A peça é um monólogo e Ella Gerricke faz de homem quase desde o início dos vinte e seis quadros que compõem o texto. Ela, Ella Gerricke, faz de homem, o marido que morreu de cancro, porque tem que sobreviver, porque já era pobre, porque a História interrompeu o seu sonho interminável de ser a Branca de Neve. Desde cedo, e para ter trabalho, esta mulher aprende a imitar os gestos masculinos que a tornam controladora de uma grua. Mas não é apenas no trabalho que ela tem que ser homem: na taberna, na rua, entre as crianças, depois com a subida de Hitler ao poder, ela tem que o ser na trincheira, na fábrica, escapar às inspecções e, entre os soldados, escapar ao desassossego das perseguições e excessos de uma sexualidade tão desenfreada e violenta como a da guerra. Prostitui-se, rouba, trabalha nos campos e nas fábricas de plástico que têm sucesso. Ela, Ella Gerricke, tem que matar, tem que sofrer e sofrer e continuar a sofrer sem redenção durante cinquenta anos. Entre certos quadros, Ella, não sabe quem é. E isso enfraquece-a. No texto de Manfred Karge ela está dilacerada e infeliz. Esse enfraquecimento não é do coração. A personagem diz mesmo, para mostrar o carácter orgânico do desconforto, que lhe dói “ali” e “ali” é o estômago. Ela tem fome da vida plena. A vida não saciou a sua vontade de viver e ser. Nesses instantes de consciência de si, Ella evoca a Branca de Neve. Essa evocação é uma invocação de uma dupla infância: a sua e a da Europa de Outrora. Ela não se reconhece nem no fascismo, nem no comunismo, quando trabalha na URSS, nem no capitalismo. Ella não se reconhece na Europa. A limite o texto mostra que não é apenas Ella Gerricke que não tem identidade, é a Europa que perdeu aquela que nasceu na Grécia e vinha insuflada pelo oriente. A dupla evocação é a dupla perda: a da infância de um ser humano, a infância cultural de um continente, a Europa, que se perdeu do mito e das bodas de Cadmo e Harmonia.
Sendo teatro difícil, político e difícil como o são as peças da Cornucópia, penso que essa é a mais fina e subtil relação analógica que o texto nos deixa para pensar: não é só Ella Gerricke que procura a sua infância que não teve. A Europa actual também só se pode rever numa infância que já não faz parte sequer do currículo das disciplinas. A escola já não é o mundo à parte onde as origens se pensavam e ofereciam ao ser de cada um. Da escola podemos dizer, como Nietzsche do teatro de Eurípides, que tem a vida banal do aluno no palco. Os tachos e as panelas, como ridicularizava Aristófanes nas Rãs. No “palco” da sala, como sabemos, não pode nem estar a vida do professor nem a do aluno. Na sala tem que estar o texto. O Outro com quem aprendemos a troca e a humildade, a ética, o diálogo, a verdade, o bem, o belo, muito para além de cada um e da nossa pobres vida. A escola não pode ser o prolongamento da vida que nos torna infelizes: a escola tem que ser a interrupção dessa vida, a emergência da outra, mais alta e sublime, mais elevada e suprema que os autores vislumbraram do pélago que os assombrou.
5 comentários:
Excelente analise Isabel.
Por acaso conheces o escritor Frances Michel Houellebecq e a sua fria e controversa analise do esvasiamento de sentido e de humanidade que a Europa tem sofrido nas ultimas decadas?
Tu que tanto celebras os estados musicais, sera que partilhas comigo a sensacao de que a unica musica que se adequa a Europa actual e aquela que tenta incorporar a nostalgia e segurar umas poucas malhas de um tecido cultural que se vai desfazendo?
