são mais que peles que larga.
E quando, sem ter tido caminho, chega a Deus, ela, como não teve caminho, passa para além de Deus, pois chegou ali de fora"

- Fernando Pessoa, O Caminho da Serpente

Saúde, Irmãos ! É a Hora !


quarta-feira, 10 de setembro de 2008

Em tempos fui distribuidora de jornais

Eu sou uma distribuidora de jornais, é essa a minha missão. Dou a informação em primeira mão ou talvez não: há jornais que se antecipam antes das oito mas uma coisa é certa: há gente que não compra aqueles jornais, por isso o meu chega-lhes às mãos em primeira mão porque é grátis, não digam que não.
O frio e eu, eu e o frio, nestes tempos de levantar cedo somos quase amigos. Quase porque já me incomodei mais com ele, agora é tu cá tu lá ainda lutando mas fazendo parte. Lutar contra o frio, estoicamente que assim é que é bonito, bonito de se ver porque quem vê vê que o que eu quero é passar o jornal no matter what, os obstáculos não o serão e sorrio porque estou a conseguir passar muitos jornais sem desanimar. Hum, lá que há alguma coisa de desânimo há, mas um super herói jamais, em qualquer lado que se o veja, mostra vida pessoal, íntimo, vulnerabilidade. Confesso que (poucas vezes) me desmanchei; ah estou com gripe, ah e já não me lembro de mais, nada que importe pois, acho, não foi de monta suficiente para, aos olhos dos cidadãos, me retirar a credibilidade.
Visto a t-shirt antes de sair do metro, fico almofadada, pronta para o rugby que aí viesse, ponho a cara objectiva, assertiva, agora um bocadinho sorridente porque vacilei: deixei que uma má opinião condicionasse a minha postura agressiva que rima com objectiva e assertiva. E lá vou eu, ninguém me pára até que eu não possa andar, é tudo o que tenho.
Acabo a missão, tiro a t-shirt, sinto-me realizada, fico uma mulher bonita e vou para casa irreconhecível sem mais nada. Eu e o frio, o frio e eu, a minha espada é o jornal. "Olha a bela da ardina!" lembra o antigamente, recupero profissões românticas, olha a nossa bela ardina e somos todos convivas, sempre os mesmos, presto serviço público, psst psst, ó psst, antes de o sinal ficar vermelho eu dou-lhes o jornal, é competência, rapidez, é "got it!", é a menina que está ali e desempenha o dever com prazer.
Recompensam-me com comida mas eu não sou pobrezinha. Tive de aceitar a laranja porque era de outra terra, deu para disfarçar.
Eu sou distribuidora de jornais, dali já não saio, é a minha profissão. Se vos perguntarem o que sou é isso que dirão.

28/2/2005

2 comentários:

Ana Moreira disse...

Por causa deste texto, surge outro texto: A pior das sedes.

luizaDunas disse...

Olá Rita,

A partir do "agora é tu cá tu lá..." estive sempre a sorrir. Foi muito especial.