A cancao "I Like Chopin", do Italiano Gazebo, e um bom exemplo:
Gazebo - I Like Chopin LYRICS
Remember that piano
So delightful unusual
That classic sensation
Sentimental confusion
BRIDGE:
Used to say
I like Chopin
Love me now and again
CHORUS:
Rainy days never say goodbye
To desire when we are together
Rainy days growing in your eyes
Tell me where's my way
Imagine your face
In a sunshine reflection
A vision of blue skies
Forever distractions
BRIDGE.
Ana,
estou com muita pressa e ainda a aprender a dar ritmo à multiplicidade do novo e do emergente. Vou sair para reuniões ( marca inconfundível dos tempos: andamos sempre reunidos e cada vez mais desunidos)e depois aulas. Venho tarde. Mas se as dores de cabeça não me impedirem, venho para falar contigo. Espero que tenhas paciência para falar comigo. Ofereço a minha indisponibilidade momentânea à tua generosidade. Um sorriso. Até logo...tarde! Mas vou a cantar Carlos do Carmo e "I Like Chopin". Obrigada.
Ana,
o que conheço desse escritor e nada é o mesmo. Mas atenta como sou já reparei e li o que noutras ocasiões referiste deste autor. Sobre a perda de sentido na Europa, que muito me afecta, porque este é o continente das minhas principais referências vitais, penso, gostando muito dos estados musicais, que se ouve o canto do cisne. Mas não me esqueço que a nostalgia é, desde o berço da Europa, a música que se escuta, ou que os que pensam escutam; penso ainda que há 26 séculos Sócrates já morria a ouvir o canto do cisne. Então, pergunto-me, poderá a Europa ouvir outra música? Que natureza tem a Europa sempre infeliz, como pensa Eduardo Lourenço, em torno da sua identidade (Nós e a Europa e as duas Razões)? Seremos constitutivamente insatisfeitos, e se sim, porquê? É por isso que é urgente, como sempre e desde o início foi, voltar os olhos, a direcção do olhar para o Oriente? O lugar de onde vem o que nasce?
Para além destas reflexões e da tristeza e de na voz ter as mesmas músicas que tu entoas e nos tens posto a entoar, Ana, este é o continente que arromba as janelas da minha alma. E sinto uma tristeza muito funda por andar a fazer de Ella Gerricke e de também eu, como ela, por sermos daqui, não termos quem nos conte uma verdadeira história que alimente o sonho dos dias da desesperança. Porque esta é a "terra desolada". Obrigada por teres tido paciência para me ler e desculpa ter respondido tão tarde, mas cheguei exausta. Tudo de muito bom para ti.
Não tenho tido tempo... Por isso, só li alguns textos seus ainda. Comentei somente o "Pollock para A.", sempre com um ímpeto saudoso de lhe pedir mais, que me conte mais. Eu confio em si. Não só por me ter dado o que deu, mas porque ao ler os seus textos reconheço alguém que possui um pouco do Outrora... Alguém que um dia me fez lograr de um tal pensamento: O Homem pode ir mais longe! - disse-me... A Isabel revolucionou todo o logos que da sua palavra fruía, mas edificou a sua revolução sem armas, fê-lo com amor. Foi tão bonito o tempo que consigo ganhei. Por isso, sim... Ele vem. Porque a crença em algo melhor espalha-se como o amor. Obrigado
Miguel
Miguel, aliás pássaro adamantino que saiu da toca dos raposos:
era preciso um ser bom, que leu comigo textos, para me salvar! Não sei comentar o que escreveu. Ainda não sei falar dos GRANDES e do seu olhar na sala em direcção ao Dito. Quando me ensinar a voar em direcção ao seu reino de beleza e eu puder ficar, faleremos e edifacaremos o TEATRO das almas em estado puro. Porque as almas são um texto infindável que o seu olhar canta e me encanta.
E só voltei aqui porque recebi mil mensagens a dizer um aluno descobriu-te na "Serpente"! Mas o Miguel iria descobrir-me sempre, sabe os lugares em que me escondo, porque é um leitor de almas. E um exagerado delicioso...
Abraço-o com as asas da alma.
A sua muito,
Isabel
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